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“Anjos” do Minho anunciam paliativos ao domicílio

A equipa Bem-Humanizar vai a casa dos doentes terminais prestar cuidados médicos e de enfermagem, garantindo também apoio emocional às famílias. O serviço é gratuito e abrange Arcos de Valdevez e Ponte da Barca.

26 de Setembro de 2017 às 10:22
A enfermeira Andreia Cerqueira e a médica Ana Barbosa em casa de Emília Silva, 74 anos, a quem foi diagnosticado um cancro no estômago no início deste ano. Paulo Duarte
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Emília Silva vive sem estômago há sete meses, cumprindo só tratamentos de quimioterapia paliativa, mas não perde a boa disposição enquanto conversa com a sobrinha e uma vizinha de Vate S. Pedro, na grande cozinha com lareira e móveis rústicos que serve de entrada principal à casa, no concelho de Ponte da Barca. Na tarde em que recebe a visita da enfermeira e da médica da Bem-Humanizar - "não tenho queixinha nenhuma das meninas" -, a doente oncológica, que "agora com 74 anos também não [vai] para longe", parecia até ter como maior preocupação o facto de não ter feito pataniscas para as visitas.



São pessoas que necessitam mesmo, que nos vêem como "anjos", como nos costumam chamar, porque fazemos o que eles tanto pedem. (...) Sentem que connosco estão protegidas. Nunca lhes faltamos, estamos lá quando elas precisam.  Andreia Cerqueira
Enfermeira da equipa domiciliária de cuidados paliativos "Bem-Humanizar"

A simpática minhota de cabelos grisalhos, que trabalhou como lavradeira e numa funerária, é uma das visitas regulares da equipa domiciliária de cuidados paliativos, criada em Dezembro de 2014 pela Santa Casa da Misericórdia de Arcos de Valdevez (SCMAV). Em funcionamento 24h e sete dias da semana, os dois médicos, as duas enfermeiras, a psicóloga, a nutricionista e a assistente social fazem o controlo sintomático, reduzem o sofrimento e dão qualidade até ao fim da vida dos utentes, ajudam a satisfazer alguns dos derradeiros desejos e prestam apoio emocional à família (que depois se estende à fase do luto) "para que se possa cumprir a vontade de estar o mais tempo possível em casa", comum a quase todos os utentes.

O cariz da equipa e de ser domiciliário é para tentar dar resposta ao que a maioria dos utentes quer quando está em fase paliativa e terminal: ficar em casa e morrer em casa.  Vânia Afonso
Responsável da área da saúde na Santa Casa da Misericórdia de Arcos de Valdevez

Eva vive com a mãe Emília, é a principal cuidadora e desfaz-se em elogios à "retaguarda importante" deste serviço gratuito, que evita muitas visitas ao hospital. "A enfermeira já me disse que posso ligar a qualquer hora para tirar dúvidas, mas claro que uma pessoa também não abusa. Sempre que é preciso elas estão lá", declara a filha, que ouviu falar desta equipa no hospital de Ponte de Lima.


11,7%
Ida às urgências
Taxa de agudização é reduzida. Dos cerca de 300 doentes seguidos até Junho deste ano, só 35 tinham recorrido ao serviço de urgência.


Abrangendo Arcos de Valdevez e Ponte da Barca, muitos quilómetros quadrados e baixa densidade populacional - até à Peneda, no meio da serra, tardam duas horas no Inverno -, em dois anos e meio já apoiaram 380 utentes. Em média, visitam semanalmente 18, além de verem outros tantos nas instituições em que fazem consultoria. Porém, se numa situação estável e sem descontrolo sintomático basta uma visita por semana e alguns telefonemas, no caso de um doente ou família descompensada "é o que for necessário". E num único dia já chegaram a visitar cinco vezes o mesmo doente.

A enfermeira já me disse que posso ligar a qualquer hora para tirar todas as dúvidas, mas claro que uma pessoa também não abusa. Mas sempre que é preciso elas estão lá. É uma retaguarda importante.  Eva Silva
Filha e cuidadora de Emília, utente do serviço domiciliário da Bem-Humanizar

"O cariz da equipa e o de ser domiciliário é para tentar dar resposta ao que a maioria dos utentes quer quando está em fase paliativa e terminal: ficar em casa e morrer em casa. No nosso país isso não é fácil porque muitas vezes não há quem cuide ou quem dê suporte a cuidar no domicílio", aponta Vânia Afonso, responsável pela área de saúde da SCMAV.


Da "folha de serviços" citada pela enfermeira Diana Sequeira consta a demora de 0,6 dias para a primeira avaliação ao novo caso referenciado; a redução para metade do nível de dor nas primeiras 48h; a diminuição dos tempos de internamento e o planeamento eficaz das altas hospitalares; e uma taxa de agudização "extremamente reduzida", tendo apenas 35 dos doentes seguidos pela equipa recorrido às urgências.

A colega, Andreia Cerqueira, exerce enfermagem há uma década e "nunca [se sentiu] tão acarinhada e respeitada" como desde que integra a Bem-Humanizar. Como os restantes elementos, fez uma pós-graduação em Cuidados Paliativos antes de arrancar a equipa. Porém, só quando chegou ao terreno percebeu a "empatia e proximidade" que se cria com doentes e familiares, que se sentem protegidos. "São pessoas que necessitam mesmo, que nos vêem como anjos, como nos costumam chamar, porque fazemos o que tanto pedem: não ir para um hospital e esperar 10h numa maca para ser visto, receber uma medicação e voltar para casa como estava".
Diana Sequeira, a outra enfermeira da equipa domiciliária de cuidados paliativos Bem-Humanizar, prepara os materiais para seguir viagem pelas estradas sinuosas dos concelhos de Arcos de Valdevez e Ponte da Barca.
Diana Sequeira, a outra enfermeira da equipa domiciliária de cuidados paliativos Bem-Humanizar, prepara os materiais para seguir viagem pelas estradas sinuosas dos concelhos de Arcos de Valdevez e Ponte da Barca. Paulo Duarte

Caso de inovação

Funcionar 24/7


O apoio aos doentes e às respectivas famílias não pode simplesmente terminar no final da hora do expediente dos profissionais da equipa. A coordenadora da área de saúde da Santa Casa da Misericórdia dos Arcos de Valdevez, Vânia Afonso, garante que "se o telefone tocar às 2 da manhã, elas [enfermeiras] atendem sempre". E reclama que isso é que faz a diferença da Bem-Humanizar em relação a outros serviços do género, direccionados para cuidados paliativos ao domicílio, existentes no país. "Achamos que não se consegue fazer cuidados paliativos das 9h às 17h. Porque é à noite que as pessoas têm mais dúvidas, é à noite que os utentes se descontrolam. Daí este ser o nosso carácter diferenciador", completa a responsável.

A figura

Vânia Afonso
Gestora da área de saúde

Vânia Afonso, 37 anos, foi a grande impulsionadora desta equipa domiciliária de cuidados paliativos, após "sentir na pele" a insuficiência das respostas para estes doentes e para as famílias. A responsável da área da saúde na Santa Casa da Misericórdia de Arcos de Valdevez, onde trabalha desde 2008, candidatou o projecto ao programa Inovar em Saúde 2014, da Fundação Calouste Gulbenkian, acabando por ser um dos cinco premiados. Três anos volvidos (o prazo de financiamento garantido), esta enfermeira de formação, com pós-graduações em cuidados paliativos e gestão, tem agora o desafio de garantir a continuidade da equipa e a sustentabilidade deste serviço a partir de 2018.


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