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Em Portugal, a taxa de poupança tem vindo a cair, é uma tendência de longo prazo. Na sua opinião, há algum aspecto psicológico que explique esta evolução?
Não sei se há uma característica dos portugueses que possa explicar exactamente isso. Mas a verdade é que nós latinos tendemos a ter uma leitura do mundo que nos rodeia onde colocamos um foco de controlo muito no exterior. Achamos que muitas das coisas que acontecem não acontecem por aquilo que fazemos mas porque, à nossa volta, alguém fez qualquer coisa. E isso pode estar, de certa forma, na base desta questão.
De que forma?
Existem estudos que fazem a correlação relativamente aos comportamentos da área financeira. Ao contrário do que provavelmente acontece ainda com a generalidade dos portugueses, quanto maior a noção de auto-controlo, de auto-regulação face aos nossos comportamentos, melhores são os nossos comportamentos genericamente ao nível financeiro. E, portanto, mais seguros nos sentimos relativamente à nossa situação presente e futura a esse nível. Também sabemos que não são só as dimensões psicológicas que entram aqui mas há, de facto, determinantes e variáveis psicológicas que impactam no comportamento ao nível financeiro e ao nível da poupança também.
E como é que se podem contornar estas variáveis psicológicas?
Com mais impacto, temos que apostar em prevenir essas situações e aí temos que trabalhar desde cedo. Temos que começar a trabalhar com as crianças nas escolas, mas também não podemos desresponsabilizar as famílias sobre um aspecto deste género. Ao nível financeiro, uma estratégia poderá ser a aposta em programas de desenvolvimento de competências, ao nível da auto-regulação e da autonomia, para a existência de um consumo mais responsável, para a construção de poupanças para, no fundo, prevenir situações de maior risco.
O que pode ser feito nesses programas?
Esses programas são coisas onde se trabalha com crianças com uma espécie de pequenas encenações em que se simula aquilo que pode acontecer. Estamos a falar de uma história que é simulada e onde se trabalham cenários com as crianças para poderem reflectir sobre diferentes comportamentos possíveis, sobre a tomada de decisão de determinado comportamento e aquilo que elas pensam e o que é que avaliam e o que é que poderiam pensar ou avaliar mediante as possíveis decisões que têm em cima da mesa. Desenvolvem-se as competências trabalhando muito em termos práticos com as crianças no dia-a-dia nas escolas, é um dos tipos de trabalho que pode ter bons resultados a prazo. Isso e a formação dos profissionais que lidam com as crianças no dia-a-dia para terem também cada vez mais atenção a estas áreas da literacia financeira e da educação financeira.
Há algum tipo de comportamento ou atitude que as entidades públicas podem ter para dar o exemplo e fomentar a poupança?
O que podemos dizer é que talvez se pudesse fazer mais acções com vista ao estímulo da poupança. Se se podem fazer campanhas de promoção de comportamentos noutras áreas, também se podem fazer campanhas de comportamento na área da poupança. Há também outros factores de ordem comportamental, que têm que ver com as mensagens que hoje em dia circulam na área financeira ou que tenham que ver com os produtos que são vendidos e a forma como são vendidos, que são importantes. Seria importante uma acção efectiva para que essa poupança exista.
Qual deve ser o discurso?
Talvez falte algum equilíbrio de discurso, porque a economia vive muito das percepções e da confiança. É importante dizer que não pode ser só nos momentos em que já tudo correu mal que temos que poupar. É preciso que o discurso de poupança não esteja simplesmente alinhado com o discurso dos cortes nos custos, é preciso separar estes comportamentos. Não há propriamente um discurso de poupança mas era importante que existisse um discurso de poupança que não fosse associado ao fatalismo, que fosse conjugado com aquilo que é necessário para que a economia continue também a funcionar.
Da psicologia à liderança
Francisco Miranda Rodrigues é bastonário da Ordem dos Psicólogos Portugueses desde Dezembro de 2016. Além de psicólogo, é consultor em desenvolvimento organizacional, liderança, eficácia pessoal e de equipas. Trabalhou nas áreas da direcção e gestão de recursos humanos, qualidade, ambiente e higiene, saúde e segurança no trabalho, treino de competências de comunicação, mediação e resolução de conflitos. Frequentou uma pós-graduação em Psicoterapia e Aconselhamento Educacional na APTCCI (Associação Portuguesa de Terapias Comportamental, Cognitiva e Integrativa). É autor do programa de desenvolvimento de competências sócio-emocionais "Atitude Positiva".
"O desenvolvimento sustentável do país influencia a saúde mental"
Ao mesmo tempo que a taxa de poupança está a cair, o consumo está a aumentar. E muito deste consumo é feito a crédito. Isso pode demonstrar que as famílias aspiram a ter mais do que aquilo que podem pagar?
Pode significar, mas também pode significar, por vezes, que as pessoas ainda estão a recuperar de situações do passado em que se viram confrontadas com dívidas que necessitam de pagar. E, por vezes, entram em créditos sobre créditos para fazer face a essas mesmas dívidas. Não foi há tanto tempo quanto isso que tivemos uma situação delicadíssima no país em que muitas famílias se viram sem casas por dificuldade de pagamento dos seus créditos. Não sei se estes créditos serão simplesmente para comprar viagens ou para outras coisas do género ou se a situação será sempre porque as pessoas não sabem viver dentro das suas possibilidades.
Mas essa pode ser uma situação perigosa?
Para algumas pessoas, a necessidade de satisfação é tão grande que acabam por incorrer em comportamentos de risco no consumo de produtos financeiros e de crédito. Isso é uma possibilidade. E os hábitos de consumo saudáveis e de poupança influenciam o bem--estar financeiro a nível familiar e o desenvolvimento sustentável do país também influencia a saúde mental e vice-versa. Quando as pessoas se sentem mais vulneráveis e com mais dificuldade em controlar o que está a acontecer à sua volta, necessitam de encontrar uma espécie de contrapartidas em termos de prazer e satisfação que não estão a encontrar na sua vida noutras dimensões e isso pode levar a perder ainda mais o controlo num ciclo vicioso.
Como é que se pode melhorar a consciência das famílias para o risco do sobreendividamento?
Temos que criar produtos de poupança mais atractivos e também combinar com as campanhas em que o discurso oficial que seja de apelo e de enfoque na poupança. Isso não existe, neste momento. Não existindo é natural que também os comportamentos continuem a ir mais para esta via ainda mais a seguir a uma situação em que as pessoas tiveram que fazer bastantes cortes naquilo que poderiam ter e agora tentam compensar um pouco.
Recentemente, a Ordem assinou um protocolo com os reguladores. Que outras iniciativas é que estão a preparar no âmbito da literacia financeira?
Estamos a trabalhar em muitos conteúdos para aquilo que são os manuais utilizados para a formação e literacia financeira, conteúdos esses que têm que ver precisamente com os enviesamentos e com os erros de tomada de decisão e são conteúdos adaptados para diferentes idades.