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Saga do operador do flash crash termina com final à Hollywood
A história de Navinder Sarao acabou com um merecido final à Hollywood.
Cinco anos depois de o trader ter sido preso na residência dos pais em Londres, acusado de manipular mercados, Sarao, de 41 anos, foi condenado por uma juíza dos Estados Unidos a voltar para casa com um ano de prisão domiciliar, escondido no mesmo quarto no qual cometeu os crimes.
Durante a sentença, proferida na terça-feira em Chicago, até os procuradores instaram a juíza a deixar Sarao ir para casa como um homem livre, citando o seu diagnóstico de autismo e a "cooperação extraordinária" para ajudar o governo a investigar outros casos. Mas a juíza distrital dos EUA, Virginia Kendall, insistiu que o manipulador em série sofresse algum tipo de punição por colocar em risco a economia global, além dos quatro meses de prisão que já havia cumprido no Reino Unido.
Sarao pode ter tratado os mercados como um jogo de computador, disse Kendall, mas isso "não afeta a seriedade do que aconteceu" em 6 de maio de 2010, quando os mercados perderam 1 bilião de dólares em cinco minutos antes de se recuperarem. Exatamente quanto a negociação de Sarao contribuiu para o chamado "flash crash" continua a ser objeto de debate.
A sentença coloca um ponto final numa das histórias do mercado financeiro mais notáveis da memória recente, que revela muito sobre a natureza precária dos modernos sistemas financeiros eletrónicos e do fracasso dos reguladores e das bolsas na vigilância adequada.
Fã de Messi
Sarao aprendeu a negociar nos mercados num escritório no andar de cima de um supermercado depois de responder a anúncio de jornal em 2003. Do nada, acumulou milhões de dólares, comprando e vendendo contratos futuros do S&P 500 enquanto usava um agasalho e um par de fones vermelhos para bloquear o som. Após alguns anos, voltou para o seu quarto para negociar sozinho, cercado bonecos de peluche e objetos de coleção de Lionel Messi, de acordo com documentos judiciais.
Sarao ganhou dezenas de milhões de dólares, mas não contou à família ou amigos porque temia que eles o tratassem de maneira diferente. A sua compra mais extravagante foi um Volkswagen usado. Mas, quando uma nova geração de participantes de mercado sofisticados e ultrarrápidos, conhecidos como traders de alta frequência, apareceu e tirou do mercado operadores diários como Sarao, tomou uma decisão fatídica de ripostar, pagando a um programador que construísse uma máquina chamada NAVTrader.
O programa, que permitiu a Sarao fazer e cancelar grandes ordens, enganando os algoritmos das empresas de alta frequência, mostrou-se extremamente eficaz: no dia de maior sucesso, Sarao faturou mais de 4 milhões dólares. Mas também desestabilizou os mercados, de acordo com o Departamento de Justiça dos EUA, inclusive no dia já volátil do "flash crash".
Reviravolta
Enquanto esperava para ser extraditado para os EUA, Sarao tornou-se um herói popular para muitos. Era visto como o David que enfrentou o Golias da indústria milionária das gestoras de ativos com práticas controversas que foram destacadas no livro "Flash Boys". Ainda assim, os advogados de Sarao tinham uma batalha difícil pela frente. É que Sarao guardou vídeos incriminatórios de quando estava a negociar nos mercados e enviou e-mails a programadores onde assumiu que pretendia "assustar o mercado" ["spoof (the market) down"].
Foram necessários mais cinco anos e um denunciante para Sarao ser apanahdo. Naquela altura, Sarao confiou o que tinha ganho a um grupo de investidores sem escrúpulos que lhe prometeram retornos garantidos de dois dígitos. Em vez disso, perdeu tudo o que tinha ganho - cerca de 70 milhões de dólares, de acordo com os seus advogados -, algo que só descobriram quando tentavam conseguir 5 milhões de dólares para pagar a fiança.
Com poucas alternativas, Sarao fechou um acordo em 2016, declarando-se culpado de falsificação e fraude eletrónica, crimes com sentenças máximas de 10 e 20 anos, respectivamente. Na época, parecia inconcebível que não passasse pelo menos alguns anos na prisão.
Mais uma vez aconteceu uma reviravolta. Sarao foi apenas a segunda pessoa a ser criminalmente acusada de pela relativamente nova prática de "spoofing" e na altura em que foi preso os procuradores do Departamento de Justiça e os responsáveis da CFTC eram relativamente ingénuos sobre o lado negro da negociação eletrónica nos mercados.
A fazer lembrar o filme "Apanha-me se puderes", Sarao utilizou os seus próprios vídeos caseiros para mostrar aos investigadores como se podia fazer batota nos mercados. Com a informação que providenciou, as autoridades norte-americanas reprogramaram o software que utilizam para identificar manipulações de mercado. Desde então, mas de uma dezena de pessoas já foi acusada de "spoofing", alguns deles que trabalhavam na HFT que Sarao tanto detestava.
Antes da sentença, Sarao pediu para dizer algumas palavras: "Gastei 36 anos a tentar encontrar o caminho para a felicidade com base numa mentira", disse Sarao, que com uma voz tranquila lia estas palavras escritas numa folha de papel. "Fiz coisas que a sociedade diz que te trará felicidade, mas não sabia o que fazer quando percebi que não era assim".
Sarao disse em tribunal que era viciado na negociação nos mercados, mas no tempo em que esteve preso percebeu que tal não lhe dava nada de profundo. "O dinheiro não compra felicidade. Estou feliz por ter percebido isso agora".
O flash crash
No dia 6 de Maio de 2010, sem que ninguém percebesse porquê, o índice industrial Dow Jones afundou mil pontos e centenas de títulos perderam, momentaneamente, quase todo o seu valor, num episódio marcante conhecido como "flash crash" que dificilmente será esquecido em Wall Street.
Por momentos, as acções de algumas empresas, como a Accenture PLC, transaccionaram a um cêntimo, enquanto outras dispararam para máximos. Quase um bilião de dólares desapareceram temporariamente, antes de serem restaurados minutos depois por uma inversão do mercado.
O colapso, soube-se em 2015, teve epicentro numa casa geminada em Hounslow, nos subúrbios de Londres, perto do Aeroporto de Heathrow. Esta morada foi o centro de operações de um dos responsáveis pelo colapso do mercado: Navinder Singh Sarao, um pequeno trader sem experiência conhecida em nenhuma das grandes firmas de Wall Street, que operava a partir da sua própria casa em nome da empresa Nav Sarao Futures Ltd. As transacções da pequena empresa de Sarao eram executadas através de um broker, a MF Global Holdings.
Sarao, descrito à Bloomberg, pelos vizinhos, como um tipo pacífico, introspectivo e que nunca "causou problemas" foi detido em 2015 pela Scotland Yard, acusado de 22 crimes pelas autoridades norte-americanas, incluindo fraude e manipulação do mercado.
Segundo promotores e reguladores assinalaram na altura, Sarao utilizou uma versão melhorada de um tipo de software disponível comercialmente para manipular contratos de futuros sobre índices de acções, lançando as bases para o declínio do índice. Na prática, o programa informático gerava uma enorme quantidade de ordens de venda de títulos no mercado de futuros, que Sarao conseguia depois cancelar antes destas serem executadas. Uma prática ilegal conhecida por "spoofing" e que é concluída com a compra dos mesmos títulos antes destes recuperarem da pressão vendedora criada artificialmente.
A investigação do Departamento de Justiça norte-americano concluiu que Sarao foi responsável por uma em cada cinco ordens de venda que foram dadas durante o frenesim do mercado. O trader, que tinha 31 anos na altura do incidente, obteve 40 milhões de dólares de lucros ilícitos entre 2010 e 2014, incluindo 879 mil dólares (cerca de 819,8 mil euros) no dia do "flash crash".
No dia do "flash crash", Sarao colocou ordens de venda de cerca de 200 milhões de dólares que resultaram "numa persistente pressão descendente" sobre o preço dos contratos, de acordo com a acusação do Departamento de Justiça. As ordens foram, então, substituídas ou modificadas 19 mil vezes antes de serem canceladas no período da tarde.
"Kiss my ass"
O CME Group, a bolsa onde são negociados os futuros sobre o S&P500 mais usados no mercado, confrontou Sarao acerca das suas actividades, depois de concluir que algumas delas estavam a ter um impacto significativo nos preços da abertura.
Num e-mail enviado em Março de 2010, o trader disse à CME que estava simplesmente a "mostrar a um amigo o que acontece do lado da oferta do mercado quase 24 horas por dia, pelos ‘geeks’ da negociação de alta-frequência".
O trader informou ainda que tinha cancelado grandes quantidades de ordens manualmente, sem a ajuda de programas automatizados. Às autoridades britânicas garantiu ser um trader "da velha escola", muito bom "nos reflexos e a fazer as coisas rápido".
Três semanas depois do incidente, Sarao contou ao seu broker a resposta que tinha dado aos pedidos de esclarecimento por parte da CME. A resposta terá sido simplesmente: "kiss my ass".
Rita Faria