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Como o trader do "flash crash" perdeu 50 milhões de dólares

Onde está o dinheiro, Nav? Era esta a pergunta dos advogados do operador bolsista britânico Navinder Singh Sarao, que começaram a perceber que ele não conseguiria pagar a fiança porque a maior parte de sua riqueza estava presa em investimentos e fundos no exterior, cada um mais complexo do que o outro.

Bloomberg
18 de Fevereiro de 2017 às 15:00
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Passou muito tempo até Navinder Singh Sarao aceitar que poderia ter sido enganado e despojado de 50 milhões de dólares (46,9 milhões de euros). Na prisão de Wandsworth, em Londres, atormentado pela ansiedade e incapaz de dormir, o homem apelidado de "Flash Crash Trader" foi entendendo a situação tão lentamente quanto a Primavera fazia caminho até ao Verão do lado de fora da janela gradeada da sua cela na prisão.

 

O trauma das últimas semanas tinha sido difícil de processar. A 20 de Abril de 2015, o homem de 36 anos, franzino e de olhos grandes, tinha dormido pacificamente no mesmo quarto suburbano em que dormia desde que era pequeno. No dia seguinte, foi preso e levado para uma esquadra da polícia, alvo de 22 acusações de fraude e manipulação de mercado que somavam uma pena máxima de 380 anos.

 

Segundo o governo norte-americano, o "day trader" britânico tinha ganho dezenas de milhões de dólares através de uma prática ilegal chamada "spoofing" - incluindo na manhã de 6 de Maio de 2010, quando o Dow Jones Industrial Average caiu quase 1.000 pontos em minutos, antes de recuperar em seguida. O grau de culpabilidade de Sarao no chamado "flash crash", ou queda-relâmpago, é fortemente questionado, mas o incidente expôs as bases instáveis nas quais os mercados financeiros, hiper-rápidos e dominados por computadores, actualmente assentam.

 

A fiança de Sarao foi fixada em 5,05 milhões de libras (5,92 milhões de euros). Era uma soma elevada, mas, segundo o balanço da sua empresa, a Nav Sarao Futures Limited, ele tinha ganho 30 milhões de libras (35,1 milhões de euros) nos cinco anos anteriores. Segundo alguns jornais, que apelidavam Sarao de "o patife de Hounslow" especulavam que no fim-de-semana ele regressaria à casa da família, no bairro pobre da região oeste de Londres. No entanto, o pesadelo piorou.

A casa de Sarao, em Hounslow, na zona oeste de Londres
A casa de Sarao, em Hounslow, na zona oeste de Londres

Onde está o dinheiro, Nav? Era esta a pergunta dos seus advogados, que começaram a perceber que Sarao não conseguiria pagar a fiança porque a maior parte de sua riqueza estava presa em investimentos e fundos no exterior, cada um mais complexo do que o outro. Os dias na prisão de Wandsworth, a fortaleza da era vitoriana onde Sarao foi colocado junto de violadores e criminosos violentos, transformaram-se em semanas.

 

Após quatro meses de impasse, a sua equipa de advogados fechou um acordo com as autoridades: se o Departamento de Justiça dos EUA e a Comissão de Negociação de Futuros de Commodities (CFTC, na sigla em inglês) não se opusessem a uma redução da fiança para 50.000 libras, o escritório de advocacia actuaria como caçador de recompensas, assumindo a responsabilidade de ir atrás dos milhões desaparecidos na condição de os seus honorários serem pagos se conseguissem encontrá-los.

 

Eles assumiram uma tarefa complexa. Uma análise dos investimentos de Sarao de 2005 até hoje, com base em dezenas de entrevistas e milhares de páginas de documentos, revela mais uma mudança imprevista numa história já de si extraordinária. Navinder Sarao, o "sábio do trading" acusado de sabotar os mercados financeiros internacionais sem sair do seu quarto, pode, ele mesmo, ter sido a vítima ingénua daquilo que os seus advogados retratam como uma série de trapaças que o despojaram praticamente de cada cêntimo que tinha ganho.

 

Sarao preferiu não comentar este trabalho de análise da Bloomberg. O seu advogado, Roger Burlingame, do escritório Kobre & Kim, de Londres, disse a um juiz dos EUA, em Novembro passado, que todos os activos do réu "foram roubados". Sarao investiu em empreendimentos cujos fundos ele, o escritório de advocacia e a CFTC não conseguiram recuperar, disse Burlingame. "Na verdade, ele tem algumas capacidades extraordinárias no que diz respeito ao reconhecimento de padrões e a certos tipos de habilidades matemáticas, mas ele tem sérias limitações sociais."

 

A carreira de Sarao na negociação em bolsa começou sem grandes expectativas em 2002 na Futex, uma empresa incipiente que operava num escritório sem glamour, localizado a uma hora do centro financeiro de Londres, e que reunia aspirantes a traders em troca de uma percentagem que podia chegar até 50% dos seus ganhos. Numa sala repleta de recém-formados da faculdade e de "desocupados", Sarao destacou-se.

 

Só quando deixou a Futex, em 2008, e passou a trabalhar por conta própria, é que Sarao começou a ganhar dinheiro de verdade. As suas declarações de resultados mostram que os seus activos deram um salto de 461.000 libras para 14,9 milhões de libras no período de 12 meses que terminou em junho de 2009, muito antes de ele recrutar um programador para construir um sistema que, segundo as autoridades, foi desenvolvido para enganar o mercado.

 

Para tentar reduzir a sua carga tributária, ele foi apresentado pelo seu contabilista a John Dupont, director do braço londrino de uma empresa de assessoria financeira chamada Montpelier Tax Consultants, com sede na Ilha de Man.

 

Dupont, na época com 30 e poucos anos, era um vendedor cheio de energia cujo sotaque passava do estilo classe alta para o linguajar popular, dependendo do interlocutor, segundo um ex-funcionário do escritório. Operando a partir de um escritório na rua Cockspur, em West End, Londres, os membros da sua equipa telefonavam a empreiteiros, "day traders" e banqueiros e tentavam convencê-los a adoptar uma série de planos para reduzirem as suas cargas tributárias, revelam documentos a que a Bloomberg teve acesso.

 

Em 2009, a conselho da Montpelier, Sarao entrou num complexo esquema de compra de acções para receber dividendos (dividend-stripping) que resultou numa forte redução da sua carga tributária, segundo um assessor próximo de Sarao que forneceu informações sob a condição de anonimato. Feliz com o resultado, Sarao foi ainda mais longe no ano seguinte, acrescentou a mesma fonte.

 

Na equipa de Dupont estava Miles MacKinnon, um chamado "introdutor", que tinha deixado a faculdade para jogar rugby por um breve período antes de integrar o centro financeiro de Londres. Durante quatro meses do ano de 2010, a empresa de Sarao só teve mais um administrador: MacKinnon.

 

Mais ou menos na mesma época, Sarao criou dois fundos em benefício de empregados, na ilha de Nevis (Caraíbas), segundo um documento apresentado no seu processo. Ele colocou os seus ganhos nesses fundos, depois concedeu a si mesmo empréstimos sem juros para poder negociar em bolsa e viver disso, disse o assessor. Com este esquema, Sarao evitava o pagamento de impostos corporativos. Um dos veículos chamava-se "NAV Sarao Milking Markets Fund".

 

Dupont e MacKinnon disseram num e-mail que "não apresentaram, nem aconselharam" a opção do uso de fundos em Nevis.

 

Sarao tinha uma extraordinária capacidadede de atrair personagens controversos. Ele pediu conselhos ao fiscalista Andrew Thornhill, que em 2015 recebeu cinco acusações de má conduta da associação britânica de advogados. E, conforme publicou o Wall Street Journal, um dos fundos de Sarao esteve, durante um certo período, associado a David Cosgrove, o irlandês que geria a Belvedere Management e que foi proibido - pelas autoridades das Maurícias - de exercer as funções de director da gestora de activos devido a violações regulatórias. Thornhill preferiu não comentar. Cosgrove não respondeu aos e-mails.

 

Em 2011, o governo britânico encerrou aqueles fundos de Sarao, que reembolsou os empréstimos e reestruturou o seu negócio. A Montpelier foi investigada e dissolvida e cerca de 3.000 dos seus clientes receberam ordem de um juiz para pagar 200 milhões de libras em impostos atrasados. Posteriormente, as acusações de fraude contra dois directores foram retiradas.

 

Naquele ano, Sarao tinha triplicado os seus activos para 42,5 milhões de libras. Ele celebrou um acordo para investir numa entidade com sede na Ilha de Man chamada Cranwood Holdings, criada para a aquisição de terras na Escócia destinadas a acolherem mais tarde parques eólicos, segundo dois assessores de Sarao. Os documentos sobre o empreendimento apresentados ao território britânico ultramarino dão poucos detalhes, mas os assessores afirmam que Sarao colocou cerca de 12 milhões de libras na Cranwood - dinheiro ao qual Dupont e MacKinnon tinham acesso, afirmam.

 

Em algum momento em 2012, Sarao foi apresentado - novamente por meio de Dupont e MacKinnon - a um mexicano atarracado e enérgico chamado Jesús Alejandro García Álvarez, que estava à procura de investidores para a sua empresa, a IXE Group. García dizia ser de uma família de multimilionários proprietários de terras e de agricultores que operavam em escala industrial, com muitas terras em todo o mundo. Ele tinha chegado a Zurique vindo da América Latina alguns anos antes e, desde então, trabalhava arduamente para construir uma reputação.

 

A 20 de Agosto de 2012, mostram documentos, Sarao concordou em transferir cerca de 17 milhões de dólares a García e à sua empresa - de longe o maior investimento de Sarao e uma fatia substancial do seu património líquido. Posteriormente, investiu mais 15 milhõesde dólares, segundo uma fonte conhecedora do processo. Apesar de ambos se terem reunido apenas algumas vezes, Sarao descrevia García aos seus colegas como um amigo.

 

Quando foi preso, em Abril de 2015, Sarao tinha cerca de 50 milhões de dólares "presos" em investimentos em todo o mundo, segundo algumas pessoas com conhecimento do assunto, que até agora não têm a certeza se está tudo contabilizado. Só quando os seus advogados tentaram recuperar o seu património é que ele foi obrigado a enfrentar a possibilidade de o dinheiro ter desaparecido. Sarao foi libertado naquele mês de Agosto depois de os seus pais hipotecarem a residência da família como garantia da fiança de 50.000 libras.

 

Em Novembro do ano passado, após uma mal sucedida tentativa de extradição, Sarao voou para Chicago, onde se declarou culpado de uma acusação de fraude electrónica e de outra de "spoofing" - que envolve a apresentação de ofertas de compra ou venda com a intenção de as cancelar antes de serem executadas. Ele foi condenado a pagar 38,4 milhões de dólares à CFTC e ao Departamento de Justiça dos EUA, que determinou que, do dinheiro que ele ganhou com "day trading", apenas 12,8 milhões foram obtidos com fraudes no mercado.

 

Sarao deverá ficar a conhecer a extensão de uma possível pena de prisão ainda este ano, tendo obtido permissão para voltar para Hounslow até a decisão sair. Lá, está proibido de negociar em bolsa e, apesar de ter quase 40 anos, foi confiado aos cuidados do pai.

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