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Portugueses pouco capacitados para a mudança

Portugal é um país socialmente frágil, pouco capaz de se mobilizar individual e socialmente mas, estranhamente, com elevados níveis de satisfação e felicidade. O estudo "Necessidades em Portugal Tradição e tendências emergentes", revela, entre muitas outras realidades, que 57% das famílias vive com menos de 900 euros mensais.

01 de Julho de 2009 às 15:29
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Portugal é um país socialmente frágil, pouco capaz de se mobilizar individual e socialmente mas, estranhamente, com elevados níveis de satisfação e felicidade. O estudo "Necessidades em Portugal – Tradição e tendências emergentes", revela, entre muitas outras realidades, que 57% das famílias vive com menos de 900 euros mensais.

O VER quis perceber, afinal, como se sentem os portugueses com a vida e, para tanto, conversou com Teresa Costa Pinto, socióloga do Centro de Estudos Territoriais do ISCTE, que realizou este estudo encomendado pela TESE

No país vive-se um clima de desconfiança nos outros e nas instituições e as condições de vida precárias atingem uma fatia significativa da população, que se alarga para além dos 20% que vive tradicionalmente no limiar da pobreza. Os níveis de desigualdades sociais acentuam-se, com cerca de um terço da população a viver situações de precariedade - e diariamente preocupada com a sua sobrevivência. Factores de privação como não conseguir usufruir de uma baixa médica na totalidade por razões económicas ou gozar uma semana de férias fora de casa atingem hoje 35% dos portugueses.

Embora as difíceis condições em que muitos portugueses vivem hoje coincidam com um dos mais fracos níveis de satisfação com a vida da União Europeia, o grau de satisfação (6,6 numa escala de 1 a 10) e o grau de felicidade declarado pelos 1.237 inquiridos deste estudo (cujo grau de confiança se situa nos 95%) é, no mínimo, aparentemente surpreendente.

O estudo, que coordenou cientificamente em conjunto com Isabel Guerra, revela que os portugueses, embora cada vez mais pobres e individual e socialmente desmobilizados, se consideram felizes. A resignação é uma característica da nossa população?

Não temos estudos comparativos que nos permitam avaliar os níveis de confiança em si, nos outros e nas instituições – temos, sim, dados parcelares. Mas, situando esses indicadores no contexto deste questionário, temos de facto níveis muito baixos de confiança nestes três factores: no primeiro, encontrámos sintomas de um certo apaziguamento ou conformação que revelam, por exemplo, que muitos portugueses não estão satisfeitos com as suas condições de trabalho (ganham mal, não têm autonomia e não têm perspectivas de mudar a sua situação laboral). A este respeito, mais de um terço dos inquiridos manifesta que gostaria de mudar mas, destes, raros são os que dizem ter feito algo para promover isso mesmo, o que denota alguma falta de energia e disponibilização para a mudança, no que concerne o seu percurso de vida.

Outro campo onde esta atitude é muito visível é relativamente à conformação com o grau de instrução adquirido: é sabido que Portugal ainda tem um défice de escolarização enorme relativamente a outros países, nomeadamente aos europeus. A satisfação média com o nível de instrução adquirida é de 6,6 numa escala de 1 a 10, o que é manifestamente positivo. Simultaneamente, 75 por cento dos inquiridos não demonstra intenção de voltar a estudar, ou seja, não interiorizou ainda a necessidade de ter um processo de aprendizagem ao longo da vida, numa era de conhecimento que exige outros perfis de qualificações. Mais: os que anunciam vontade de estudar são os mais qualificados, o que pode acentuar ainda mais o fosso das desigualdades sociais. Face a esta instabilidade no trabalho, que é objectiva, já que quarenta por cento tem vínculos precários no trabalho, temos uma percentagem de desemprego situada nos 10,5 por cento. Contudo, a maioria dos inquiridos acredita não ser provável perder o emprego e até poder trabalhar no mesmo local até à reforma. Estes indicadores são algo paradoxais entre si, mas mostram a falta de capacitação que as pessoas têm para mudar, para exigir, para reivindicar.

Na dimensão da confiança nos outros, que apresenta níveis muito baixos (4,5 numa escala de 1 a 10), percebemos que quando não se confia nos outros dificilmente se constituem laços comuns de conforto, de confiança, de solidariedade. Isto é chocante, do ponto de vista das possibilidades de acção colectiva. Cada um está fechado no seu mundo, desconfia dos outros e isso inibe qualquer possibilidade de empenhamento.

No terceiro nível, o da confiança nas instituições, os resultados são igualmente baixos, principalmente em relação às instituições públicas e, nestas, às de âmbito governativo. Há claramente uma maior confiança nas instituições privadas e do Terceiro Sector, como os sistema de ensino ou de saúde privados, as ONG e as instituições de solidariedade social.

Estes três factores, combinados, não prenunciam nada de bom em termos da capacidade da sociedade portuguesa encontrar energia para, de facto, se ligar a projectos de vida pessoais ou colectivos.

Se os portugueses estão pouco mobilizados, se vivem cada vez com mais privações, se a pobreza atinge novos grupos, que leitura se poderá fazer dos graus de satisfação com a vida e de felicidade, acima da média europeia?

A questão que se coloca é se a falta de confiança nos outros chega a ser sentida como um problema. Aquilo que encontrámos neste inquérito ao nível da satisfação com a vida e ao nível dos índices de felicidade é revela que, pese embora este clima de desconfiança nos outros e nas instituições, pesem as condições de vida precárias para uma fatia significativa dos portugueses (que ultrapassa os 20 por cento da população que está estatisticamente definida como vivendo no limiar de pobreza), os portugueses tendem a manifestar sentimentos elevados de satisfação com a vida e ainda mais elevados quanto ao grau de felicidade (nomeadamente 6,6 e 7,3, na escala de 1 a 10).

Este resultado, para quem domina alguma literatura sobre qualidade de vida e sobre níveis de satisfação individual, acaba por não ser surpreendente: é muito comum haver desfasamentos entre condições objectivas de vida e a expressão de níveis de satisfação. Às vezes, em más condições de vida existem indivíduos satisfeitos e felizes. Esta realidade explica-se sociologicamente por vários factores. Antes de mais temos de relativizar a questão dos elevados níveis de satisfação porque, apesar de tudo, no contexto europeu, somos dos países com mais baixos níveis de satisfação com a vida e também de felicidade – estamos abaixo da média europeia, que é de 7,2, nos níveis de satisfação com a vida, e aproximamo-nos de clusters de países que não pertencem à Europa dos 15, mas sim ao grupo de recém-entrados na UE. Portanto, no contexto europeu, estes resultados não podem ser lidos de uma forma linear.

Mas vale a pena referirmo-nos ao contexto português para percebermos melhor a razão para que a sintomas de vulnerabilidade e de privação não corresponda uma insatisfação acentuada, como seria de esperar. Julgo que tal facto tem muito a ver com a lógica de desenvolvimento da sociedade portuguesa nos últimos trinta anos. Há trinta anos vivia-se muito pior do que hoje; entretanto, uma fatia alargada da população teve acesso a percursos de mobilidade social ascendente, através de bens e serviços e através da escolarização, por exemplo.

E através do acesso a grandes níveis de consumo, nomeadamente através do crédito...

Sim, também, e a população não estava habituada. É por isso que, comparativamente ao que se teve e ao percurso que se fez nestas décadas, a realidade actual é avaliada de forma positiva. Este factor tem de ser valorizado e é uma das explicações para estes níveis de satisfação relativamente elevados: por um lado, as pessoas fazem comparações temporais - “eu já vivi pior” -, por outro, fazem comparações sociais - “ eu vivo mal, mas há quem viva pior” e, por outro ainda, o que nós temos em Portugal são populações com níveis de aspirações ainda francamente baixos, isto é, com expectativas que ainda não atingiram um nível suficiente para as pessoas sentirem outro tipo de necessidades, para serem mais exigentes com a sua qualidade de vida.

E, portanto, quando perguntamos aos portugueses o que poderia melhorar a sua qualidade de vida dos portugueses as respostas são: mais dinheiro, mais saúde ou melhor acesso a cuidados de saúde, encontrar emprego ou mudar de emprego. Tratam-se, pois, de necessidades muito primárias, de recursos físicos muito ligados à própria sobrevivência. Não temos a expressão de necessidades mais elaboradas, mais centradas no bem-estar, no desenvolvimento ou na realidade pessoal. E as aspirações são moduladoras das necessidades.

Quando o inquirido é confrontado com as questões "é feliz ou está satisfeito com a sua vida" não haverá aqui algum factor de inibição nas respostas dadas, isto é, as pessoas não têm alguma dificuldade em admitir que não se sentem felizes?

Claro que neste tipo de apreciação é difícil, sobretudo, falarmos da nossa própria vida. Pode haver aí alguma razão para a discrepância dos números que resultam deste estudo, mas essa razão não é suficiente para explicar porque é que estas média são coincidentes com os resultados de outros estudos, a nível internacional, que contemplam Portugal. Admito que haja alguma reactividade das pessoas em dizerem mal da sua própria vida, mas essa será uma margem residual, no que concerne a explicar este desfasamento entre a fraca qualidade de vida e os níveis de satisfação com a mesma.

O estudo conclui que 35% da população vive com factores de privação e 57 por cento dos agregados têm orçamentos familiares abaixo dos 900 euros. Quais são as principais privações que afectam a população portuguesa?

Apesar desses 35 por cento que vivem situações de privação média ou alta, o que significa que estão aqui incluídos outros grupos, para além dos tradicionalmente pobres, temos uma prevalência da privação nula ou baixa, o que não está de acordo com a estrutura de rendimentos que obtivemos. Com o nível de rendimentos apresentados, seriam de esperar níveis de privação ainda maiores e há factores que explicam isso: 11% da população recebe apoios institucionais, uma parte de rendimentos provêm da economia subterrânea [rendimentos que não são declarados] e a família surge como principal ponto de apoio, incluindo a nível material.



Para o índice de privação tivemos em conta sete itens: anualmente pagar uma semana de férias fora de casa; gozar da totalidade da baixa médica; manter a casa aquecida; em datas festivas poder oferecer presentes; receber amigos ou familiares em casa para tomar uma refeição; comprar todos os medicamentos receitados; fazer diariamente uma refeição de carne ou de peixe.

Estes itens são coincidentes com os do European Quality of Life Survey, até para permitir uma análise comparativa. Mas para além destes itens (cujas respostas, em 35% apontaram para níveis de privação media – três destes itens - e alta quatro ou mais itens -, os resultados mostram-nos que cerca de um quinto dos inquiridos (e em alguns casos até mais) têm dificuldades dramáticas em fazer face a despesas do seu quotidiano, como pagar a renda da casa (21%), a alimentação (20%) ou as despesas escolares (17%). Estas são as dificuldades mais penalizadoras, pois têm que ver com a sobrevivência no quotidiano.

Ao nível do índice de privação, o que emerge é que estas percentagens se alargam quando se tratam não de despesas básicas mas de despesas relacionadas com a qualidade de vida, como passar uma semana de férias fora de casa ou, ainda mais gravoso, poder gozar a totalidade de uma baixa médica. O que demonstra que as dificuldades se largam hoje a grupos que incluem novos perfis de pessoas em situação de vulnerabilidade, como os desempregados, os jovens, que são qualificados mas não conseguem encontrar trabalhos compatíveis, as famílias monoparentais ou as pessoas que vivem sozinhas, por viuvez ou divórcio.

Quais são as necessidades mais emergentes dos portugueses?

São necessidades ainda muito tradicionais, muito dominadas pelos traços da privação e da precariedade nos rendimentos, da falta de vínculos laborais e da incerteza face ao futuro.

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