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Espécie humana, versão 2.0?

As denominadas tecnologias de aperfeiçoamento - que representam os mais recentes, promissores e polémicos avanços na área das ciências biomédicas – têm vindo a despoletar debates sérios não só no que respeita às suas implicações éticas, mas também na forma como definimos humanidade .

Espécie humana, versão 2.0?
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Estamos a caminhar para uma “artificialização” do ser humano ou, pelo contrário, a capacidade que temos para nos “aperfeiçoar” é, exactamente, aquilo que nos define enquanto espécie? O debate está aberto…


Desde os seus primórdios que a Humanidade tem utilizado a tecnologia para perfeiçoar o meio que a envolve e, em simultâneo, as suas próprias capacidades. Todavia e nas décadas mais recentes, os progressos tecnológicos têm dado origem a um debate vivo sobre o que significa na actualidade, a natureza humana.

Muito provavelmente, os mais importantes (e polémicos) avanços tecnológicos da nossa história recente são aqueles que, de uma forma ou outra, estão relacionados com as ciências biomédicas. E, consequentemente, com os novos desafios que estes progressos colocam à ética. A biologia humana, apesar de esconder ainda inúmeros mistérios, tem tido uma evolução sem precedentes, não só no tratamento e prevenção de doenças, como também nas terapias relacionados com as células estaminais, a medicina regenerativa, a manipulação genética, novos agentes farmacológicos ou ainda no que respeita ao aperfeiçoamento cognitivo.

Estas descobertas – conhecidas como tecnologias de aperfeiçoamento (“enhancement technologies” em inglês) – estão a dar origem tanto a uma vaga de aplausos e esperança, como a movimentos de oposição e repulsa. Afinal, “mexer” na natureza humana tem implicações não só éticas, como religiosas, sociais e políticas.

Se há quem defenda que estas novas tecnologias não serão, num futuro próximo, nada que se compare à forma como já transformámos a nossa mente e corpo no passado, também há quem acuse que este “aperfeiçoamento” artificial é, de alguma forma, contranatura. Por último, existem também aqueles que acreditam que esta capacidade de melhorarmos a espécie humana é, exactamente, aquilo que nos define como verdadeiros humanos.

O VER pretende, neste artigo, desmistificar algumas destas novas tecnologias e apresentar os argumentos, pró e contra, para a sua utilização.

Expressão da humanidade ou objectivos imorais?
Se os argumentos no que respeita ao tratamento e prevenção de doenças são aceites de uma forma mais passiva, o mesmo não acontece com o facto de estas mesmas tecnologias terem o potencial de melhorarem significativamente uma panóplia de aspectos da função humana – ou seja, de aperfeiçoar não só a geração actual como as gerações futuras. O debate começa logo neste ponto: será o aperfeiçoamento humano aceitável e o quão longe será permitido ir para perseguir este objectivo? O que irá representar a utilização de tecnologias de aperfeiçoamento para o futuro da humanidade e o que queremos exactamente dizer quando falamos de humanidade? Tecnologias como o aperfeiçoamento cognitivo, por exemplo, irão exacerbar a desigualdade social, dado que serão as elites a ter a possibilidade de as utilizar em primeiro lugar? Ter a oportunidade de “erradicar” algumas propensões para determinadas doenças nos nossos filhos significa que estamos a subverter a ordem natural das coisas?

São estas e muitas outras questões que, para além de terem de ser devidamente consideradas, fazem parte dos debates éticos da actualidade. E, tal como todos os debates, existem sempre dois lados da moeda a considerar.

Uma das preocupações mais proeminentes no que respeita às tecnologias de aperfeiçoamento reside no facto de a sua utilização poder comprometer a humanidade ou nos transformar em outra coisa – ou “para além de” – humana e, por consequência, colocar em perigo a nossa própria espécie. Sara Chan, investigadora no Instituto de Ciências, Ética e Inovação, da Universidade de Manchester publicou recentemente um paper intitulado “Aperfeiçoamento, evolução e os futuros possíveis da Humanidade” que responde, de forma muito bem sustentada, a esta questão. Para a investigadora, a utilização deste tipo de aperfeiçoamentos – sejam genéticos ou de outra natureza – não causarão o cessar da nossa humanidade ou a perda das qualidades essenciais que a definem. Pelo contrário, o advento, por exemplo, “do aperfeiçoamento genético significa não o fim da raça humana, mas o passo seguinte no seu processo contínuo de evolução”.

Uma visão similar é a de Allen Buchanan, professor de filosofia na Universidade de Duke e consultor do Concelho de Bioética da mesma universidade, para além de autor do livro Better Than Human: The Promise and Perils of Enhancing Ourselves, o qual se dedica, tal como otítulo indica, às promessas e perigos deste “aperfeiçoamento humano” e às suas implicações éticas.

Para Buchanan e por um lado, é possível afirmar que faz parte da natureza humana desejar aumentar ou melhorar as suas capacidades. “Os humanos já o fizeram no passado ao desenvolverem a literacia e a matemática, a par das instituições de ciência e, mais recentemente, os computadores e a Internet”, exemplifica. Mas e por outro lado, os que afirmam que não devemos promover a utilização deste tipo de tecnologias porque, de alguma forma, poderemos estar a destruir ou a interferir com a natureza humana e com a natureza no geral, têm a sua quota-parte de razão. Todavia, o especialista em ética também afirma que, a seu ver, existe um pressuposto errado no que respeita à natureza humana no sentido de que esta tem a perfeição possível: “considero, e apesar de não concordar com alguns ‘exageros’ nesta nova cruzada tecnológica, que se não interferirmos, continuaremos exactamente como estamos hoje – o que contradiz todas as ideias da evolução”, diz. E acrescenta que “é até possível que a única forma de evitarmos a extinção da nossa própria espécie, ou prevenir que a nossa condição actual piore sobremaneira, será a de aperfeiçoarmos as nossas capacidades”.

Uma outra visão é expressa por Simon Fuller, sociólogo e especialista em epistemologia social na Universidade de Warwick e autor do livro Humanity 2.0: What it Means to be Human Past, Present and Future. Para Fuller, a sua humanidade 2.0 propõe uma nova compreensão da condição humana que já não aborda “o corpo humano normal” como um dado adquirido. “Por um lado, estamos a aprender cada vez mais sobre a nossa continuidade relativamente ao ambiente que nos rodeia – em termos ecológicos, genéticos e de história evolucionista”, escreve. E, se tomarmos esta base como adequada, para o autor é fácil concluir que ser “humano” é uma sobrestimação. Por outro, diz, “estamos igualmente a aprender novas formas de melhorar as capacidades que, tradicionalmente, nos demarcaram do resto da natureza, sendo que os computadores constituem as ferramentas mais óbvias que nos chegam à mente quando falamos nesta capacidade de nos ampliarmos e expandirmos enquanto seres humanos”.

Chan vai ainda mais longe e tenta definir o que significa, realmente, “aperfeiçoamento”. Para a investigadora britânica, e neste caso em particular, significa algo que pode ser considerado um bem normativo: “algo que, uma pessoa racional, preferiria ter”. O que nos leva a uma outra questão ética. Se imaginarmos que as tecnologias de aperfeiçoamento serão apenas utilizadas para aumentar a nossa inteligência (através da melhoria cognitiva, já possível e que está a gerar uma enorme controvérsia) e a nossa saúde, as dúvidas avolumam-se quando se utiliza a tecnologia para motivos estéticos, por exemplo. Se para uns esta preferência recai na questão da autonomia pessoal, para outros é absolutamente criticável.

Os tipos de tecnologia que mais polémica geram nos debates de ética relativos ao aperfeiçoamento humano – nos quais se incluem a manipulação genética, os agentes farmacológicos e até as modificações cibernéticas – são muito recentes. Todavia, e como defende Chan, se dissociarmos as preocupações éticas de uma mera tecnofobia que está geralmente associada com a aplicação de novas descobertas, parece ficar claro que há muito que a sociedade aceitou e encorajou activamente a utilização de muitas tecnologias que também podem ser descritas como aperfeiçoamento (ou melhoria). Por exemplo, os suplementos dietéticos que melhoram a saúde e previnem o aparecimento de doenças, o fornecimento de próteses para pessoas com deficiência ou até os programas de vacinação que melhoram as nossas imunidades naturais a doenças infecciosas, todos eles podem ser considerados como tecnologias de aperfeiçoamento. Claro que é sempre possível argumentar que este tipo de exemplos constitui tratamento médico e não aperfeiçoamento tecnológico. Mas será que está é uma distinção moralmente aceite? Na verdade, são muitas as terapias que através da sua aplicação, resultam em melhoria e em tratamento. Os tipos existentes de terapias regenerativas com base nas células estaminais podem não só curar, mas melhorar a condição física do paciente. Será imoral rejeitá-las só porque são extremamente eficazes?

Sara Chan coloca uma questão pertinente para o debate: que diferença moral existe, a nível individual, entre melhorar uma função reduzida para níveis normais ou melhorar uma função normal para níveis “super-normais”? No fundo, a investigadora parece ir ao encontro das teses defendidas por Simon Fuller no que respeita ao conceito de “normal”. E, no adicionalmente, existem argumentos sólidos que provam que aquilo que consideramos como “normal” tem sofrido alterações profundas ao longo dos tempos, através de alterações ambientais e factores genéticos. E, num contexto de saúde, uma nutrição mais cuidada, o conhecimento científico e a intervenção da medicina moderna têm, desde sempre, contribuído para produzir aperfeiçoamentos ou melhorias na condição dita “normal”.

O exacerbamento das desigualdades sociais
Em Fevereiro último, uma equipa composta por especialistas em ética da Universidade de Oxford publicou um paper sobre as implicações da utilização da Estimulação Transcranial por Corrente Directa (TDCS, na sigla em inglês), que visa melhorar a cognição nos seres humanos e que promete o desenvolvimento da própria linguagem, da capacidade para a matemática e até da memória. Pesquisas realizadas nos últimos anos têm sido encorajadoras, se bem que ainda muito preliminares, no que respeita aos resultados obtidos em laboratório Em linguagem leiga, significa que esta é uma técnica que estimula o cérebro, através da utilização de eletródios colocadas no exterior da cabeça e que enviam pequenas correntes, de forma completamente indolor, para o cérebro com vista a aumentar a sua neuroplasticidade, tornando mais fácil aos neurónios formar as conexões que permitem a aprendizagem. O paper de Oxford alerta para o facto de a TDCS ter chegado a uma fase crítica na qual os riscos têm de ser cuidadosamente considerados antes de a pesquisa ir mais longe.

Obviamente que a presença de riscos é inerente a qualquer novo tratamento ou terapia, seja ele genético ou de outra natureza qualquer. E, o melhor caminho ético para qualquer uma destas acções é avaliar o equilíbrio entre riscos e benefícios. No caso destas novas tecnologias, não é algo muito fácil de se fazer, mas é melhor do que nada.

Especificamente no que diz respeito à TDCS, são muitos os que mostram o seu cepticismo, apelidando-a como mais um “neuro-mito”. Todavia, e mesmo que esta nova técnica vingue, as questões colocadas no paper de Oxford continuarão a pairar por muito tempo ainda. E isso deve-se ao facto de a TDCS ser apenas uma das muitas tecnologias que prometem melhorar a cognição, em terreno de igualdade com os chamados “fármacos inteligentes”, a engenharia genética e os interfaces entre cérebros e computadores. E à medida que se “mexe” com o cérebro das pessoas, os dilemas éticos e filosóficos continuarão a constituir uma prioridade nos debates sobre as suas implicações.

Todas estas novas tecnologias de aperfeiçoamento conduzem ainda a uma outra questão: a do exacerbamento das desigualdades sociais na medida em que os mais ricos terão vantagens acrescidas, caso as queiram utilizar, tal como aconteceu com outras tecnologias como os telemóveis e os computadores.

Para Buchanan, é muito natural que estas tecnologias venham ser extremamente caras e apenas disponíveis a uma elite. E se for essa a direcção a ser tomada, os problemas de desigualdade serão sérios. O que, aliás, já está a acontecer com outro tipo de medicamentos, já existentes no mercado, mas que apenas algumas pessoas têm acesso ou conhecimento da sua existência.

Como escreve o sociólogo Simon Fuller, estamos perante uma realidade que está muito mais popularizada do que os registos oficiais indicam: a utilização das chamadas “smart drugs” (que também estão à venda em Portugal) e que são crescentemente utilizadas por jovens que se querem sair bem nos exames ou por pessoas que as utilizam para ultrapassarem as ansiedades próprias de uma entrevista de emprego. “As pessoas andam a tomar estas substâncias e não demorará muito tempo até que ‘os outros’ sintam que estão a ser deixados para trás”, alerta Fuller. E acrescenta: “ A ideia de que poderemos vir a viver num mundo futuro onde as pessoas se sentirão obrigadas a ‘elevar’ o seu estado normal para acompanharem o ritmo daqueles que utilizam este tipo de substâncias que ‘aguçam’ o seu estado cognitivo é uma questão muito real. E viver na ansiedade de saber qual será o próximo passo de aperfeiçoamento, se existe o aperfeiçoamento suficiente para se saírem bem numa entrevista de emprego ou se alguém tem uma droga mais inteligente à qual o sujeito X não tem acesso, irá conduzir a um sentimento de obrigação relativamente a acompanhar o ritmo dos demais, principalmente num ambiente de mercado onde não existe regulação”.


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