Notícia
O “eterno” Américo Amorim
Américo Amorim morreu esta quinta-feira, 13 de Julho, com 82 anos.
Américo Amorim fez toda a escola primária calçado com socos de madeira e só ganhou o primeiro par de sapatos quando fez o exame da 4.ª classe. Não gostava de ler nem de escrever. De gestos largos e desabrido, preferia falar e dar ordens. Detestava as refeições de negócios. Não gostava de cinema. Era forreta: "Acima de zero é caro" foi uma das suas velhas máximas, ou ainda "receber à nascença e pagar na próxima geração". E muito desconfiado: "Costumo dizer que, na minha vida, vou até onde a minha sombra está." Simpatizante do FC Porto, fez amigos em todas as partes do mundo – mas também não lhe faltavam inimigos. Tinha mau feitio. Gostava unicamente de música clássica, mas era na vida empresarial que preferia amealhar notas.
Nasceu a 21 de Julho de 1934 em Mozelos, Santa Maria da Feira, Américo Ferreira de Amorim, de seu nome completo, cedo começou a ajudar a família nas tarefas agrícolas. Nas férias, labutava na fábrica de rolhas de cortiça fundada pelo avô. Aos 19 anos já era órfão de pai e mãe, tendo recebido de herança 2,5% da Amorim & Irmãos (os outros sete irmãos ficaram cada um com igual participação). Abandona então o Curso Comercial e entra nos quadros da fábrica. Primeiro ordenado mensal: 500 escudos (cerca de 2,5 euros).
De olhos bem abertos e os bolsos cheios de amostras de cortiça, percorre o Mundo. Como "quem tem uma origem modesta está bem em qualquer lado", aprende facilmente línguas, modos de estar e de ganhar negócios, métodos de penetração nos mercados e atracção de clientes. A internacionalização do grupo arrancava agora pelas mãos e a visão estratégica de um jovem Amorim.
De 500 escudos a 4,4 mil milhões
O primeiro ordenado mensal de Américo Amorim foi 500 escudos (cerca de 2,5 euros). Em Março de 2017, a sua fortuna estava avaliada, de acordo com a revista Forbes, em 4,4 mil milhões de euros. Era o homem mais rico de Portugal.
Três filhas e um império corticeiro
Em 1969, três factos marcantes: casa-se com Maria Fernanda Oliveira Ramos, que viria a dar-lhe três filhas (Paula, Marta e Maria Luísa), compra o seu primeiro carro novo (um Rover) e, juntamente com os seus irmãos, que detinham apenas 20% da empresa, passa a controlar 100% da Amorim & Irmãos. O chefe do clã tinha agora rédea solta para concretizar o sonho de chegar à liderança mundial da produção e distribuição de produtos de cortiça.
Para atingir tão grandiosa ambição, furou a então "cortina de ferro" para fazer negócios no Leste europeu e na ex-União Soviética, contornou o condicionalismo industrial durante o consulado de Oliveira Salazar – chegou a comprar alvarás industriais, algo que a lei proibia – e conseguiu passar incólume pelos tempos quentes pós-Abril de 1974. O Conselho da Revolução chegou a aprovou a nacionalização do sector da cortiça, que nunca viria a acontecer.
Com os trabalhadores do seu lado e um currículo de proximidade aos países comunistas, Amorim não só conseguiu manter o seu império corticeiro como até, aproveitando os preços de saldo da altura, comprar terras no Alentejo para alimentar as suas fábricas. Nos anos 70 e 80 reforça o império industrial através da compra de várias empresas, aquém e além-fronteiras. Na sua edição de 26 de Outubro de 1992, um artigo da "Forbes" intitulado "The King of Cork" punha Américo nas nuvens: "Amorim na indústria corticeira é o número um, dois, três, quatro e cinco."
Banca, telecomunicações, imobiliário e energia
Dez anos antes, construída a maior corticeira mundial, Américo Amorim diversifica a actividade e funda a primeira sociedade de investimento privada, a SPI, que mais tarde se transforma no primeiro banco privado português – o BPI. Em 1984, perante a recusa da instituição em transformar-se em banco comercial, parte para a criação do BCP. Em 1987 coloca a Corticeira Amorim em bolsa, participa na fundação da SPR (Sociedade Portuguesa de Capital de Risco) e na Ocidental Seguros, e faz uma "joint-venture" com o grupo francês Accor para a construção de hotéis em Portugal, entre outros negócios.
Chegado a 1991, concretiza um dos maiores negócios de sempre em Portugal: está na fundação da Telecel (hoje Vodafone), vindo quatro anos depois a vender por 100 milhões uma participação que lhe tinha custa apenas 15 milhões de euros.
Em 1993, por não concordar com o rumo dado por Jardim Gonçalves ao BCP, Américo vende os 15% que tinha nesta instituição financeira e faz nova investida no sector: cria o Banco Nacional de Crédito imobiliário (BNC), o qual viria a vender ao Banco Popular por troca de 4,5% do grupo espanhol.
Chegou a ser o primeiro accionista do Popular a nível individual, mas foi vendendo, aos poucos, a sua participação. Mantinha uma posição residual no capital da instituição.
Depois de em 1999 ter entrado e saído da então Petrogal, viria em 2006 a resolver um imbróglio ao Governo ao tomar com outros parceiros, através da Amorim Energia, um terço do capital da Galp Energia. "Eu comprei a Galp por ‘feeling’. Não perguntem como foi, eu quis comprar. Há coisas que nós fazemos por ‘feeling’ e eu sou muito assim. No caso Galp, fui intuitivo e tive visão estratégica", gabou-se.
"Falam-me da minha sucessão e eu digo que ‘sou eterno’"
Nesse mesmo ano, o homem mais rico de Portugal clamou o seu "profundo" sentido da eternidade. "O prazer que tenho hoje no trabalho é igual ao que tinha quando comecei. Às vezes, falam-me da minha sucessão e eu digo que ‘sou eterno’". Então com 72 anos, Américo continuava a olhar do alto dos seus 1,80 metros como um lobo solitário.
Amorim detestava que lhe perguntassem sobre quem iria tomar o seu lugar. Em Fevereiro de 2009, o Negócios voltava à carga sobre a mesma matéria. "Sr. Américo, podemos falar sobre a sua sucessão?" Do outro lado do auscultador, a resposta surgia em formato desafiador: "Mas eu morri?!", Contornamos então a questão: Ainda não pensa na reforma? Ups!, palavra maldita. "Acha que isto [leia-se império empresarial] existe em cima de cascas de laranja?! Deixe-me trabalhar!", atirou. Conversa acabada.
Dois meses antes, em Dezembro de 2008, numa outra entrevista ao Negócios, o empresário já se tinha mostrado indisponível para abordar o tema. "Então, se me sinto bem com a minha vida, se durmo com bastante tranquilidade, se me sinto feliz da forma como vivo, se me preencho com o meu ‘benchmark’ na utilização do meu tempo de lazer, família e economia, por que é que eu hei-de contrariar a minha felicidade?", justificava-se.
"Tratado de Tordesilhas" em 2005
Porém, apesar de garantir que a questão da sucessão não se coloca, o empresário começou, à entrada do novo século, a arrumar o seu portfólio de negócios.
Em 2001, deixou a presidência da empresa fundacional do grupo, a Corticeira Amorim, ao seu sobrinho António Rios Amorim.
Patriarca de um clã empresarial que inclui uma dúzia de sobrinhos, a quem gosta de tratar por "queridos champignons", Américo decidiu entretanto facilitar a vida às suas três filhas.
Na Primavera de 2005, assinou o Tratado de Tordesilhas: recebeu a metade que lhe faltava da Imobiliária – que vendeu, mais tarde, aos espanhóis da Chamartín por 500 milhões de euros – e entregou a metade que lhe pertencia na Amorim Turismo aos irmãos António e Joaquim.
A "holding" familiar ficou então reduzida à cortiça a uma área incipiente de novos negócios. Na esfera pessoal, Américo foi engordando o império: no final da década passada, além da posição na Galp e no Banco Popular, detinha 25% do banco luso-angolano BIC e 25% da marca de luxo Tom Ford, entre muitos outros negócios, como a têxtil Gierlings Velpor e a Quinta Nova da Nossa Senhora do Carmo.
Bancos no Brasil e em Moçambique, "private equities" ao fundo
Em 2011, Américo Amorim funda o Banco Único, em Moçambique, onde o grupo detém 36,4% do capital. E no ano seguinte entra no Banco Luso-Brasileiro, que está sediado em São Paulo, onde a posição portuguesa actual ronda os 43%.
A Corticeira Amorim, que em 2009 tinha despedido quase 200 pessoas, começava a dar entretanto sinais de que tinha dado a volta à crise mundial.
No ano anterior, Amorim tina criado a Amorim Global Investors (AGI), uma companhia de "private equity" nascida para investir 100 milhões de euros na compra de empresas e participações financeiras, mas que nunca conseguiu singrar e encontra-se desactivada.
Já a Finpro, uma "private equity" onde Américo Amorim investiu 35 milhões de euros e tinha como sócios o Banif, a Caixa Geral de Depósitos e o Instituto de Gestão de Fundos de Capitalização da Segurança Social, chegou a investir muitas centenas de milhões de euros, mas acabou na falência com uma dívida de 268 milhões de euros.
Soja, arroz e feijão na Zambézia; cocos, hotéis e moradias na Baía
Nos últimos anos de vida, Américo Amorim reforçou a sua paixão pelos negócios da natureza, investindo na agricultura em África e no Brasil Em Moçambique, na região da Zambézia, o grupo participa, em consórcio, num projecto de exploração de cerca de 19 mil hectares de terra, com várias culturas, especialmente de soja, arroz e feijão.
No Brasil, na região da Baía, o grupo é dono de um extenso coqueiral com cerca de 120 mil coqueiros, garantindo uma produção anual de 10 milhões de cocos.
Este vasto coqueiral faz parte do projecto imoturístico que o grupo Amorim detém no estado da Baía - um na Praia do Forte, outro em Maraú, envolvendo 30 milhões de metros quadrados, com frente de praia de cerca de 9,6 quilómetros, que prevê a construção de três hotéis, quatro centenas de moradias e mais de mil apartamentos.
Amorins assinam novo pacto familiar
Em 2015, 10 anos depois do primeiro Tratado de Tordesilhas familiar, o clã Amorim voltou a arrumar a casa, facilitando uma futura transferência de poder.
Afastado o irmão Joaquim, que, na sequência da adesão a um PER (Processo Especial de revitalização) com dívidas de 84 milhões de euros, vendeu a sua participação no grupo ao mano mais velho, a "holding" de topo da família, a Interfamília II, SGPS, passou a estar repartida por Américo e António Amorim, com 50% cada.
A Interfamília II detém 100% da Amorim – Investimentos e Participações (A-IP), cujo principal activo é a participação maioritária (52%) na Corticeira Amorim, onde Américo detém directamente uma participação de 19% e o seu irmão António 15%.
Os seis primos da quarta geração comprometem-se a continuar amarrados na Interfamília II, sendo que, caso optem pela separação, a Corticeira Amorim passará para as mãos do ramo de António Amorim.
Paula, a sucessora
Com três filhas, que aparentemente não tinham herdado do pai a vocação para liderar o grupo, Américo virou-se para os genros, para os sobrinhos, para os genros dos seus irmãos.
Nos anos 90, apostou em Jorge Armindo, que foi casado com uma sobrinha sua. Seguiu-se Rui Alegre, marido da sua filha mais velha. O divórcio com as mulheres do clã fez esfumar-se a possibilidade de um e outro subirem ao trono.
Entretanto, Paula Amorim, que tinha seguido a solo como empresária, à frente da rede de moda Fashion Clinic, desde Abril de 2012 é "chairman" da Galp Energia, substituindo o seu pai.
A confirmação de que a filha mais velha era a escolhida por Américo como sua sucessora surgiu no final de 2011, com a criação do grupo Américo Amorim, onde Paula assume o cargo de vice-presidente.
Marta e Francisco Rego, marido da sua irmã Luísa, também estão na administração do grupo, que conta ainda com Jorge Seabra, ex-dono da Coelima e único da equipa exterior à família.
Américo Amorim era o homem mais rico de Portugal, com uma fortuna avaliada em 4,4 mil milhões de euros, de acordo com a lista da revista Forbes, publicada a 20 de Março.