Notícia
Nótula sobre a concorrência desleal III
Na segunda parte deste trabalho deu-se notícia de alguma legislação estrangeira sobre concorrência desleal, de modo a detectar deficiências do CPI e a facilitar a sua compreensão, salientando-se o problema das sanções aplicáveis e sua efectivação.
[Na segunda parte deste trabalho deu-se notícia de alguma legislação estrangeira sobre concorrência desleal, de modo a detectar deficiências do CPI e a facilitar a sua compreensão, salientando-se o problema das sanções aplicáveis e sua efectivação. Retoma-se, em seguida, esse ponto.]
6. Como reagir à concorrência desleal ?
Como acaba de ver-se, nestas leis [suíça e espanhola] há uma clara intenção de clarificar o sentido da cláusula geral sobre a concorrência desleal – traduzida numa cuidadosa tipificação das práticas mais importantes actualmente conhecidas, em especial daquelas que assumiram particular relevo nas últimas décadas, e numa mais esclarecedora delimitação de certas zonas de fronteira – que não se encontra no CPI. E existe idêntica preocupação de clareza jurídica no que respeita às medidas de combate a este tipo de concorrência nociva, elencando-se as diversas acções judiciais de que os interessados podem lançar mão e definindo-se (de forma abrangente, em conformidade com o leque de interesses envolvidos) quem tem legitimidade para as mesmas. Salienta-se, ainda, uma clara preferência pelos meios de reacção civis, designadamente aqueles que não pressupõem a culpa do agente, como a acção inibitória. Alguns comportamentos especialmente graves também surgem sancionados criminalmente, dependendo a acção penal de queixa.
6.1 O texto do CPI: a concorrência desleal é punível com coima. - Deixando de parte o problema da legitimidade processual, centremo-nos nos tipos de acções ou meios de combate à concorrência desleal. O CPI limita-se:
1) Por um lado, a considerar os actos de concorrência desleal como ilícitos contra-ordenacionais (art. 331), sendo competente para a instrução dos processos a Inspecção-Geral das Actividades Económicas (art. 343) e cabendo ao conselho de administração do INPI (Instituto Nacional da Propriedade Industrial) decidir e aplicar as coimas; a esse respeito, remete-se, ainda, para o DL 28/84, designadamente no que toca à responsabilidade contra-ordenacional das pessoas colectivas e à responsabilidade por actuação em nome de outrem (art. 320);
2) Por outro lado, a indicar que a «propriedade insdustrial» tem as garantias da propriedade em geral (art. 316), sendo aplicável o procedimento cautelar comum (art. 339).
O acento tónico é, pois, colocado na repressão pública deste tipo de concorrência. Contudo, as vias de reacção não se limitam a ela. Vejamos mais de perto.
6.2 Acções cíveis. Em especial, a acção inibitória. – Em primeiro lugar, a lesão de concretos «bens» patrimoniais poderá dar origem a uma acção de responsabilidade civil. É verdade que esta requer a prova, em geral difícil, dos respectivos pressupostos – isto é, da ilicitude do acto, da produção de um dano, da actuação culposa do agente e de um nexo de causalidade adequada entre o acto e o dano - e, em especial, uma problemática quantificação desse dano, que a tornam naturalmente demorada e de resultado muitas vezes incerto. Ainda assim, é importante referi-la.
Em segundo lugar, cabe mencionar as acções tendentes a prevenir e a fazer cessar as práticas desleais - genericamente, acções inibitórias -, bem como a remover os seus efeitos (por exemplo, através da imposição de acto ou conduta rectificativa). Tais acções não dependem da prova de um comportamento culposo que tanto a acção de indemnização como o sancionamento contra-ordenacional exigem; e, em conexão com elas, há que referir, em especial, o disposto no art. 829-A do Código Civil, que permite ao juiz decretar sanções pecuniárias compulsórias para o caso de as respectivas ordens (de actuação positiva ou negativa) não serem imediata e integralmente acatadas. A essa via judicial acresce, no mesmo plano objectivo, uma possível intervenção preventiva de carácter administrativo (cfr., a respeito do INPI e das alfândegas, os arts. 24.1d), 240(s) e 319 CPI).
Apesar de o CPI não o explicitar, as acções obstativa e inibitória são os principais mecanismos de reacção a ter em conta. Para o seu inevitável papel central concorrem diversos factores: por um lado, as empresas tenderão a analisar as potenciais coimas numa óptica de custos-benefícios da infracção; por outro lado, os pressupostos da responsabilidade civil são, aqui, de prova particularmente difícil e as correspondentes acções demoradas, faltando-lhes uma necessária dimensão de oportunidade; finalmente, na porventura maioria dos casos, não se mostra viável reparar adequadamente, a posteriori, as consequências danosas de uma prática desleal, uma vez que afectação incidirá sobre certa posição concorrencial de uma ou mais empresas e esta, por ser uma posição de vantagem meramente imaterial e de facto, é impossível de ser reposta através de uma sentença.
Mas mais do que isso: não basta admitirem-se tais acções; torna-se imperiosa a existência de um processo de decisão rápida. O CPI remete para o regime do processo cautelar comum. Porém, no estado actual das coisas, talvez fosse preferível explicitar melhor o assunto e/ou instituir um processo sumário obstativo ou inibitório capaz de prevenir ou atalhar rapidamente comportamentos mais ostensivamente inadmissíveis, cabendo aos visados pela decisão reagir através de uma acção comum, se tiverem interesse nisso.
Insiste-se neste ponto já que, quando confrontado com outros ordenamentos jurídicos, o nosso se tem revelado, neste domínio, de uma ineficácia dificilmente sustentável, revelada quer pela prática, quer pela jurisprudência, que, no que toca a problemas autónomos de concorrência desleal, separados dos direitos privativos, apresenta uma expressão mínima, quando comparada com a de outros países europeus.
6.3 Conclusão. - O combate eficaz da concorrência desleal passa sobretudo por mecanismos como os da acção inibitória, preventiva ou de cessação da actividade ilícita, sobre a qual tem que incidir uma decisão em tempo muito curto para ter efeito útil. Se esse sistema não funcionar, o combate não será eficaz.
Dado o tipo de bens e valores lesados – altamente voláteis ou perecíveis – e as dificuldades de prova inerentes à aplicação do sistema comum de responsabilidade civil, as correspondentes acções têm uma eficácia limitada. As contra-ordenações, embora apresentem alguma força dissuasora, em muitos casos, o valor das coimas não será, por certo, suficientemente «convincente» (sobretudo para as grandes empresas).
Dado que o CPI não cumpre aqui cabalmente a função pedagógica e de promoção da eficácia do direito que seria de esperar, salienta-se o carácter orientador que outras leis poderão ter na sua interpretação e explicitação. Acima aludiu-se a algumas leis estrangeiras. Mais adiante, ver-se-á o contributo que a Lei de defesa do consumidor e o Código da Publicidade podem dar.
7. A Constituição e o direito da concorrência desleal
O CPI também se manteve à margem das directrizes constitucionais existentes, mormente a de fazer prevalecer uma concorrência equilibrada e salutar. De facto, como se salientou , o texto actual não revela nenhuma diferença substancial ou qualitativa no confronto com o texto do CPI de 1940.
Isso não significa, no entanto, que, no presente contexto constitucional, o Código tenha o mesmo sentido e alcance que era dado ao de 1940, no respectivo ambiente corporativo. Na verdade, a sua interpretação deve, por um lado, ser conforme às novas directrizes constitucionais; e, por outro lado, terá que ter em conta as actuais circunstâncias sócio-económicas e políticas em que terá de ser aplicado (art. 9 CC). Importa, pois, atentar brevemente neste ponto.
7.1 O modelo económico constitucional. - No texto constitucional, colhe-se um modelo económico que pode assim sintetizar-se:
a) Trata-se de uma economia mista, na medida em que se toma por base não só a iniciativa económica privada, cooperativa e autogestionária, mas também a iniciativa económica pública, bem como as correspondentes formas de propriedade (cfr. os arts. 80b)/c), 82s, 86 e 61s da CRP);
b) Apesar de ser uma economia mista, é uma economia de mercado concorrencial (cfr. os arts. 81e), e 99 CRP);
c) A concorrência deve ser efectiva, equilibrada e saudável ou salutar (arts. 81e) e 99 a)/c) CRP);
d) A liberdade de iniciativa económica privada – com a dupla dimensão, operacional e organizativa (cfr. o art. 80c) CRP) – deve ser exercida tendo em conta o interesse geral (art. 61.1 CRP).
Salientam-se, ainda, entre outros, dois princípios orientadores capitais, que o sistema económico e as empresas devem incorporar: o do respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos consumidores e o da salvaguarda ou protecção do ambiente. Quanto ao primeiro, o próprio texto da Constituição consagra alguns desses direitos e, nesse contexto, comete-se ao legislador a disciplina da publicidade, proibindo-se expressamente as formas mais graves de publicidade enganosa, bem como a publicidade oculta e indirecta (arts. 60, 81h) e 99e) CRP)). Quanto ao segundo, explicita-se que o desenvolvimento económico pretendido é um desenvolvimento ambientalmente sustentável ou equilibrado, cabendo, igualmente, ao Estado fazer com que isso aconteça (arts. 9e) e 66 CRP).
A eficiência das organizações produtivas e dos mercados é também um elemento em evidência (cfr. os arts. 64.3d) e 81e)). Em última análise, o sistema deverá ser capaz de promover o progresso económico e social e a efectivação de um Estado Social ecologicamente responsável, no respeito pelos interesses e direitos dos consumidores. A isso acresce a ideia de que está em causa um espaço de liberdade e de realização pessoal e profissional dos participantes, num ambiente de paz social e segurança das suas legítimas expectativas.
7.2 Papel da concorrência. Potencial efeito desagrador. - A concorrência é vista como um princípio energético ou catalizador do sistema, um mecanismo promotor da eficiência das organizações produtivas e dos mercados, da continuada melhoria das ofertas de bens e serviços e da consequente melhor satisfação das necessidades e interesses dos respectivos destinatários – máxime, consumidores. Em suma, encontra-se, supostamente, ao serviço do progresso económico e da melhoria da condição dos consumidores (utilidade social). Daí a ênfase colocada, nas últimas décadas, na sua defesa institucional, que culminou, recentemente, com a aprovação do novo regime jurídico da concorrência, pela Lei 18/2003, e, sobretudo, com a criação da Autoridade da Concorrência.
Porém, a concorrência nem é um fim em si, nem tem, em quaisquer circunstâncias, efeitos económica e socialmente positivos. O fenómeno da «nivelação concorrencial por baixo» (ou race to the bottom) é sobejamente conhecido. Mesmo em termos de pura eficiência económica, o seu contributo tanto pode ser positivo como negativo, designadamente se dificulta ou impede estratégias empresariais de médio e longo prazo, aumenta excessivamente os custos de informação, etc..
Compreende-se, por isso, a alusão enfática do texto constitucional ao carácter equilibrado e salutar da concorrência, bem como à incumbência do Estado de assegurar o respeito da lei, em especial, pelas empresas. Este ponto é crucial, porque, sem a efectiva observância das normas legais com significado ou impacto concorrencial, não há concorrência equilibrada e salutar. Pelo contrário, a consequência pode ser um efeito multiplicador negativo que, inclusive, ultrapassa de largo o fenómeno económico para invadir os próprios domínios do Estado de Direito.
( continua)