Notícia
Privado Financeiras estava desde Janeiro de 2008 em falência técnica
A técnica do núcleo de assessoria da Procuradoria-Geral da República (PGR), Manuela Avelar, que depôs esta quinta-feira no julgamento do caso Privado Financeiras, afirmou no tribunal que o veículo de investimento estava em falência técnica no início de 2008.
"O veículo estava desde Janeiro numa situação de falência técnica", disse a responsável, que elaborou um relatório pericial que consta na acusação do processo-crime que visa três antigos gestores do Banco Privado Português (BPP), entre os quais João Rendeiro.
Em Janeiro de 2008, "o passivo da Privado Financeiras era superior ao activo, ou seja, o NAV [situação líquida] era negativo, pelo que não podia pagar" aos credores, frisou Manuela Avelar.
"O veículo deixou de ter liquidez necessária em Janeiro e a conta bancária [associada ao mesmo] tornou-se negativa a partir de Dezembro de 2007", reforçou, acrescentando que "chegou a ter um descoberto de 70 milhões de euros em Fevereiro de 2008".
Assim, caso os gestores do veículo, com Rendeiro à cabeça, tivessem na altura decidido liquidar este 'private equity' [fundo de capital de risco] "os clientes perdiam [o seu investimento inicial], dava para pagar ao JP Morgan [um empréstimo concedido ao veículo], mas não chegava para pagar o descoberto junto ao BPP Cayman [devido a um empréstimo de emergência concedido à Privado Financeiras]", realçou.
Porém, apesar da situação desfavorável do veículo logo no início de Janeiro de 2008, os responsáveis da Privado Financeiras decidiram, ao invés de liquidar o veículo que investia exclusivamente em acções do Banco Comercial Português (BCP), proceder a um aumento de capital do mesmo, dizendo aos clientes que o objectivo desta operação era participar no aumento de capital do BCP.
De acordo com Manuela Avelar, a carteira de títulos do BCP nas mãos da Privado Financeiras era "financiada a 70% pelo JP Morgan", devido à significativa alavancagem do veículo.
A técnica especificou que o financiamento da Privado Financeiras junto do JP Morgan era de 191 milhões de euros.
Mas, "quando os activos [acções do BCP] desvalorizaram, foi necessário recorrer a um descoberto junto do BPP", sublinhou.
O descoberto que o veículo tinha junto do BPP Cayman, que ascendia a 54 milhões de euros, foi liquidado em Abril de 2008, segundo Manuela Avelar.
Segundo a responsável, que testemunhou na qualidade de consultora técnica, "55% do valor angariado [pela Privado Financeiras] junto dos clientes foi para pagar o empréstimo de emergência junto do BPP Cayman e as comissões do veículo junto da unidade do BPP localizada nas Ilhas Caimão.
Questionada sobre a informação enviada aos clientes acerca da situação deficitária do veículo por altura da operação de aumento de capital do mesmo, Manuela Avelar disse que, dos documentos que analisou, chegou à conclusão que a Privado Financeiras "só informou [os clientes] que estava em curso um aumento de capital".
E realçou: "Na documentação enviada aos clientes [sobre a situação líquida do NAV] essa informação estava omissa".
Paralelamente, a responsável concluiu no seu relatório que "os clientes não tinham informação que as acções do BCP estavam penhoradas à JP Morgan"
José Miguel Júdice, que lidera a equipa de advogados de defesa de João Rendeiro, vincou que a situação descrita por Manuela Avelar não correspondia inteiramente à realidade, já que no dia 02 de Abril, ainda antes do aumento de capital da Privado Financeiras, que permitiu captar mais 100 milhões de euros aos investidores do veículo, o NAV do mesmo estava em terreno positivo.
"Foi um pico [de valorização] das acções do BCP", justificou a técnica, concordando que, caso a gestão do veículo tivesse decidido nessa data específica proceder à venda da carteira de acções do BCP, seria possível pagar o financiamento contraído junto do JP Morgan, bem como o empréstimo de emergência do BPP Cayman.
Ainda assim, insistiu que, mesmo assim, os clientes da Privado Financeiras não recuperariam o seu investimento inicial no veículo.
Os clientes da Privado Financeiras que têm testemunhado em tribunal afirmam, em geral, que estavam cientes do risco de perda total do capital aplicado neste veículo, mas garantem que foram enganados quanto à operação de aumento de capital da Privado Financeiras.
Dizem que foram convencidos a participar no aumento de capital da Privado Financeiras com o intuito de aumentar a participação do veículo no capital do BCP e diminuir o preço médio por acção em carteira, sem imaginar que parte da verba captada foi usada para abater créditos da própria Privado Financeiras junto da banca (JP Morgan e BPP Cayman).
No julgamento do caso Privado Financeiras, que arrancou em meados de Fevereiro, os investidores deste veículo do universo BPP, entre os quais se destacam Francisco Pinto Balsemão, Stefano Saviotti e Joaquim Coimbra, alegam que foram lesados em mais de 40 milhões de euros.
Os arguidos, João Rendeiro, Paulo Guichard e Salvador Fezas Vital, antigos gestores do BPP, são acusados pelo Ministério Público de burla qualificada em co-autoria.