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António Arnaut: O ministro que ia acabar com a corrupção na PJ e acabou a fundar o SNS

Mário Soares convidou-o para ser ministro da Justiça para acabar com a corrupção na Polícia Judiciária mas à última hora desconvidou-o porque não tinha ninguém para assumir a pasta dos Assuntos Sociais.

Ricardo Almeida / Correio da Manhã 
21 de Maio de 2018 às 15:19
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"Naquele tempo, as pessoas comiam o pão duro dos dias sem sol, viviam à míngua e morriam, em regra, sem assistência médica. Foi essa paisagem humana de sofrimento e resignação que, sem metáfora nem retórica, despertou em mim o inconformismo activo perante as injustiças inevitáveis e me fez um cidadão comprometido com o povo e a pátria (…) Creio que foi esta rebeldia, e também a minha intervenção cívico-social, para ajudar, embora modestamente, a construir uma sociedade mais livre, justa e solidária, que justificaram a alta distinção que me vai ser conferida".

As palavras são de António Arnaut e foram proferidas no dia em que recebeu o grau de doutor ‘honoris causa’ pela Universidade de Coimbra há cerca quatro anos. Conhecido como o pai do Serviço Nacional de Saúde (SNS), António Arnaut morreu esta segunda-feira, 21 de Maio, em Coimbra com 82 anos.


Nascido numa família humilde da aldeia de
Cumeeira, no distrito de Coimbra, em 1936, António Duarte Arnaut ficará para sempre ligado a alguns dos momentos mais decisivos da História contemporânea portuguesa. Licenciado em Direito na Universidade de Coimbra, Arnaut foi membro activo da oposição à ditadura salazarista e foi o primeiro a assinar a acta fundadora do Partido Socialista, em 1973.

Eleito deputado nas primeiras eleições pós-25 de Abril, é ele quem lê, emocionado, no plenário da Assembleia Constituinte, o texto da primeira Constituição da República Portuguesa aprovada em democracia. Nos três anos seguintes tem um papel decisivo na criação do Serviço Nacional de Saúde.


Numa entrevista ao Diário das Beiras, a propósito dos 35 anos do SNS, em Setembro de 2014, António Arnaut recordou todo o processo que o levou a assumir o cargo do ministro dos Assuntos Sociais em 1978.


"Fui convidado pelo então primeiro-ministro Mário Soares para ministro da Justiça do II Governo Constitucional. Aceitei, depois de muita insistência, porque ele apelou ao meu sentido de dever e deu-me como tarefa acabar com a corrupção na Polícia Judiciária (…) Aceitei e fui três dias ao Ministério da Justiça onde falei várias vezes com o ministro cessante, Almeida Santos, para me inteirar das pastas e comecei a esboçar o programa do Ministério, delineando o programa de um Serviço Nacional de Justiça", lembrou o socialista, contando que Mário Soares o mandou chamar à última hora para lhe dizer que tinha de "ser o ministro dos Assuntos Sociais, Saúde e Segurança Social, porque não tinha conseguido ninguém que aceitasse essa pasta".


Arnaut acabou por ser convencido pelo histórico líder socialista mas impôs uma condição: criar o Serviço Nacional de Saúde (SNS).


O II Governo Constitucional caiu nesse ano mas António Arnaut ainda teve tempo para assinar
um despacho a criar o SNS, datado de 20 de Julho e publicado no Diário da República no dia 29.

 

"A maior parte dos partidos estava contra a criação do SNS, mesmo algumas pessoas do meu partido, porque diziam que o orçamento não o permitia, que não havia sustentabilidade financeira. Eu dizia-lhes que se os políticos fossem doentes das caixas, em vez de serem tratados em clínicas privadas, defenderiam o SNS. E ainda hoje isso acontece. A maior parte dos políticos não são doentes do SNS e às vezes ignoram os benefícios alcançados", recordou na entrevista ao diário da região centro.

 

Chegou a ser acusado de estar a "soldo de Moscovo" e de querer estatizar a saúde, nomeadamente pelo então bastonário da Ordem dos Médicos, Gentil Martins, mas Arnaut garante que só queria "socializar a saúde, isto é, torná-la um direito de todos e não um privilégio de quem a podia pagar".


Hoje em dia, mesmo os partidos mais à direita, reconhecem que 
o SNS é uma das grandes conquistas do 25 de Abril.

 

Numa entrevista ao jornal i, em Dezembro de 2016, e quando lhe perguntaram se gostava de ser tratado por pai do SNS, respondeu: "É uma designação carinhosa. Eu sou o autor da lei que criou o SNS, mas se a lei tem progenitor, tem sobretudo a mãe. A mãe é que conta e a mãe é a Constituição. Se ela só tivesse o pai há muito tempo que tinha sido revogada e o Serviço Nacional de Saúde destruído. O que lhe tem valido, o que a tem amparado neste percurso acidentado de quase 40 anos é a Constituição da República".


Deixou a política em 1983 porque, disse, "o poder económico começou, nessa altura, a querer mandar no poder político e começou a subsidiar as campanhas". Mas ao longo dos anos nunca deixou de exercer a sua cidadania dizendo sempre o que pensava sobre as boas e más políticas dos sucessivos Governos

Depois de ter recusado um convite de Mário Soares para ir trabalhar para uma empresa pública, e de ter sobrevivido à custa do ordenado da mulher, que era professora primária, António Arnaut voltou a ser advogado.


Maçon e europeísta céptico assumido, Arnaut acabou por ser nomeado p
residente honorário do PS em 2016. Isto já depois de ter aceite ser mandatário nacional de António Costa nas legislativas de 2015 por se rever na política do agora primeiro-ministro.


"Ser de esquerda agora é diferente do que era na minha juventude. Falava-se da colectivização dos meios e produção, falava-se em muita coisa... Hoje ser de esquerda é garantir a igualdade de acesso aos direitos fundamentais e já não é mau se conseguirmos isso", afirmou na entrevista ao i.


Em Janeiro deste ano, e numa das suas últimas aparições públicas, António Arnaut deu, juntamente com o médico do Bloco João Semedo, mais um contributo para o futuro da Saúde em Portugal, com o lançamento da obra
"Salvar o SNS - Uma nova Lei de Bases da Saúde para defender a democracia".


A aposta nas carreiras dos profissionais de saúde, a eliminação das taxas moderadoras, o fim das Parcerias Público-Privadas no SNS e o regresso à gestão da administração pública, o respeito pelos contratos e direitos laborais, a reforma dos modelos de organização, funcionamento e articulação das unidades de saúde públicas e destas com a comunidade são algumas das ideias dos autores.


O SNS é mesmo o seu grande orgulho. Como chegou a dizer em 2016: "Estou vivo graças ao SNS. A minha reforma não dava para tantos tratamentos".

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