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Por detrás do que disse Costa. O futuro político, a burocracia e o amigo que já não o é

António Costa queria enfatizar a necessidade de investimento público para o país, mas acabou a esclarecer os negócios da Operação Influencer defendendo que os organismos públicos devem aplicar “com inteligência a lei”. Pelo meio, arrasou o ex-chefe de gabinete Vítor Escária e afastou Lacerda Machado, o melhor amigo de um primeiro-ministro que “não tem amigos”.

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Diana Ramos dianaramos@negocios.pt 12 de Novembro de 2023 às 11:02

A entrada no discurso foi logo a arrasar: Vitor Escária, o ex-chefe de gabinete e um dos homens mais próximos de Costa no dia-a-dia da governação, foi o alvo. As primeiras palavras do primeiro-ministro na sexta-feira à noite, na declaração ao país, foram para um pedido de desculpas aos portugueses. "A apreensão de envelopes de dinheiro no gabinete de uma pessoa que comigo escolhi para trabalhar envergonha-me perante os portugueses e aos portugueses tenho o dever de pedir desculpa".

Ao ato de humildade seguiu-se de imediato um erguer de muros, para frisar que a ação de Escária só a si mesmo compromete ao sublinhar que não se confunda "a responsabilidade individual de quem quer que seja, que só à justiça cabe investigar, com o que é o exercício da ação governativa".

Feita a devida separação, Costa seguiu para aquilo que afirmou ser a defesa da importância do investimento público mas que, na prática, funcionou como uma resposta à justiça sobre os negócios investigados na Operação Influencer.

Na argumentação de Costa, as suas palavras serviam essencialmente para evitar que percam "oportunidades estratégias" e "para que futuros governos não percam instrumentos de ação política para atrair investimento", sobretudo num momento em que o país se prepara para eleger um novo governo.

Agarrando-se a três ideias, frisou que "é dever dos governos a atração de investimento empresarial", que "incentivos financeiros ou a aplicação de regras especiais a projetos PIN  tem de decorrer com total transparência" e que "esse esforço é regulado por lei, depende de avaliações técnicas exigentes, está sujeito a fiscalização e nunca pode resultar de mera decisão arbitrária ou discricionária de qualquer membros do governo".

Costa defendeu ainda a necessidade de uma "simplificação de instrumentos que promova a transparência", a "redução da burocracia e a "redução dos custos de contexto", tudo argumentos que muitas empresas têm apontado como falhas ao atual Executivo socialista.

A resposta ao Ministério Público que Costa diz não ter dado

O Ministério Público acredita que António Costa pressionou ou, pelo menos, deu aval a pressões sobre secretária de Estado da Energia por Vítor Escária no desenho e publicação do diploma para o reforço de injeção de eletricidade na rede elétrica.

O despacho de indiciação refere que Afonso Salema e Rui Oliveira Neves recorreram "aos serviços do suspeito Diogo Lacerda Machado no sentido de contactar, direta ou indiretamente, o primeiro-ministro com vista a pressionar a secretária de Estado" para avançar com a regulamentação inerente ao reforço da capacidade elétrica para satisfazer as necessidades de consumo do centro de dados.

Uma legislação que os dois arguidos administradores da Start Campus apelidaram de "diploma bar aberto", em conversas telefónicas. A pressão de ambos terá levado, segundo a inidicação, Diogo Lacerda Machado a falar com Escária que terá dado o feedback de que a secretária de Estado Ana Gouveia estaria "devidamente instruída".

É pois neste campo que o Ministério Público entende que "a reunião [entre Lacerda Machado e Escária] teve como resultado a realização de pressões sobre a dita secretária de Estado, exercidas pelo primeiro-ministro ou Vítor Escária, mas necessariamente com o conhecimento e concordância do primeiro".

No discurso ao país, Costa repetiu por várias vezes que não estava a "interferir" ou "responder" a "processo judicial nenhum", mas o certo é que as justificações do primeiro-ministro visaram este e o negócio do lítio em Boticas e Montalegre.

Sobre Sines, Costa "todos os projetos em desenvolvimento e designadamente o centro de dados - que é o maior investimento estrangeiro realizado em Portugal desde a Autoeuropa - têm sido abrigados a respeitar a zona de conservação e os valores ambientais identificados dentro da própria zona industrial".

Ora, no despacho de indiciação, a argumentação de que o centro de dados da Start Campus é a nova Autoeuropa é igualmente dada pelo ministro das Infraestruturas João Galamba numa escuta telefónica transcrita, quando o ICNF levantou problemas à utilização de terrenos dentro da Zona Especial de Conservação.

Em mais uma resposta ao Ministério Público - que o primeiro-ministro afirmou não o ser – na declaração ao país o primeiro-ministro explicou que "em Sines, a intensidade de projetos exige que a REN realize avultados investimentos no reforço da rede elétrica para garantir oportunidades".

Este reforço a que Costa se refere é o mesmo trazido pelo tal "diploma do bar aberto", que foi publicado em setembro e aprovado em Conselho de Ministros a 27 de julho. Para o Ministério Público, "dele resulta um expresso favorecimento a projetos com estatuto de Potencial Interesse Nacional", como é o caso do centro de dados.

Ainda que a indiciação da Operação Influencer tenha estado mais centrada nos negócios em torno do centro de dados de Sines, tem sido público que vários membros do Executivo são visados em investigações relativas à exploração de lítio.

No sábado à noite, o primeiro-ministro também não deixou este tema de lado para sublinhar que "o licenciamento de minas Boticas e Montalegre foi sujeito a Estudo de Impacte Ambiental" e que os  "concessionários foram obrigados a cumprir as condições impostas seja para localização mais adequada da refinaria para assegurar a preservação lobo ibérico, seja para assegurar o abastecimento de água ou para a construção de nova via" rodoviária.

O enfoque na administração pública e no medo de decidir

"Quase sempre o interesse público na atração de investimento exige a harmonização com outros interesses púbicos", afirmou Costa na sua declaração de sábado à noite. E o que pretendia dizer com isto? Que "aos diversos organismos da Administração Pública cabe a defesa do interesse público próprio que lhe cabe prosseguir" e que "a qualquer governo compete assegurar a devida articulação entre os diferentes organismos e procurar assegurar que o resultado final é a melhor satisfação do interesse público".

Ora, o que aconteceu então em Sines quando AICEP e ICNF entraram em choque por causa da instalação do projeto da Start Campus em zona protegida? Segundo a indiciação, depois de várias pressões exercidas por membros do Governo, incluindo Galamba, por Lacerda Machado e por Vítor Escária, o projeto foi dispensado de Avaliação de Impacte Ambiental, a Câmara de Sines acabou por aprovar a criação do lote nos termos pedidos pela AICEP e o ICNF, que foi o opositor mais severo ao projeto ao defender que não eram admissíveis medidas compensatórias quanto aos habitats afetados, "inverteu a sua posição e, sem sede de parecer da comissão de avaliação, admitiu tais medidas e propôs a admissão de decisão favorável".

Recorde-se que, segundo o Ministério Público o autarca de Sines, Nuno Mascarenhas, sofreu elevada pressão para autorizar o licenciamento, tendo inclusivamente sido ameaçado com a perda de competências na área do urbanismos e com o "medo de Deus", numa alusão à pressão que Lacerda Machado iria colocar sobre Mascarenhas tendo Costa como pano de fundo.

António Costa, ao defender que é necessária menor burocracia e menores custos de contexto, afirmou também durante a declaração ao país que "somos um Estado de Direito onde a lei se cumpre, mas onde criamos condições para atrair e acolher o investimento e dizer aos diferentes organismos da administração que não é o facto de haver lei, de estarmos todos obrigados ao estrito cumprimento da lei que isso nos deve colocar na situação da paralisia, do medo de violar a lei".

"Teremos de cumprir a lei, mas saber que a lei mão se cumpre na paralisa da decisão mas no rigor da decisão", afirmou quase dando a entender que as diligências feitas no âmbito das ações de governantes que agora são investigadas justificavam a necessidade de assegurar o investimento para o país.

E, dirigindo-se aos futuros governantes e quase deixando um recado aos organismos públicos, deixou o recado: "Tenham confiança na vossa capacidade de aplicar com inteligência a lei. Não inventem problemas onde não existem, não se protejam com burocracias onde podemos ter maior simplicidade e tenham confiança e não tenham medo de decidir porque isso é a função que temos e responderemos pelos atos que cada um pratica".

Um primeiro-ministro que não tem amigos e o "momento de infelicidade"

O primeiro-ministro falou também de outra figura essencial neste processo, o advogado Diogo Lacerda Machado:"Há muitos anos que não colabora com este gabinete, não tinha qualquer mandato da minha parte para fazer o que quer que seja, nunca falou comigo sobre este assunto, em circunstância alguma".

 

Lacerda Machado é suspeito de exercer influência junto do primeiro-ministro para acelerar projetos, sendo que essa capacidade de influência seria aumentada pela proximidade ao primeiro-ministro. No entanto, António Costa rejeita essa amizade: "Apesar de eu ter dito, num momento de infelicidade, que ele era o meu melhor amigo, aquilo que é a realidade é que um primeiro-ministro não tem amigos. Queria deixar isso claro, o que quer que Lacerda Machado tenha feito, nunca o fez com o meu conhecimento ou interferência. Nunca, mas nunca falou comigo."

Ontem, no final do interrogatório a Lacerda Machado, o advogado garantiu que em nenhum momento do processo relativo ao 'data center' o ex-melhor amigo de Costa "invocou, direta ou indiretamente", o nome do primeiro-ministro, António Costa.

"O doutor Lacerda Machado subscreveria integralmente o que disse o senhor primeiro-ministro", referiu Magalhães e Silva. O advogado interpretou as declarações de António Costa afirmando que o primeiro-ministro ""não disse que não eram amigos" e que "o momento de infelicidade não é serem amigos, foi ter dito publicamente, com as especulações a que isso poderia dar lugar".

"Teve um momento infeliz quando disse publicamente que ele era o seu melhor amigo, mas não há aí nada que o doutor Lacerda Machado não pudesse subscrever integralmente. E mais, o senhor doutor Lacerda Machado tem dessa matéria exatamente o mesmo entendimento que o senhor primeiro-ministro", prosseguiu. Ou seja, "que teria valido a pena que o senhor primeiro-ministro não tivesse feito essa referência", o que "teria evitado várias situações que ocorreram", acrescentou.

  

E as dúvidas sobre o futuro político de Costa

Por duas vezes o primeiro-ministro referiu que não deverá voltar a exercer funções políticas. Pelo menos, não o tem no horizonte, afirmou ontem na declaração ao país e durante as respostas aos jornalistas. "No momento em que cesso as minhas funções, e não está no meu horizonte voltar a exercer qualquer cargo público, entendo ser importante salientar que esta ação política e esta ação governativa é essencial", referiu.

Houve um outro momento, mais à frente, em que Costa terá corrige a afirmação dizendo que "não está no meu horizonte nem no horizonte de ninguém que volte exercer qualquer cargo executivo". A "nuance" levanta dúvidas sobre se o primeiro-ministro equacionará uma eventual corrida à Presidência da República, apesar de esse ter sido sempre um lugar que sempre disse não pretender ocupar.
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