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A história que pode acabar em crime de mercado no Banco de Portugal

A transacção de acções nos dias que antecederam a resolução do BES colocaram o Ministério Público no encalço de um funcionário do banco central, por suspeita de utilização de informação privilegiada. Enquanto as responsabilidades criminais são apuradas, acaba de rolar a cabeça de um director. Tenha havido ou não crime de mercado, esta é uma história de fraca cultura de prevenção de conflitos de interesses dentro do próprio regulador. Desde 2015 as regras melhoraram.

Miguel Baltazar/Negócios
20 de Agosto de 2017 às 23:30
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Numa altura em que tenta superar uma das maiores crises de credibilidade da sua história, o Banco de Portugal vê-se a braços com uma investigação do Ministério Público relacionada com a venda de acções do BES por parte de um funcionário. No pior cenário, trata-se de um crime de abuso de informação privilegiada dentro do próprio regulador. No melhor, de uma falha na cultura de prevenção de conflitos de interesses. Na cadeia de comando, ninguém sai bem na fotografia, mas para já uma vítima avulta: o antigo director do departamento de mercados, que Carlos Costa chegou a propor como administrador há poucos meses.

O início desta história remonta a meados de Julho de 2014, quando o Banco de Portugal ainda dava garantias públicas de que o BES tinha salvação. Um funcionário do Departamento de Mercados e Gestão de Reservas (DMR) comprou acções do banco de Ricardo Salgado, uma prática que na altura não era proibida pelas regras de conduta do regulador – pelo menos expressamente; semanas depois, a 31 desse mês, terá sido convocado para no dia seguinte passar a integrar uma equipa que iria lidar directamente com o BES; e a 1 Agosto, de manhã, vendeu os títulos que tinha comprado semanas antes. Faltavam apenas dois dias para a resolução do segundo maior banco privado português, que ditou perdas totais para os accionistas.

Se o fez porque teve acesso a informação privilegiada sobre a resolução ou se o fez para sanar a clara situação de conflito de interesses em que passou a encontrar-se com a participação no restrito grupo que teve à sala de crise do BES, é matéria que está a ser investigada pelo Ministério Público.

Enquanto as eventuais responsabilidades criminais estão a ser apuradas, dentro do Banco de Portugal já se fez rolar uma cabeça: Rui de Carvalho, antigo director de mercados, por alegada violação de deveres de comunicação ao conselho de administração, que diz que foi apanhado de surpresa  em Julho de 2017, já com os investigadores do Ministério Público a bater às portas da instituição, como noticiou o Negócios na semana passada (ver "Carlos Costa demite director que quis promover a administrador").

A suave auto-regulação de um regulador

Que um funcionário do banco central transaccione acções de um banco problemático sem que isso tenha feito soar os alarmes internos não pode deixar de gerar perplexidade e transforma a história numa forte candidata a "case-study" sobre as fragilidades dos sistemas de controlo interno dentro dos reguladores.

Voltemos a 2014 e ao código de conduta da instituição, suficientemente vago para acomodar vários tipos de interpretações. De acordo com este guião,  os funcionários do banco deveriam evitar todas as situações de conflitos de interesses e abster-se de transaccionar acções de instituições financeiras quando estivessem confrontados com uma situação de potencial acesso a informação privilegiada. É isso que justifica que um funcionário da DMR – um departamento que intervém por exemplo nas operações de cedência de liquidez aos bancos nacionais – possa ter comprado acções do BES em Julho de 2104.

Por essa altura, ao contrário do que já exigia aos bancos que supervisiona, o Banco de Portugal não dispunha de um gabinete de "compliance", mas apenas de um consultor de Ética, com quem as dúvidas sobre o código de conduta deviam ser sanadas.
O cargo era ocupado na altura por Orlando Caliço, ex-secretário de Estado do Fisco que já se reformou, que acabou por ser contactado pelo funcionário sob investigação em Outubro de 2014 – apenas três meses depois das operações.

A mensagem, com conhecimento para o seu chefe directo, Jorge Alves,  director-adjunto do departamento de mercados (entretanto também reformado), dava conta da compra das acções do BES, e da sua venda na manhã de 1 de Agosto, mal soube que passaria a trabalhar directamente sobre o banco.

Está por esclarecer porque é que a comunicação não foi feita logo em Agosto e apenas em Outubro mas, de todo o modo, a mensagem não chegou a merecer resposta por parte do consultor de ética.

Ao Negócios, Orlando Caliço diz que a sua intervenção seria extemporânea e a avaliação concreta do caso só podia ser feita pelos responsáveis directos. "Quando me escreveu já não havia uma situação de conflito de interesse para avaliar; e quanto ao potencial acesso a informação privilegiada, essa era uma avaliação que só poderia ser feita pela sua hierarquia que sabia as áreas em que o funcionário trabalhou e estava informada sobre os investimentos, como o próprio escreveu". O caso acabou arquivado.

Caliço entendeu ainda não haver matéria para reportar à administração, já que, segundo o código de conduta da altura, a confidencialidade consultor-funcionário só deveria ser quebrada face a "risco sério e iminente para a segurança das pessoas ou para a imagem da instituição". Mesmo tratando-se do BES, optou por não o fazer, uma vez que não tinha matéria para avaliar o risco de abuso de informação privilegiada, defende.


O Banco de Portugal não alinha com esta interpretação. O "regime aplicável em 2014 permitia ao consultor de Ética, fundadamente, levar ao conhecimento do conselho de administração factos susceptíveis de comportar "um risco sério e iminente para a imagem da instituição ", situação que não se verificou, responde fonte oficial ao Negócios quando questionada sobre se esperava ter sido informada em 2014.

Para o Banco de Portugal, Orlando Caliço é um dos que falhou na cadeia, mas não é o único e nem sequer o principal responsável.

Rui de Carvalho: "o" culpado ou bode expiatório

Em Julho de 2017, já com o Ministério Público envolvido, o conselho de administração transferiu o funcionário para outro departamento e demitiu Rui de Carvalho, passando-o a consultor. A decisão caiu como uma bomba na instituição. Afinal, tratava-se de um dos directores mais respeitados, mesmo por Carlos Costa.

Para as vozes críticas este é um caso onde, face a uma situação difícil que convoca responsabilidades em toda a cadeia de comando, o governador do Banco de Portugal sacrificou um alto quadro para se resguardar a si e ao conselho de administração. É que não terão sido só o consultor de ética e os responsáveis do DMR que desvalorizaram a situação.  Jorge Alves, que entretanto se reformou, terá partilhado toda a informação com o seu director, Rui de Carvalho, mas terá também comentado o caso com José Ramalho, então vice-governador, e que entretanto saiu do banco. Esta alegada troca de informações desafia a ideia de que as operações polémicas eram totalmente desconhecidas da administração. 

Jorge Alves, Rui de Carvalho e José Ramalho recusaram-se a fazer comentários ao Negócios, com este último a remeter esclarecimentos para o Banco de Portugal. Fonte oficial da instituição diz que não apurou que tivesse havido um reporte a "qualquer membro do conselho de administração, incluindo ao Dr. José Ramalho, em termos, circunstanciados e de completude, que permitissem uma adequada percepção da gravidade da situação em causa".

Esta alusão a termos "circunstanciados e de completude" é uma nuance face ao que tinha respondido ao Negócios dias antes, quando garantiu que o conselho de administração foi apanhado de surpresa, mas para o banco não belisca o essencial: "Os factos nunca chegaram ao conhecimento do colectivo do conselho de administração, nem do governador, a não ser em Julho deste ano, cerca de três anos depois da sua ocorrência, o que levou ao conjunto de acções e decisões do conselho de administração", que incluíram a abertura de um processo de investigação interno, a passagem de Rui de Carvalho a consultor, a sua substituição por Helena Adegas, e a transferência do funcionário.

Para a administração, a inexistência de uma comunicação formal sobre uma operação que ameaça a credibilidade do banco é ainda agravada pelo facto de, em Setembro de 2014, a direcção do DMR se ter recusado identificar os trabalhadores com acesso a informação privilegiada: "O então director do Departamento Jurídico pediu por escrito a todos os departamentos envolvidos na resolução do BES que identificassem os colaboradores que de alguma forma participaram na preparação e aplicação da medida de resolução ao BES", com o objectivo de "verificar a eventual existência de abusos de mercado relacionados com a negociação de instrumentos financeiros do BES antes da medida de resolução", revela fonte oficial.

Os responsáveis do departamento não responderam: "A direcção do DMR à data não reportou o nome de qualquer colaborador do departamento, centrando as responsabilidades no director, Dr. Rui de Carvalho, e director-adjunto, Dr. Jorge Alves", adianta a mesma fonte, garantindo que "a direcção do DMR à data já tinha conhecimento da referida operação feita a 1 de Agosto de 2014 de venda de acções do BES pelo colaborador em causa".

A história pode repetir-se?

O silêncio de Jorge Abreu e Rui de Carvalho não permite apurar o que levou os dois altos quadro do banco a não fazer um reporte documentado de uma situação de potencial conflito de interesses e utilização de informação privilegiada à hierarquia, que está agora sob investigação e poderá terminar numa acusação. O mesmo se aplica a José Ramalho, que, embora possa ter sabido do caso em conversa informal, terá acabado igualmente por desvalorizar o assunto.

Os actuais responsáveis do banco garantem que hoje seria diferente. Com a União Bancária, os procedimentos foram padronizados a nível europeu, o que resultou num reforço substancial das regras. O código de conduta actual proíbe, por exemplo, que os trabalhadores do banco central detenham acções de bancos europeus, salvo em situações muito específicas. E em 2015 foi criado um "Gabinete de Conformidade", que substituiu a figura do consultor de Ética, já com competências alargadas, e que está obrigado a remeter informação como a de 2014 à administração "propondo acções concretas, em termos disciplinares e de comunicação a entidades externas, visando gerir o risco percepcionado e prevenir a posição institucional do Banco de Portugal", explica fonte oficial.

Independentemente do desfecho judicial, o caso expõe sinais de uma fraca cultura de prevenção de riscos e a fragilidade institucional com que o Banco de Portugal trabalhou nos últimos anos.

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