Notícia
Viver e morrer em Cabo Delgado
Este é um relato, na primeira pessoa, de dois Cabos Delgado. O que existia entre 2014 e 2016, povoado por gente acolhedora e generosa. O outro, surgido em 2017, ano dos primeiros ataques terroristas, já minado pelo medo.
(Pedro Moço é geólogo. Neste texto relata episódios que o marcaram durante duas estadias em Cabo Delgado, a última já marcada pelo surgimento dos jihadistas)
A minha experiência de vida e trabalho em Cabo Delgado resume-se a duas estadias, uma que durou de janeiro de 2014 até Abril de 2016 e outra que se iniciou em setembro de 2018 e terminou em dezembro de 2019. As tarefas em cada um dos períodos temporais foram muito diferentes, na primeira fui project manager de uma grande companhia portuguesa de construção, hoje praticamente finada. Construímos acessos, campos e plataformas para que a Anadarko pudesse fazer uns furos de prospecção de petróleo em duas localizações cujos nomes de código eram Tembo e Kifaru.
A primeira situava-se a escassos quilómetros de Mocímboa da Praia e a segunda a escassos quilómetros da fronteira com a Tanzânia. No segundo período que lá passei, fui site manager, ao serviço de uma companhia portuguesa de construção, de média dimensão, mas com estabilidade financeira e futuro. Estivemos a construir o aeródromo de Afungi, para a Anadarko, bem no coração da operação de exploração e transformação do gás natural que irá ser extraído no offshore. No final, por compra da Anadarko,o dono de obra passou a ser a Total.
Nestes dois períodos temporais, conheci dois Cabo Delgado muito diferentes. Entre 2014 e 2016, conheci o Cabo Delgado acolhedor, com um povo simpático e, às vezes generoso, que percebia a importância de lá estarmos ajudando no desenvolvimento da região. Eu viajava livremente por toda a província, muitas vezes sozinho, e conheci assim todos os encantos naturais deste território. Um território ainda selvagem, mas vasto, com animais selvagens, matos e extensas e densas florestas.
Conheci Pemba, Mueda, Nangade, Chai, Montepuez, Mocímboa do Rovuma, Mocímboa da Praia, Palma, Namoto, etc. Percorri quase todo o vasto território desta província e conheci os seus mais recônditos recantos. Enfrentei, na companhia de colegas de trabalho e amigos, alguns perigos e cheguei a dormir dentro do carro, no meio de nenhures, devido a avarias nas viaturas, que eram frequentes. Habitávamos uma casa em Mocímboa da Praia, sobranceira ao mar, e todos os dias, na maré alta, descíamos à praia para regatear peixe, marisco e outros produtos do mar que depois, com um mínimo de atenção culinária transformávamos em petiscos inigualáveis. Por vezes, à noite, fazia o meu jogging pela vila, no escuro, perseguido por crianças travessas que, quando queriam, me deixavam para trás e me davam uma abada facilmente. Quando podíamos, mergulhávamos nas águas azuis e transparentes do Índico, em Quionga, Olombe, Palma e nalguma ilha do arquipélago das Quirimbas.
Houve períodos maus também. Em janeiro de 2015, uma época das chuvas extraordinariamente má, deixou-nos 45 dias sem energia elétrica e penamos para conseguir dormir nos quartos que, às vezes chegavam aos 60°C. Ar condicionado só no escritório, pois a disponibilidade de geradores também entrou em rutura. No mesmo período, e devido ao calor que se fazia sentir nos quartos, fui mordido por uma aranha na virilha. A ferida infetou e a infeção afetou todo o músculo da perna. Fui tratado no Hospital Rural de Mocímboa da Praia pelo dr. Aniceto, um médico da Beira que, pacientemente, mas com muitos poucos recursos, incluindo a anestesia para me lancetar. E teve de o fazer três vezes no decurso dos 26 dias de tratamento. Só quando no final quando se mostrou feliz por me ter conseguido salvar a perna, percebi onde tinha andado metido. Este foi o Cabo Delgado que conheci nesta altura. Éramos felizes e não sabíamos, como se costuma dizer.
No segundo período que lá passei, Cabo Delgado tinha mudado. Um ano antes, em 2017, tinham começado a suceder-se atentados terroristas que mantinham a região em estado de alerta e medo. O primeiro ataque tinha ocorrido em Mocímboa da Praia, ligado às mesquitas. Quando lá cheguei, os ataques já eram quinzenais, às vezes mesmo com periodicidade semanal. Ouvíamos falar de aldeias atacadas, casas queimadas, gente morta, decapitada, desmembrada e muitas vezes queimada.
Era já desaconselhável largarmos a segurança dos estaleiros e viajarmos pelo território. Eram precisas escoltas, guardas armados, duas viaturas e um motivo forte para viajar. Muitas vezes, não cumpri. Habituado a transitar livremente por todas aquelas estradas, às vezes de terra batida, dei, algumas vezes, como indicação o destino próximo de Palma, mas desloquei-me a Mocímboa da Praia para revisitar aquele espaço e gentes que conhecia tão bem.
Não me conseguia sentir inseguro, num local que já tinha sido a minha casa. E revisitei velhos conhecidos em Mocímboa, alguns que tinham trabalhado connosco, outros que eram apenas vizinhos e conhecidos. Visitei também locais como o Vumba, um restaurante local, a minha antiga casa branquinha, sobranceira ao mar e o mercado. Desci pela ladeira, até à praia, na hora em que os barcos, os dows, chegavam de velas enfunadas da faina. Mas era perigoso. Precisava também, nas minhas poucas e exíguas folgas, de ir a Pemba mergulhar, pois Quionga e Palma já nos estavam interditas para esta atividade.
Era perigoso, mas ainda fiz a viagem algumas vezes, a conduzir sozinho, assumindo pessoalmente a responsabilidade com a minha segurança física. E, todas as semanas morria gente, aldeões sem rosto e que eram apenas um número: ontem, em Olombe, 45 casas queimadas, 8 pessoas mortas e decapitadas. E isto, sem cessar, deixando-nos um nervoso miudinho permanente. Algumas vezes os ataques eram mais perto, a poucos quilómetros, mas ainda assim assumiam a forma de números sem rosto. As aldeias que conhecíamos na estrada entre Palma e Mocímboa da Praia foram ficando vazias, o adobe das paredes a esboroar-se, o capim dos telhados a secar e voar com o vento.
Mas um dia, os mortos ganharam um rosto. Numa semana, em que tinha estado em Pemba para avaliar a qualidade de umas pedreiras que nos poderiam vir a fornecer inertes no futuro, regressei e não tinha lugar no estaleiro. Fiquei no hotel Amarula, em Palma. No dia seguinte, estava adoentado, com uma febre sem motivo, uma daquelas febres que por vezes nos acometem em África e reduzi a minha atividade, tendo ficado pelo hotel a trabalhar no computador.
Ao final da tarde, trouxeram-me uma novidade que me atingiu como uma faca: tinha havido um ataque a uma coluna de carros da Anadarko e um dos nossos trabalhadores tinha sido apanhado na emboscada. Outros estavam dispersos no mato, escondidos, temendo pela vida. O nosso trabalhador era o Alfredo, um moçambicano, de Maputo, que era um faz-tudo. Devido à elevada confiança que lhe tínhamos era escolhido para ir a Pemba procurar materiais e produtos, fazer as nossas compras, ser nosso motorista e companheiro. Tanta era a confiança que, no período natalício anterior, ficara encarregado de todo o estaleiro, quando nós tínhamos regressado a Portugal para a habitual paragem.
Para nós, era o Alfredo, simplesmente. E, o Alfredo, tinha sido emboscado pelos insurgentes, tinha sido, segundo as informações recebidas, baleado e depois esquartejado. Bárbaro ato que nos deixava sem pinga de sangue só de pensar. O corpo tinha sido trazido para a morgue de Palma pelos militares. Começaram logo a circular no whatsapp fotos macabras do sucedido, como é hábito por cá.
Nessa semana, dois dias depois, eu e o Hélder, um administrativo da obra e que é também um bom amigo, percorremos a via-sacra de tratar da certidão de óbito, quer no hospital de Palma, quer na polícia local. Foi a primeira vez na vida que entrei numa morgue e que fiquei a constar como declarante numa certidão de óbito. O pior viria depois, era preciso reconhecer o corpo e, eu, obviamente, voluntariei-me, pois sentia não ter em volta ninguém capaz de o fazer. Além disso, o meu cargo, pensei-o eu, acrescentaria alguma solenidade ao momento. Não contava com a tarefa que tinha pela frente.
Antes de reconhecer o corpo, foi preciso compor o corpo entre três corpos esquartejados, escolhendo os pedaços que compunham o nosso Alfredo. Éramos três, eu, o médico da Anadarko, antigo militar, e um responsável pela segurança. Ninguém devia, na sua vida de ter de ver o abandono de um corpo em pedaços e olhar nos olhos alguém que viu a sua morte a acontecer. Pior, o Alfredo não tinha qualquer sinal de ter sido baleado. As conclusões desta observação são demasiado hediondas para eu as enunciar aqui.
Seguiu-se uma semana em que, refugiados no hotel Amarula, eu, o encarregado, o Pinto e um topógrafo a quem chamávamos carinhosamente Camolas, enviámos os nossos trabalhadores de helicóptero para o campo da Anadarko para serem reconduzidos para casa. Só no fim dessa semana, num domingo de sol, embarcámos os três no helicóptero rumo a Afungi. A nossa participação no processo foi tão profunda que os meus colegas me chamavam o chefe de escalas da Everett, a companhia que fornecia os helicópteros. Todos os dias era preciso fazer escalas com trabalhadores que estavam em condições de abandonar o Amarula.
Parámos o projeto três meses, esperando que a segurança fosse reposta. Mais tarde avançamos com o projeto, com os atentados a sucederem-se em volta. Lembro-me de um dia ter ido vistoriar uma pedreira de calcário recifal a Quionga e ter visto pelo caminho as populações das aldeias em debandada, de trouxas à cabeça, transportando todos os seus haveres consigo. Ao longe, numa aldeia perto do mar, grossas colunas de fumo saiam de casas de argila e madeira incendiadas. Fomos vendo as aldeias a esvaziarem-se, as populações a debandarem.
Provavelmente, também fomos cúmplices por termos continuado a trabalhar quando tudo nos dizia que estava na altura de parar.
É tempo de a comunidade internacional olhar de forma definitiva para o que se passa em Cabo Delgado. É tempo de o governo moçambicano olhar de forma definitiva para as populações e o seu sofrimento e não para os megaprojetos de extração de hidrocarbonetos e para a sua segurança. É tempo de alguém se importar. São vidas que se perdem todos os dias.
É tempo!