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O acordo pós-Brexit já vigora. Afinal, o que é que muda?

Ainda que em vigor de forma provisória, as relações entre a União Europeia e o Reino Unido são, a partir desta sexta-feira, reguladas pelo acordo de parceria política e económica que Bruxelas e Londres concluíram na véspera do natal. Com o Reino Unido fora do mercado único e da união aduaneira, são muitas as mudanças. Conheça as principais.

01 de Janeiro de 2021 às 10:00
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Esta sexta-feira, dia 1 de janeiro de 2021, assinala o dia em que entra em vigor o acordo de parceria entre a União Europeia e o Reino Unido. É, ainda assim, uma entrada em vigor provisória até que o conjunto dos 27 Estados-membros e o Parlamento Europeu aprovem o entendimento fechado antes do natal e que foi aprovado esta quarta-feira pelo parlamento britânico.

Findo o período de transição a 31 de dezembro, o Reino Unido, que deixou de ser membro da União em 31 de janeiro de 2020, deixa agora de estar integrado no mercado único europeu e na união aduaneira, pelo que as relações bilaterais passam a ser enquadradas pelo acordo de parceria política e económica formalmente firmado esta quarta-feira.

Está assim em vigor um acordo de comércio livre que demorou perto de 10 meses a concluir e que pode considerar-se inédito. É que, por norma, os acordos comerciais são negociados de modo a aproximar laços, reduzir entraves à troca de bens e, no fundo, abdicar de alguma soberania. Mas neste caso verifica-se o contrário, já que, em virtude do Brexit, fez-se um acordo para recuperar soberania em que a relação entre a UE e o Reino Unido será menos próxima e em que, necessariamente, conhecerá mais entraves.

O acordo agora em vigor implica diversas mudanças no relacionamento entre os dois blocos, porém mantém ainda diversas questões por definir, atiradas para negociações futuras. O não alinhamento regulatório dinâmico do Reino Unido em matéria de ajudas de estado deixa algumas interrogações e abre a porta a potenciais conflitos no futuro, enquanto as pescas e os serviços financeiros terão de ser discutidos em processos negociais ulteriores.

Tanto a UE como o Reino Unido mostraram satisfação pelo resultado obtido, contudo o desfecho deste longo e tortuoso processo ficou bem mais próximo das pretensões iniciais de Bruxelas do que o oposto. É que apesar de Londres ter conseguido ganhos de causa nas ajudas de Estado e no papel do Tribunal de Justiça da UE, o essencial das questões económicas ficou como queria Bruxelas.

O acordo foi assinado em Bruxelas dois dias antes de terminar o período de transição
O acordo foi assinado em Bruxelas dois dias antes de terminar o período de transição


Troca de bens

As partes acordaram que as trocas comerciais ficarão isentas de tarifas aduaneiras dos dois lados da Mancha nos produtos em conformidade com as regras de origem, estando também livres da aplicação de quotas (não há limite de bens). Todavia, são muitas as mudanças:

Sendo certo que a generalidade dos bens comercializados entre os dois blocos não será alvo de novas tarifas nem de quotas, serão impostas barreiras regulatórias em alguns casos. Tendo em conta, por exemplo, as regras de origem, o Reino Unido terá de certificar a origem das suas exportações para o espaço comunitário e, nos casos de bens que ultrapassem o limite de 40% à incorporação de componentes oriundos de países terceiros ao Reino Unido para o respetivo fabrico, poderão ser aplicadas novas taxas alfandegárias. Londres conseguiu que os componentes vindos da UE contem como "made in Britain".

Sem um acordo de reconhecimento mútuo, as entidades reguladores britânicas nem sempre conseguirão certificar bens para venda na UE, o que tem um enorme potencial para criar entraves e entropias nas trocas bilaterais.

Em matéria de segurança e saúde, a União vai requerer que os exportadores britânicos de bens alimentares assegurem certificados sanitários e controles fito-sanitários nos postos fronteiriços.

Nos casos de litígio, tanto a União como o Reino Unido poderão aplicar sanções comerciais de acordo com as regras previstas pela Organização Mundial do Comércio (OMC).

Mas se as trocas de produtos ficam praticamente inalteradas, o mesmo não se aplica aos serviços que, no essencial, passam a ser regulados ao abrigo das regras previstas pela OMC.

De qualquer forma, no que concerne aos direitos alfandegários, Bruxelas e Londres assumem o compromisso de minimizarem ao máximo os custos alfandegários para as empresas.

Regras de concorrência 

O chamado "level playing field", exigido por Bruxelas e um dos maiores obstáculos ao acordo alcançado, significa que os dois lados terão de seguir padrões idênticos ao nível laboral, ambiental, social e fiscal de forma a assegurar a inexistência de vantagens competitivas indevidas.


No entanto, e ao contrário do pretendido pela UE, não está previsto um mecanismo capaz de vincular o Reino Unido a acompanhar a evolução futura das regras em vigor no mercado único europeu. Ficou apenas prevista a criação de um mecanismo que permita a qualquer das partes aplicar sanções quando a contraparte divergir demasiado das regras em causa.

A resolução de litígios nestes casos também não ficará a cargo do Tribunal de Justiça da UE, outra exigência de Bruxelas, mas de um painel independente. Seja como for, o Reino Unido fica obrigado a agir em linha com as limitações comunitárias às ajudas de Estado e os dois blocos ficam obrigados a revelar os subsídios públicos que concedam ao setor privado.

Serviços financeiros

O acordo é omisso quanto à chamada equivalência, necessária para que as empresas que atuam na "City" londrina possam vender os seus serviços para o mercado único europeu.

A Comissão Europeia, que decide sobre o acesso ao mercado único, já avisou que precisa de mais informações de modo a atribuir maiores equivalências. Os dois lados decidiram negociar um memorando de entendimento, até março, com vista a um sistema reforçado de cooperação na supervisão financeira.

Certo é que o Reino Unido perderá parte do acesso ao mercado europeu neste setor que é determinante para as exportações britânicas.

Circulação de pessoas e acesso a profissões

Um dos principais objetivos definidos por Londres com o Brexit dizia respeito à recuperação da soberania nas decisões sobre circulação de pessoas, que o Reino Unido não queria livre tal como pressuposto nas quatro liberdades inerentes à participação no mercado único (livre circulação de pessoas, bens, serviços e capitais).

Doravante, estadias superiores a 90 dias vão necessitar de visto, pelo que acaba a livre circulação entre os dois blocos, seja para viver, estudar ou trabalhar.

O acordo de parceria estipula ainda o fim do reconhecimento mútuo automático de qualificações profissionais, pelo que, por exemplo, enfermeiros, médicos, ou engenheiros não terão acesso a um reconhecimento direto e imediato no país em que pretendam trabalhar. O acordo de parceria prevê um enquadramento, que terá ainda de ser trabalhado, para o reconhecimento das qualificações no futuro.

Londres vai aplicar um sistema de imigração assente em pontos e que determinará quem poderá viver e trabalhar em solo britânico.

O acordo implica ainda que o Reino Unido abandone o programa de intercâmbio de estudantes Erasmus, sendo que Londres já anunciou a criação de um programa idêntico. Mas as regras para o intercâmbio de estudantes sofre muitas alterações.

Os turistas britânicos não necessitam de visto para passar férias no Algarve
Os turistas britânicos não necessitam de visto para passar férias no Algarve Pedro Noel da Luz



Transportes

Ficou garantia a conetividade aérea, rodoviária, marítima e ferroviária entre os dois blocos. Mas o acordo não contempla, por exemplo, o reconhecimento automático da UE aos produtos aeroespaciais produzidos no Reino Unido, o que cria algumas desvantagens para o lado britânico.

Em relação aos aviões de carga e de passageiros, vão poder operar como até aqui, contudo haverá mudanças para os camiões de carga de longo curso. Ambas as partes comprometem-se a fazer uma gestão eficaz dos controles de vistos e fronteiriços, sobretudo na fronteira entre o Reino Unido e a União, e em especial para agilizar a passagem dos camionistas a fim de evitar filas intermináveis.

No entanto, os camiões de longo curso vindos de território britânico deixarão de poder efetuar três paragens em países da UE, podendo doravante fazer somente uma paragem.

Pescas

Foi um dos problemas mais difíceis de resolver nas conversações. Ficou acordado um período de transição de cinco anos e meio para as pescas, e ficaram previstas negociações anuais com o objetivo de determinar as quotas que deverão ser definidas para lá desse prazo. Durante esta fase, as duas partes asseguram direitos de acesso recíproco às aguas de cada um dos lados.

Neste período de transição, a UE aceitou um corte de 25% à respetiva quota pesqueira nas águas territoriais britânicas (bem inferior aos 80% que Londres começou por exigir). A UE assegurou o direito de adotar medidas de retaliação caso Londres não permita o acesso previsto às suas águas.

Aplicação da lei, segurança e resolução de disputas

O acordo de parceria mantém ampla continuidade ao nível da cooperação e troca de informações vigente até aqui, em particular nas áreas do terrorismo e crimes graves, áreas em que se mantêm as trocas existentes de DNA ou sobre informações de passageiros.

Londres vai cooperar com a Europol e a Eurojust, mas deixa de integrar estas entidades. Deixa  também de estar integrada no sistema de mandados de detenção europeu. E perde ainda acesso direto ao sistema de informações do espaço Schengen. Em relação aos processos de extradição, haverá um quadro legal similar ao que existe entre a UE e a Noruega.

Por outro lado, o Reino Unido continuará dentro da Convenção Europeia dos Direitos Humanos. Deste modo, se Bruxelas considerar que o Reino Unido violou alguma norma desta convenção poderá suspender unilateralmente a cooperação bilateral ao nível securitário.

Relativamente à polémica resolução de disputas, o Reino Unido parece ter conseguido levar a água ao seu moinho. Londres queria deixar de estar sob a alçada do Tribunal de Justiça europeu e Bruxelas pretendia que este tribunal tivesse vigência no Reino Unido para assegurar que os consumidores e empresas europeias não ficassem desprotegidos.

O acordo de parceria prevê a criação de mecanismos de resolução de conflitos "vinculativos". A Comissão Europeia afiança que estes instrumentos vão prevenir práticas de distorção da competição justa.

Política externa
O Reino Unido não quis integrar a política externa no caderno de encargos negocial. Assim, não ficou nada previsto no que diz respeito à política externa, de segurança e defesa, pelo que não existe agora nenhum enquadramento que consagre políticas comuns na aplicação de sanções a países terceiros ou na coordenação de esforços em respostas militares conjuntas.

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