Notícia
O grande esquema de dinheiro sujo russo que nunca existiu
A história que veio da polícia de Londres naquela tarde foi surpreendente.
No coração do distrito financeiro de Londres, capital financeira da Europa, a polícia tinha prendido um corretor na sede britânica da Archer-Daniels Midland que, segundo acreditavam as autoridades, estava a lavar dinheiro para um gangue russo.
Ainda mais impressionante: mais tarde viria a descobrir-se que pelo menos uma das empresas de negociação envolvidas parecia ter vínculos distantes ao presidente russo, Vladimir Putin.
Mas o que parecia ser uma pequena vitória na longa batalha do Reino Unido contra o dinheiro sujo logo se transformou numa investigação de um ano com direito a pistas mal interpretadas, alegações infundadas e, finalmente, reversões embaraçosas.
A história sobre como o caso foi criado - e depois se desmoronou - é uma amostra desses tempos financeiros bizantinos. Como outros países no mundo, o Reino Unido luta para combater uma onda global de lavagem de dinheiro. Seis semanas após a prisão, em Março de 2016, o então primeiro-ministro britânico, David Cameron, realizou uma cimeira muito vista para mostrar o Reino Unido como líder no combate à corrupção. Apesar de os esforços de autoridades e de bancos, um total estimado em 90 mil milhões de libras (100 mil milhões de euros) em dinheiro sujo passa todos os anos apenas pelo Reino Unido.
Mesmo os sucessos na luta do Reino Unido vieram com um senão. As autoridades multaram o Deutsche Bank em 163 milhões de libras logo depois de o banco ter informado que tinha ajudado clientes a resgatar cerca de 10 mil milhões de dólares de recursos suspeitos da Rússia através de Londres num período de três anos. E foi necessário um trabalho jornalístico do Projecto de Reportagem sobre Crime Organizado e Corrupção (OCCRP, na sigla em inglês), em 2014, para que fossem investigados cerca de 20 mil milhões de dólares tirados da Rússia através da Europa vinculados a uma rede denominada Global Laundromat.
Apreensão recorde
O caso em questão do distrito financeiro de Londres passa por diversas firmas de trading obscuras, pela gigante de commodities ADM e pela Intercontinental Exchange, que opera mais de uma dúzia de bolsas e mercados de valores, entre elas a venerável Bolsa de Valores de Nova Iorque.
As autoridades apreenderam 22 milhões de dólares - supostamente uma das maiores apreensões de dinheiro suspeito na história do distrito financeiro de Londres -, mas posteriormente foi conhecido que o tinham feito de forma ilegal.
Esta reportagem baseia-se em arquivos judiciais, documentos e entrevistas com pessoas envolvidas no caso que pediram para não serem identificadas porque a investigação terminou e alguns detalhes não vieram a público.
A história começa em Maio de 2015, quando a ICE notificou as autoridades britânicas sobre possíveis negociações suspeitas no mercado de futuros de petróleo. A actividade envolvia uma firma de trading registada nas Ilhas Virgens Britânicas, a Bunnvale, e duas empresas russas de negociação de petróleo sobre as quais a operadora da bolsa pouco sabia - um alerta imediato para os investigadores.
"Explicações inocentes"
A Bunnvale estava a ganhar dinheiro constantemente com negociações com as duas empresas, segundo o relatório da ICE, que foi visto pela Bloomberg News. Embora tal comportamento muitas vezes ocorra em casos de "front running" ou de lavagem de dinheiro, era possível que existissem "explicações inocentes" para os factos, observou a ICE.
Uma das firmas, a Merida Oil Traders, está ligada a Vladimir Kogan, um homem de negócios antes conhecido como banqueiro de Putin devido à sua participação num banco no qual Putin tinha uma poupança pessoal, segundo pessoas próximas da firma. A outra, chamada Intoil, está ligada ao bilionário russo Sergei Kislov. Porta-vozes de Kogan e Kislov preferiram não comentar o assunto.
A ICE informou à Autoridade de Conduta Financeira do Reino Unido (FCA, na sigla em inglês) que um corretor da ADM parecia participar neste enredo.
E assim o processo foi iniciado. A FCA entregou o caso à polícia do distrito financeiro de Londres, que abriu uma investigação em Fevereiro de 2016. Um mês depois, polícias à paisana prenderam Dzmitry Niadzvetski ao entrar no edifício do escritório da ADM com vista para o rio Tâmisa, logo após o amanhecer.
Caiu por terra
O caso começou a desmoronar praticamente desde o princípio. Niadzvetski, que as autoridades afirmavam ser russo, na verdade era britânico e bielorrusso. A polícia tomou a medida incomum de forçar a ADM a preencher cheques para cobrir 22 milhões de dólares em contas congeladas. Três das quatro empresas entraram com processos judiciais, alegando que a polícia agiu ilegalmente. Surgiram suspeitas em relação à informação que um dos detectives envolvidos na operação concedeu ao juiz que autorizou a apreensão.
Apesar de tudo, a polícia do distrito financeiro de Londres nunca revelou a identidade do suposto gangue russo. As autoridades também nunca informaram qual o crime cometido, se é que houve algum.
Finalmente, após um ano de pistas falsas e indícios que não levaram a lado algum, o caso foi discretamente encerrado.
Niadzvetski disse que a sua experiência mostra "como as coisas podem ser facilmente mal interpretadas". E acrescentou que o processo fez com que a sua "reputação profissional e pessoal fosse manchada e destruída por nada a não ser falsas alegações ‘circunstanciais’ baseadas na manipulação equivocada de informações".
Jasvinder Nakhwal, advogado que representa a Bunnvale e a empresa Ticom Management, do mesmo grupo, classificou o comportamento da polícia no caso como "extremamente lamentável". O processo pareceu ser sustentado nas nacionalidades das empresas, e não em provas concretas, afirmou o sócio do escritório Peters & Peters.
"Agradecidos pelo esclarecimento"
"É difícil entender porque é que a polícia usou um mecanismo ilegal para apreender recursos dos nossos clientes, excepto como um meio de evitar o escrutínio judicial de alegações que parecem ter sido mais baseadas no facto de as empresas serem em grande parte russas do que em qualquer prova", disse Nakhwal.
Porta-vozes da ADM e da ICE preferiram não comentar, assim como um advogado da Intoil. Um advogado de Merida não respondeu aos pedidos de comentários.
A polícia do distrito financeiro de Londres confirmou que a investigação foi encerrada, mas preferiu não fazer comentários adicionais. Em Abril, depois de um tribunal ter ordenado a devolução do dinheiro, uma porta-voz da agência afirmou que os polícias estavam "cientes de que este era um caso incomum sem precedentes legais a seguir", acrescentando que estavam "agradecidos pelo esclarecimento dado ao assunto pelo tribunal".
A enormidade de dinheiro suspeito que passa por Londres e a tentativa atrapalhada de apreender 22 milhões de dólares evidenciam os problemas maiores das autoridades encarregadas de combater a lavagem de dinheiro.
"Centenas de milhares de milhões de libras são lavadas através de bancos britânicos ou de subsidiárias em todo o mundo, e centenas de milhões de libras em imóveis em Londres são mantidos através de fundos suspeitos", disse Murray Worthy, activista sénior que trabalha em questões de lavagem de dinheiro para a Global Witness, um grupo sem fins lucrativos com sede em Londres. Worthy elogiou as novas medidas destinadas ao combate à lavagem de dinheiro, mas afirmou que o Reino Unido e o distrito financeiro de Londres ainda têm muito trabalho pela frente.
"Apesar de termos visto um progresso muito bom, ainda estamos muito longe de impedir que o Reino Unido desempenhe esse papel", disse Worthy.
(Texto original: Coming Clean: The Great Russian Dirty-Money Caper That Wasn’t)