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Rui Tavares: Uma carta de 2023

Há dez anos, decidimos não estar no negócio da adivinhação para estar no de fazer as coisas acontecer. Em Portugal, e na Europa, essa não foi uma decisão conjunta de um movimento unificado, mas uma tendência geral feita de muitas decisões individuais, influenciadas pelo que se estava a passar no resto do mundo. De repente, o espaço para a democracia estava a estreitar-se e a única maneira de salvar a democracia era empenharmo-nos em ampliá-la, sublinha o eurodeputado e historiador Rui Tavares na sua carta ao futuro.

A nova Cortina de Ferro na Europa divide a Europa endividada da Europa do crescimento
Negócios 27 de Junho de 2013 às 12:00
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Bandeiras com o símbolo "20141914" começaram a aparecer nas manifestações europeias. Eram uma exigência de que o ano de 2014 não fosse como o de 1914, ou seja, a primeira vez que os líderes europeus tinham ido para uma Guerra Mundial sem entenderem muito bem porquê, mas sem o conseguirem evitar.

Uma rede que juntava universidades e jornais (incluindo o Jornal de Negócios) organizou debates em todos os países da União com os candidatos à presidência da Comissão Europeia. Pessoas comuns exigiam respostas e explicações, os candidatos prometiam e comprometiam-se. Aquelas eleições de 2014, cujo grande tema foi "austeridade: sim ou não?", acabaram sendo as primeiras em que os europeus tiveram a sensação de escolher um "executivo da União" — um processo que continua a desenvolver-se hoje.

Em 2016, foram os portugueses a surpreender os outros europeus. Em vez de aceitarem serem representados no Conselho da UE por embaixadores ("negócios europeus não são negócios estrangeiros") decidiram passar a eleger os dois representantes nacionais na mais importante instituição legislativa da União, que pouco tempo antes era quase desconhecida. No restantes países, o exemplo português intrigou os governos e entusiasmou os cidadãos ("¿Por qué coño pueden los portugueses y nosotros no?", dizia-se em Espanha). Hoje é banal, já praticado por uma maioria de países, e vai entrar na próxima revisão dos tratados. O Conselho é hoje como um senado, cujas reuniões são abertas e cujos resultados são depois apresentados pelos "conselheiros" eleitos junto dos governos e parlamentos nacionais.

Essa novidade portuguesa foi apenas um ponto do grande esforço de democratização conhecido pelo nome de "Memorando de Desenvolvimento", que foi debatido em academias, associações e assembleias de todo o país durante mais de um ano. Na deliberação final, era um documento extenso, com ideias sobre tudo, desde a economia até à educação, da saúde à administração pública. Elementos hoje tão conhecidos como a realização de primárias abertas nos partidos, que possibilitaram governos e parlamentos menos dependentes do taticismo partidário, vêm desse tempo.

Hoje nem toda a gente se revê no que foi conseguido — um esforço semelhante ao do progressismo americano de cem anos antes, ou do movimento cartista britânico antes disso. O impulso inicial perdeu-se um pouco e não deixou de haver frustrações. Mas elas só têm significado se não compararmos com o que poderia ter acontecido — ou melhor, com o que efetivamente aconteceu.

Porque — chegou a hora de vos revelar o segredo deste texto — tudo o que está para trás é mentira. O que de facto aconteceu entre 2013 e 2023 foi muito diferente — para pior. Na verdade, a crise financeira e económica redundou numa crise social e política. Ao colapso dos direitos fundamentais e do estado de direito seguiram-se os regimes do "maioritarismo", um género híbrido entre a democracia e a ditadura. Mas mesmo esses falharam e os seus líderes buscaram o conflito para ocultar as suas responsabilidades. Os anos de 2014 em diante foram bem mais parecidos com o de 1914 e seguintes do que poderíamos imaginar. Muitos europeus buscaram o exílio e é de lá que vos chega esta carta.

Esta é a história que nos aconteceu. Quando acordámos para ela já era tarde demais. Espero que a vossa história venha a ser mais como aquela que desejámos.

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