Outros sites Medialivre
Notícias em Destaque
Notícia

"Os que cá estavam, não quiseram mais gente"

"Nunca tive ideia de apanhar uma coisa que não era minha". O senhor João, 77 anos, trabalha desde sempre para a família Andrade. Nascido e criado na Quinta da Azervada, em Coruche, o senhor João, enxada na mão, trata da terra. Não é sua, mas é como se fosse. "Tenho amor a isto". Não quer que lhe tirem esta rotina. No tempo das ocupações, ainda o quiseram pôr à frente da gestão da propriedade que foi a única na margem esquerda do Rio Sorraia a não ser ocupada.

15 de Fevereiro de 2010 às 11:50
  • ...
"Nunca tive ideia de apanhar uma coisa que não era minha". O senhor João, 77 anos, trabalha desde sempre para a família Andrade. Nascido e criado na Quinta da Azervada, em Coruche, o senhor João, enxada na mão, trata da terra. Não é sua, mas é como se fosse. "Tenho amor a isto". Não quer que lhe tirem esta rotina. No tempo das ocupações, ainda o quiseram pôr à frente da gestão da propriedade que foi a única na margem esquerda do Rio Sorraia a não ser ocupada.

"Esta propriedade era praticamente toda de vinha e tinha trabalhadores permanentes, que tinham assegurado o seu trabalho". José Andrade, dono da Quinta da Azervada de Cima, tinha 24 anos. Recém--licenciado em engenharia agrónoma, sabia o valor da liberdade conquistada pelo 25 de Abril. Mas, a demissão de Spínola [Setembro de 1974] mudou o rumo dos acontecimentos e fê-lo militar no PSD. "A reforma agrária já não tem a ver com o 25 de Abril, mas com a tomada de poder [por parte do PCP]".

Aquelas casas, que albergam, agora, turismo rural, estavam, em 1974, habitadas. E sabe-se por quem. O adegueiro, o abegão, o boieiro, o lavrador... os trabalhos perduram no nome das casas. Na adega, cenário hoje para outros repastos, produzia-se vinho, e as vendas até beneficiaram com o período conturbado das ocupações, lembra José Andrade - que mais tarde foi deputado na Assembleia da República, no I Governo Constitucional, e presidente da Confederação dos Agricultores de Portugal - que acabou por ir morar para a Quinta durante esse período. A Quinta da Azervada de Cima não foi ocupada, mas houve tentativas. Uma comissão de trabalhadores e uma manifestação não foram suficientes.

Como lembra Joaquim Canejo, que pertenceu ao Sindicato dos Operários Agrários, chegou-se a acordo: A família não despediu trabalhadores e a terra estava a produzir. José Andrade tem outra explicação. "Os sindicatos quiseram pôr pessoal de fora, mas os trabalhadores daqui não deixaram. Os que cá estavam não quiseram mais gente. Os próprios trabalhadores resistiram à dinâmica dos sindicatos de porem cá mais gente. Não houve interferência do proprietário". A justificação? Não havia "a dinâmica latifundiária". Trabalhadores e patrões, diz, colaboravam e havia afectividade. Mais uma vez o exemplo do senhor João, que ainda hoje vive na Quinta - dividida em 1956 pelo avô e tio-avô de José Andrade através de um processo simples de traçar ao meio a propriedade num mapa com uma régua.

Aguentar a Quinta da Azervada nem sempre foi fácil. As contas bancárias da família foram congeladas. Mas a produção de vinho e a solidariedade permitiu que os salários fossem sempre pagos. "Cumprimos sempre tudo. E conseguimos fazer, mesmo com as contas congeladas, porque houve pessoas solidárias connosco".

Ocupação da Sousa da Sé levou proprietários para Caxias

Também é à solidariedade que José Andrade atribui a libertação da prisão de Caxias. Com o pai e com o irmão, foram presos durante a ocupação de outra propriedade da família - a Sousa da Sé, em Évora -, que fica para a história pela "confrontação armada entre trabalhadores e um grupo de 12 elementos afectos aos proprietários" (segundo uma notícia do "Primeiro de Janeiro", citada em trabalhados publicados por António Barreto sobre a reforma agrária.
Foi essa ocupação que levou o ministro da Agricultura, Lopes Cardoso, e Álvaro Cunhal a um jantar na Sousa da Sé, depois da ocupação, para levar apoio aos trabalhadores. A Unidade Colectiva de Produção 15 de Junho (data da ocupação) foi criada. A família foi presa em Caxias. "Foi violento", lembra José Andrade, que, com a família, foi cercado. A rendição foi com bandeirinha branca, mas Caxias foi o destino.

Aí ficaram três dias e "a nossa prisão gerou um grande movimento de resistência". Ao ponto de haver uma manifestação em Santarém, na qual - segundo o relato de José Andrade - se gritou pela primeira vez "O povo não está com o MFA [Movimento das Forças Armadas]". Certo é que três dias depois, a família recebia ordem de libertação, onde se justificava: "Por não se ter provado pertencerem a uma associação de malfeitores".

José Andrade guarda, ainda hoje, esse documento. A Sousa da Sé, essa, estava perdida para os ocupantes. A propriedade fora comprada pelo pai José Manuel Andrade, que aí vivia, para desenvolver o sonho de ter uma ganadaria. Nos 900 hectares, dois trabalhadores permanentes tratavam de uma cabeça de gado por hectare. "Foi o investimento da vida do meu pai", que só viria a recuperar a herdade em 1986. "A casa estava alterada e até destruída. Já não havia gado", lembra José Andrade. Hoje, a Sousa da Sé já não está na família. Foi vendida e aí a Pelicano, de Jaime Antunes, pretende fazer um empreendimento turístico.


Ver comentários
Outras Notícias
Publicidade
C•Studio