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"Chegávamos a fazer canções à tarde para cantá-las à noite"

Corria o ano 68 e estava em vésperas de entrar para a Faculdade de Direito quando comprou um single de Zeca Afonso que cantava de um lado "O menino do bairro negro", do outro os "Vampiros". Eles comem tudo /E não deixam nada.

"Chegávamos a fazer canções à tarde para cantá-las à noite"
15 de Fevereiro de 2010 às 12:48
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Corria o ano 68 e estava em vésperas de entrar para a Faculdade de Direito quando comprou um single de Zeca Afonso que cantava de um lado "O menino do bairro negro", do outro os "Vampiros". Eles comem tudo /E não deixam nada.

"Acho que foi aí que descobri a pólvora, que percebi que a minha revolta tinha que ter aquela expressão". As "Aventuras de João sem Medo", que teria em estante, inspiraram-lhe, certamente, a "História de José sem Esperança", que viu a luz do dia nesse ano, num disco orquestrado por José Cid, que o regime logo mandou calar. Daí a tocar lado a lado com José Afonso, foi um pulo.

José Jorge Letria, músico, poeta e actual presidente da Sociedade Portuguesa de Autores, nasceu em berço burguês, na vila de Cascais. Mas cantou a revolução, ao lado de nomes como José Barata Moura, Fanhais, Manuel Freire, José Mário Branco, Sérgio Godinho, Luís Cila... "Éramos à volta de uma dezena, não mais". Juntavam-se para ouvir Paco Ibáñez, Brassens, Brel, Léo Ferré, Jean Ferrat. "E Bob Dylan, que foi fundamental para todos nós. Era a voz do protesto, do combate", conta. Para o Estado Novo, o pop-folk do americano não era uma ameaça equiparada às que chegavam da Europa, nomeadamente Espanha e França, onde cantavam algumas das vozes nacionais exiladas. "Tirando o 'Blowin' in the Wind', ele não tinha praticamente nada proibido". How many years can some people exist/ before they're allowed to be free?



O ano de 69 assinala a viragem. O canto livre, até então quase confinado aos convívios universitários, foi projectado em plena primavera marcelista pelo "Zip Zip", que surge em formato de talk show e editora discográfica. A música de intervenção faz-se ouvir em cooperativas, parques de campismo e nos primeiros sindicatos que estavam a nascer. "Éramos disponíveis, não cobrávamos cachet e estávamos em todo o lado", recorda. Viola no saco, a canção era portátil e itinerante. "O desejo geral de mudança era sintetizado e consubstanciado em palavras e sons. Não havia nenhuma outra arte que tivesse essa capacidade. E nenhuma força política, nem sequer o Partido Comunista, controlava este movimento, embora alguns fôssemos militantes . Isso desnorteava o regime, era uma perplexidade. Éramos nós e as nossas canções. A malta chegava com a viola na mão e começava a cantar. Era tudo muito jovem e informal. Quando o regime se apercebeu da dimensão, o fenómeno já estava disseminado", afirma Letria. Tarde demais.

Foi assim até à meia-noite em que a voz de Zeca Afonso, na Emissora Nacional, dá ordem de marcha aos militares do MFA. O povo é quem mais ordena/Dentro de ti, ó cidade. No novo regime não existiam dúvidas quanto ao poder de galvanização da canção. "A canção era uma forma de crónica quase quotidiana dos avanços e recuos da revolução e um factor permanente de mobilização popular. Era a caixa de ressonância de praticamente tudo o que cabia dentro do conceito de revolução. E a nossa capacidade de intervenção era tal, que chegávamos a fazer uma canção à tarde para cantá-la à noite. A esta distância, isso é esteticamente muito difícil de aceitar. Mas é preciso perceber que as revoluções são tempos de excepção, que alteram o próprio ritmo dos relógios", retrata Letria.

Tudo era tema e palco. A estética triunfante ajudava a marcar o passo. Só de punho erguido a canção fará sentido! Os ventos da revolução levaram a palavra de intervenção ao campo. Trabalhadores agrícolas cantaram e foram cantados. Músicas como "A Vitória é Nossa" baptizaram as novas unidades colectivas de produção. Uns de viola em mão, outros de enxada, alimentavam a utopia. "Vivi o período das ocupações com muita intensidade. Vi, por exemplo, a ser constituída a Cooperativa 1º de Maio, de Aviz, onde cantei várias vezes", conta.

Hoje com 58 anos, e desvinculado do PCP há quase duas décadas, Letria olha para trás com o orgulho quem pertenceu a uma geração combativa, "de guerrilha, utopia e sonho". Fazia sentido gritar a "terra a quem a trabalha". "Identifiquei-me ideologicamente com o objectivo programático da reforma agrária. O que eu via eram homens e mulheres a viver os momentos de maior felicidade da sua vida. Houve alturas em que me emocionei até às lágrimas. Com o tempo também fui percebendo que a lógica ocupacional do PC tinha a sua componente burocrática, estalinista. E não há dúvida de que o processo de ocupação, que era produtivo, ideológico e partidário, criou novos poderes. O responsável da cooperativa que normalmente era um elemento destacado do PC", recorda.

Letria, que estava então apaixonado pelo País, é hoje um "amante decepcionado". Sem arrependimento. "Fiz aquilo que tinha a ver com o meu sentido de justiça social, a minha visão do Homem, a vontade de mudança e o sentido utópico que tinha da política e da realidade". Mantém a alma de agitador, garante. "Mas havia espaço para a tentação da felicidade e hoje não há.". As gerações revolucionárias nunca são gerações felizes, mesmo quando triunfam, diz. Pouco apetece cantar. "Não gosto particularmente dos tempos que estamos a viver..."


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