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Miguel Real: Inferno e Paraíso

Em 2023, a não existir uma revolução social e tudo continuar nas mãos dos notáveis do PSD ou do PS, Portugal assemelhar-se-á a um inferno e a um paraíso, prevê o escritor, ensaísta e professor de Filosofia Miguel Real, na sua carta ao futuro.

No reino da heterodoxia
Negócios 27 de Junho de 2013 às 14:00
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Inferno demográfico, com a escala etária invertida, abundante de idosos e carente de jovens.

Inferno territorial, com um imenso buraco de desenvolvimento entre o interior e o litoral.

Inferno económico, desmembrada a pequena, mas forte classe média criada desde Marcello Caetano até António Guterres.

Inferno social, com uma altíssima taxa de desemprego e a maior taxa de suicídios e de violência familiar na Europa.

Inferno cognitivo, com a emigração maciça e o desemprego nacional dos jovens cientistas e licenciados.

Inferno em qualidade de vida para a maioria da população, com dois milhões e meio de pobres e outros tantos em risco de o serem.

Inferno financeiro, com o Estado permanentemente endividado, tornado escravo de credores externos.

Inferno de elites políticas, com a recusa de qualquer cidadão com formação de qualidade e imperativo ético em trabalhar no ou para o Estado.

Diferentemente, Portugal será um paraíso, cheio de oportunidades excitantes, para a classe dos carreiristas das juventudes partidárias, dos oportunistas, incapazes de singrarem socialmente pela qualidade do seu trabalho, para os chico-espertos, os arrivistas e os burocratas que desavergonhadamente ousarem estender-se como capachos vivos de financeiros e de políticos poderosos. Atendendo à tradição secular de submissão do povo português ("familiar" do Santo Ofício; sicofanta do Marquês de Pombal; colaborador da polícia do Pina Manique e informador da PIDE), não faltarão cidadãos que, submetendo-se a ricos e poderosos, preferirão trocar a liberdade pela segurança financeira familiar.

Com efeito, desde os governos Sócrates e com a cumplicidade do Presidente da República - cuja política o responsabiliza por péssimas opções desenvolvimentistas enquanto primeiro-ministro, apostando mais no betão do que na formação, mais no consumo do que na industrialização -, Portugal assiste a uma das mais radicais alterações de valores éticos havidas na nossa história. Com a introdução abrupta e sem sentido do neo-liberalismo, Portugal tem assistido à substituição de um modelo social comunitário, de escala horizontal, participativo, de tendência igualitarizante, possibilitador, no entanto, de uma genuína mobilidade social, por um outro modelo, exterior à nossa história, especificamente norte-americano, de escala vertical, individualista, segundo o modelo social de "safe-se quem puder", disciplinadamente rígido, de tendência discriminatória segundo a origem de nascimento e critérios fundados em resultados quantitativos objectivos, com desprezo total pela qualidade de vida da totalidade dos cidadãos, sobretudos dos mais pobres.

Portugal já foi absolutista, constitucionalista, republicano, corporativo, socialista e social-democrata. Faltava-lhe ser neo-liberal puro e duro, dominado por uma elite partidária oportunista e culturalmente ignorante, para a qual o valor da pessoa humana se mede exclusivamente pelo dinheiro na carteira. Velhos, que morram sem assistência nem medicamentos; estudantes pobres, que vão trabalhar; desempregados, a família que trate deles; famílias com poucos rendimentos, que cultivem uma horta e comam nabiças e couves; desajustados socialmente, a polícia que lhes sove a cabeça e os prenda; especuladores, oportunistas, membros dos conselhos de administração das empresas públicas, que façam pela calada para a comunicação social nada saber e assim continuarem a ostentar as suas mordomias; mortos, que morram com dinheiro, senão reinstala-se a vala comum.

Resultado: como hoje, dentro de 10 anos, assistir-se-á à total ausência de classe média em Portugal, única classe simultaneamente empreendedora e crítica, humanista e aberta, culta, amante das artes e dos saberes, orgulhosa da tradição e capaz de avançar um passo liberal nos costumes. Única classe que nos falta para tornarmos Portugal um país equilibrado e promissor.

De classes pobres estamos muito bem abastecidos, obrigado. De classes ricas, não temos o suficiente. Mas de classes oportunistas, como os últimos governos e conselhos de administração de bancos do estado e de empresas públicas têm dado provas públicas diárias, dessas, seguindo o exemplo da aplicação das poupanças e das várias reformas e ordenados do Presidente da República, estamos cheios até rebentar.

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