Notícia
Fusão dos Teatros Nacionais é frivolidade política pura
O ex-director regressa ao Teatro Nacional de São João como artista convidado. A uma semana de estrear "Sombras", o encenador revolta-se contra a fusão do teatro portuense com o D. Maria II, São Carlos e Companhia Nacional de Bailado, organizações "menos maduras" e com muito menos "repercussão e prestígio". Ricardo Pais arrasa a competência de Gabriela Canavilhas e "a espécie de cacofonia gestorial digna dos piores dias de Santana Lopes". É preciso salvar o teatro da governação socialista, diz. E já.
O Governo anunciou a extinção do Teatro Nacional de São João (TNSJ), que vai ser integrado, juntamente como o D. Maria II, no OPART (que já gere o São Carlos e a Companhia Nacional de Bailado). É uma decisão no âmbito das medidas de austeridade. E é uma fusão "empresarial", sendo que o Ricardo Pais criticou, ao longo de anos, a própria transformação dos teatros nacionais em empresas (EPE), por ser uma visão tecnocrata.
Tecnocrata, não: incompetente. Tecnocrata, em princípio, não tem qualquer carga negativa. O que está em causa é uma visão completamente incompetente do que são os teatros e do que é a gestão teatral. A ministra [da Cultura, Gabriela Canavilhas] não tem ideia nenhuma do que se passa no TNSJ, nem da relação que há entre o modelo de gestão aqui praticado e o projecto artístico. Ao que me dizem, nunca assistiu sequer a uma produção própria deste teatro desde que é ministra.
A ministra justificou: é preciso fazer esta fusão do TNSJ porque é a forma de o manter viável.
Não, o que a ministra diz é muito pior: que sem a fusão o TNSJ não teria dinheiro para o seu dia-a-dia. É escandaloso dizê-lo. O teatro nunca deixou de ter dinheiro para o seu dia-a-dia. E, pelo que sei, se transitar com défice este ano, será o mesmo défice com que sempre transitou desde 1995, quando vim [como director] para o TNSJ. É um défice em trânsito por produção. O que acontece, sim, é que o orçamento do TNSJ vem a decrescer entre 15% e 20% desde 1995, "non stop".
Mas é no Orçamento do Estado para 2011 que há medidas drásticas contra a crise financeira.
A ideia de que, neste momento, é necessário economizar a qualquer preço é uma falsa questão. O Teatro sempre foi tratado como um lugar em crise; tem o mesmo orçamento que o Teatro Nacional D. Maria II administrando três grandes espaços, dos quais dois são teatros; além disso, o Teatro nunca esteve em "falha técnica". No esvaziamento a que se chegou, ao fechar-se o Teatro Rivoli no Porto, o TNSJ assumiu praticamente a responsabilidade integral pela co-produção e acolhimento de tudo quanto é espectáculo do Norte do País - e não só. Neste momento, faz quatro produções próprias no Porto, cinco produções próprias em digressão, nove co-produções no Porto, 14 co-produções em digressão, 41 acolhimentos por ano. E circula ininterruptamente.
Será assim também com o "Sombras"?
Sim. Quando começou a ser ensaiado, o projecto já estava colocado em vários sítios. Na estreia, estará representada a Junta da Galiza. Faremos uma digressão galega, regressando a Santiago, Vigo e Corunha, depois de lá termos estado com o "Turismo Infinito". Estamos a tratar com Madrid, Valência e Barcelona (Madrid já está praticamente marcada para Novembro do próximo ano). "Sombras" será apresentado em Paris, em Abril do próximo ano. O espectáculo é essencialmente uma encomenda do Brasil, onde iremos voltar - depois do êxito brutal que foi o "Turismo Infinito", no ano passado.
É uma exportação.
Sim, é uma exportação. Mas parece ser completamente insignificante. Mais nenhum organismo do Estado tem este tipo de actividade, como, aliás, mais nenhum tem a organização técnico-artística, a maturidade técnica e, inclusivamente, alguns serviços - centro de documentação, edições próprias, etc. - como o São João tem. Mas dá impressão de que estamos a falar de um "coitadinho", que não se consegue safar, quando na realidade está perfeitamente bem gerido. Foi, inclusive, avaliado da melhor maneira possível pelo Tribunal de Contas antes de eu sair (o que havia de críticas era dirigido ao Governo), e nunca se queixou de mais do que de falta de orçamento.
Falta de orçamento: não é uma crítica original.
Mas este é um orçamento que vem a decrescer desde 1995, não tem rigorosamente nada a ver com a crise. A crise serve de desculpa para encaixar este organismo num conjunto de outros que individualmente reconhecerão - privada ou até publicamente - que são organizações infinitamente menos maduras do que o TNSJ, com muito menos repercussão e prestígio nacional e internacional, e que além disso estão todas em Lisboa. Isto parece, aliás, uma Santa Aliança entre a senhora ministra e o dr. Rui Rio na destruição ou, pelo menos, na ignorância da importância das organizações culturais a sério, quer elas produzam sucessos Pulitzer da Broadway com as vedetas plastificadas de televisão ou não. É a total ignorância desta realidade nortenha e o conluio com a destruição sistemática do Teatro no Porto.
O São João será engolido pelas organizações maiores mas piores, é isso?
Ninguém vai acreditar que a introdução deste teatro naquele conjunto vai servir para outra coisa do que para dissipar a sua própria unidade técnico-artística. Esta casa vive com os mesmos trabalhadores há muitos anos, 92 pessoas, nunca teve um conflito laboral. Não estamos a falar das 500 pessoas da OPART... Isto é uma medida da maior gravidade. Não só porque vem desculpar-se com a suposta dificuldade de gestão - quando é ela própria considerada, até internacionalmente, um modelo de gestão económica e financeira -, como também porque, cinicamente, a absorve e a contamina com tudo o que está mal nos outros organismos, que é muito e é reconhecido, suscitando ainda a ameaça de despedimentos.
Dizia que o TNSJ tem o mesmo orçamento do D. Maria II mas gere três espaços...
E tem metade do que tem a Casa da Música, que é uma Fundação. Não estou a falar da Casa da Música com Orquestra, estou a falar de metade do orçamento de funcionamento que o Ministério atribui à Casa da Música. Vejo que continua a haver uma segregação sistemática do TNSJ, que ainda por cima é frequentemente gabado pelos próprios ministros e pelos altos dignitários da nação como sendo um projecto de excepção. Só posso entender como uma perfídia ou como uma atitude muito ínvia a inclusão deste teatro, que é um lugar de "resistência artística", no conjunto das confusões que existem em Lisboa.
O TNSJ queixa-se, como os outros, de falta de orçamento. Mas que retorno dá?
Os números de público desta casa subiram, mesmo depois da minha saída. Em 2010, estão estimados 81 mil espectadores, em 2009 foram 77 mil. Só para dar uma ideia, o número a que o director de um teatro é "obrigado" numa cidade como Reims é de 90 mil espectadores por ano. Reims tem os hábitos culturais que tem. E nós estamos a falar de uma pequeníssima cidade, o Porto, e de um teatro que ocupa um edifício a cair, cercado de andaimes para que não caiam bocados da ornamentação exterior em cima das pessoas.
Voltemos aos Teatros EPE [Entidade Pública Empresarial]. O objectivo na sua criação era profissionalizar a gestão dos teatros e racionalizar os seus custos.
As EPE surgiram com este "porquinho mealheiro" que se chama Ministério das Finanças, mas não são mais que uma forma doentia de controlo do "cash flow" das finanças centrais. O que está na base é o raciocínio de "sacar" o mais que se puder para tentar cobrir, de alguma forma, a despesa pública. Na verdade, confunde-se completamente despesa com investimento.
O argumento é: estamos em crise, a restrição orçamental é brutal e tem de ser partilhada por todos os ministérios. Incluindo a Cultura. Incluindo os seus tutelados.
Mas alguém alguma vez perguntou quanto é que custou transformar o TNSJ numa EPE e quais foram os resultados que se alcançaram? Estou a falar do longo consulado Sócrates e dos vários ministros que, quanto a mim, têm vindo a piorar sucessivamente. Alguém já fez a contabilidade analítica do investimento "per capita" em espectadores depois de ser EPE face ao que existia antes, quando era um instituto público com autonomia financeira? Alguém veio aqui verificar se se está mais feliz com a burocracia total, com a brutalidade que se pagou só em formadores para se perceber como funcionam centros de custos, como se estimula o empreendedorismo sectorial, como se faz mais economia posto a posto - para um organismo que nunca sabe sequer quanto é que vai receber este ano, quanto mais para os próximos três que tem de programar? Alguém sabe quais foram os custos desta fantástica iniciativa?
Nunca houve custos descontrolados no TNSJ porque ele nunca custou mais de um ano para o outro, pelo contrário. Alguém fez alguma vez esta análise com o teatro ou alguém se encarregou no Ministério de a fazer? Têm lá centenas de assessores de competência duvidosa, pendurados nos gabinetes a fazer sabe Deus o quê.
E no OPART, vai melhorar?
Não sei. Estará alguém a perguntar a quem tenha vivido estes problemas em cada uma das casas o que deve ser o próximo instrumento legal que cria a nova "grande OPART", de que forma vai ela reflectir a diversidade de experiências e como se consegue encontrar um máximo denominador comum? Está alguém a falar disso? A senhora ministra diz que vai ter um documento pronto brevemente. Que eu saiba, dos meus amigos administradores, ninguém viu documento algum. A não ser que vão todos para a rua, coisa em que não acredito... Jorge Salavisa parece já ser indicado como presidente, mas ninguém foi tido ou achado neste assunto.
As medidas de austeridade das Finanças surpreenderam os outros ministérios. Há pouco tempo para executar. E a ministra da Cultura diz que não há dinheiro para o São João.
Deixe-me dizer uma coisa: estar a fazer um espectáculo aqui, no São João, é um privilégio para qualquer pessoa. É comovente montar um espectáculo desta complexidade, no tempo recorde em que foi montado, com os talentos absurdos que estão aqui reunidos - Paulo Ribeiro, Mário Laginha, Fabio Iaquone, os intérpretes, todos de primeira categoria -, com a bonomia, a agilidade, a velocidade e a qualidade fantástica desta casa. E uma pessoa faz isto sabendo que há dificuldades financeiras. Como artista convidado, não se sente em momento nenhum que esta casa esteja a lutar pela sua sobrevivência, como diz a senhora ministra. Em vez de "salvar a casa", como diz a senhora ministra, a única coisa que é preciso é protegê-la da governação socialista, e o mais rapidamente possível. Não sei se para melhor ou pior, mas que se salve disto. Manifestamente, a única coisa que tem prejudicado o TNSJ são os sucessivos governos, com estas loucuras que nunca são contabilizadas, nunca são estudadas, e se sucedem umas às outras numa espécie de cacofonia gestorial digna dos piores dias de Santana Lopes.
O Ministério da Cultura estará, então, a fazer esta fusão porquê? Só para poupar dinheiro?
São devaneios políticos que não têm nada a ver com nada. É o instinto centralizador. Percebo que a máquina de propaganda socrática terá muitíssimo mais por onde se mexer e controlar se tiver um só instrumento a tomar conta de todas estas casas. Mas nem acredito que seja isso, acho que é frivolidade política pura. Estamos sempre a regressar à pré-história, pois é a única forma que os ministros encontram de ser originais e parecer que estão a trabalhar, quando, na realidade, não têm um tostão para fazer nada, nem sabem como fazê-lo.
São actos de gestão de crise, não?
Com os orçamentos como os que existem, e da maneira como são retidos e cativados, como é que se pode falar em gestão? Como, se 20% do orçamento foi cativado e nunca chegou a ser descativado? É sonegado. Acredito que seja preciso para outras coisas, mas, então, que tal seja dito desde o princípio. Como é que se pode falar em gestão? Gestão é a palavra mais gasta e abusada desta história.
Insisto: a Cultura está a participar no esforço da crise orçamental.
Claro, mas a Cultura é a única que está a participar desde o princípio... A cultura está em contenção desde que me conheço.
Pensemos nessa outra forma de Estado que somos nós, o contribuinte, o espectador. Num momento de crise nacional, de iminência de intervenção externa, de falta de autoconfiança e de identidade, de que forma é ou não a cultura importante?
Aí teríamos de parar para falar de outra coisa. Falamos sistematicamente de cultura e muito assistematicamente de arte. O grande objectivo da cultura é a produção artística. É natural que a senhora ministra se sinta muito bem em vir à abertura do "Porto Fashion", nunca tendo ido ao TNSJ assistir a uma produção própria. Fica bem, é chique. Isso nunca excluiu essa coisa determinante, que tem a ver com a educação, a qualificação, etc., que é a facilitação do acesso à criação artística e da sua comunicação e divulgação. Enquanto isto não estiver nas prioridades dos governos, não vale a pena falar de mais nada, porque não estamos, de facto, a falar de cultura. Estamos a falar de uma espécie de repartição da casa política, que se chama "cultura" como se podia chamar "Simões e Companhia".
Prioridade: criação artística.
Precisamente, se se tivesse a criação artística como prioridade, o TNSJ seria o teatro mais acarinhado do País. E é, infelizmente, o menos acarinhado. A senhora ministra é muito pérfida quando diz que a única forma de salvar uma casa que não tem dinheiro para o seu dia-a-dia é a fusão, porque se sabe que o TNSJ sempre teve a cara lavada e uma das melhores performances, precisamente com os poucos meios que tinha, que lhes estavam a ser sistematicamente ocultados. E sem que ninguém estivesse a olhar para isto com olhos de ver a repercussão imensa que tem nas pessoas, precisamente pela arte que pratica, e - mistério... - na economia!
Nota: as fotografias publicadas nesta notícia são de João Tuna e foram cedidas pelo autor e pelo Teatro Nacional de São João, a quem agradecemos.
Tecnocrata, não: incompetente. Tecnocrata, em princípio, não tem qualquer carga negativa. O que está em causa é uma visão completamente incompetente do que são os teatros e do que é a gestão teatral. A ministra [da Cultura, Gabriela Canavilhas] não tem ideia nenhuma do que se passa no TNSJ, nem da relação que há entre o modelo de gestão aqui praticado e o projecto artístico. Ao que me dizem, nunca assistiu sequer a uma produção própria deste teatro desde que é ministra.
A ministra justificou: é preciso fazer esta fusão do TNSJ porque é a forma de o manter viável.
Não, o que a ministra diz é muito pior: que sem a fusão o TNSJ não teria dinheiro para o seu dia-a-dia. É escandaloso dizê-lo. O teatro nunca deixou de ter dinheiro para o seu dia-a-dia. E, pelo que sei, se transitar com défice este ano, será o mesmo défice com que sempre transitou desde 1995, quando vim [como director] para o TNSJ. É um défice em trânsito por produção. O que acontece, sim, é que o orçamento do TNSJ vem a decrescer entre 15% e 20% desde 1995, "non stop".
A ideia de que, neste momento, é necessário economizar a qualquer preço é uma falsa questão. O Teatro sempre foi tratado como um lugar em crise; tem o mesmo orçamento que o Teatro Nacional D. Maria II administrando três grandes espaços, dos quais dois são teatros; além disso, o Teatro nunca esteve em "falha técnica". No esvaziamento a que se chegou, ao fechar-se o Teatro Rivoli no Porto, o TNSJ assumiu praticamente a responsabilidade integral pela co-produção e acolhimento de tudo quanto é espectáculo do Norte do País - e não só. Neste momento, faz quatro produções próprias no Porto, cinco produções próprias em digressão, nove co-produções no Porto, 14 co-produções em digressão, 41 acolhimentos por ano. E circula ininterruptamente.
Será assim também com o "Sombras"?
Sim. Quando começou a ser ensaiado, o projecto já estava colocado em vários sítios. Na estreia, estará representada a Junta da Galiza. Faremos uma digressão galega, regressando a Santiago, Vigo e Corunha, depois de lá termos estado com o "Turismo Infinito". Estamos a tratar com Madrid, Valência e Barcelona (Madrid já está praticamente marcada para Novembro do próximo ano). "Sombras" será apresentado em Paris, em Abril do próximo ano. O espectáculo é essencialmente uma encomenda do Brasil, onde iremos voltar - depois do êxito brutal que foi o "Turismo Infinito", no ano passado.
É uma exportação.
Sim, é uma exportação. Mas parece ser completamente insignificante. Mais nenhum organismo do Estado tem este tipo de actividade, como, aliás, mais nenhum tem a organização técnico-artística, a maturidade técnica e, inclusivamente, alguns serviços - centro de documentação, edições próprias, etc. - como o São João tem. Mas dá impressão de que estamos a falar de um "coitadinho", que não se consegue safar, quando na realidade está perfeitamente bem gerido. Foi, inclusive, avaliado da melhor maneira possível pelo Tribunal de Contas antes de eu sair (o que havia de críticas era dirigido ao Governo), e nunca se queixou de mais do que de falta de orçamento.
Falta de orçamento: não é uma crítica original.
Mas este é um orçamento que vem a decrescer desde 1995, não tem rigorosamente nada a ver com a crise. A crise serve de desculpa para encaixar este organismo num conjunto de outros que individualmente reconhecerão - privada ou até publicamente - que são organizações infinitamente menos maduras do que o TNSJ, com muito menos repercussão e prestígio nacional e internacional, e que além disso estão todas em Lisboa. Isto parece, aliás, uma Santa Aliança entre a senhora ministra e o dr. Rui Rio na destruição ou, pelo menos, na ignorância da importância das organizações culturais a sério, quer elas produzam sucessos Pulitzer da Broadway com as vedetas plastificadas de televisão ou não. É a total ignorância desta realidade nortenha e o conluio com a destruição sistemática do Teatro no Porto.
O São João será engolido pelas organizações maiores mas piores, é isso?
Ninguém vai acreditar que a introdução deste teatro naquele conjunto vai servir para outra coisa do que para dissipar a sua própria unidade técnico-artística. Esta casa vive com os mesmos trabalhadores há muitos anos, 92 pessoas, nunca teve um conflito laboral. Não estamos a falar das 500 pessoas da OPART... Isto é uma medida da maior gravidade. Não só porque vem desculpar-se com a suposta dificuldade de gestão - quando é ela própria considerada, até internacionalmente, um modelo de gestão económica e financeira -, como também porque, cinicamente, a absorve e a contamina com tudo o que está mal nos outros organismos, que é muito e é reconhecido, suscitando ainda a ameaça de despedimentos.
Isto parece uma Santa Aliança entre a senhora ministra da Cultura e o dr. Rui Rio. É o conluio com a destruição sistemática do Teatro no Porto. |
Dizia que o TNSJ tem o mesmo orçamento do D. Maria II mas gere três espaços...
E tem metade do que tem a Casa da Música, que é uma Fundação. Não estou a falar da Casa da Música com Orquestra, estou a falar de metade do orçamento de funcionamento que o Ministério atribui à Casa da Música. Vejo que continua a haver uma segregação sistemática do TNSJ, que ainda por cima é frequentemente gabado pelos próprios ministros e pelos altos dignitários da nação como sendo um projecto de excepção. Só posso entender como uma perfídia ou como uma atitude muito ínvia a inclusão deste teatro, que é um lugar de "resistência artística", no conjunto das confusões que existem em Lisboa.
O TNSJ queixa-se, como os outros, de falta de orçamento. Mas que retorno dá?
Os números de público desta casa subiram, mesmo depois da minha saída. Em 2010, estão estimados 81 mil espectadores, em 2009 foram 77 mil. Só para dar uma ideia, o número a que o director de um teatro é "obrigado" numa cidade como Reims é de 90 mil espectadores por ano. Reims tem os hábitos culturais que tem. E nós estamos a falar de uma pequeníssima cidade, o Porto, e de um teatro que ocupa um edifício a cair, cercado de andaimes para que não caiam bocados da ornamentação exterior em cima das pessoas.
Voltemos aos Teatros EPE [Entidade Pública Empresarial]. O objectivo na sua criação era profissionalizar a gestão dos teatros e racionalizar os seus custos.
As EPE surgiram com este "porquinho mealheiro" que se chama Ministério das Finanças, mas não são mais que uma forma doentia de controlo do "cash flow" das finanças centrais. O que está na base é o raciocínio de "sacar" o mais que se puder para tentar cobrir, de alguma forma, a despesa pública. Na verdade, confunde-se completamente despesa com investimento.
O argumento é: estamos em crise, a restrição orçamental é brutal e tem de ser partilhada por todos os ministérios. Incluindo a Cultura. Incluindo os seus tutelados.
Mas alguém alguma vez perguntou quanto é que custou transformar o TNSJ numa EPE e quais foram os resultados que se alcançaram? Estou a falar do longo consulado Sócrates e dos vários ministros que, quanto a mim, têm vindo a piorar sucessivamente. Alguém já fez a contabilidade analítica do investimento "per capita" em espectadores depois de ser EPE face ao que existia antes, quando era um instituto público com autonomia financeira? Alguém veio aqui verificar se se está mais feliz com a burocracia total, com a brutalidade que se pagou só em formadores para se perceber como funcionam centros de custos, como se estimula o empreendedorismo sectorial, como se faz mais economia posto a posto - para um organismo que nunca sabe sequer quanto é que vai receber este ano, quanto mais para os próximos três que tem de programar? Alguém sabe quais foram os custos desta fantástica iniciativa?
Nunca houve custos descontrolados no TNSJ porque ele nunca custou mais de um ano para o outro, pelo contrário. Alguém fez alguma vez esta análise com o teatro ou alguém se encarregou no Ministério de a fazer? Têm lá centenas de assessores de competência duvidosa, pendurados nos gabinetes a fazer sabe Deus o quê.
O ministério tem centenas de assessores de competência duvidosa, pendurados a fazer sabe Deus o quê. |
E no OPART, vai melhorar?
Não sei. Estará alguém a perguntar a quem tenha vivido estes problemas em cada uma das casas o que deve ser o próximo instrumento legal que cria a nova "grande OPART", de que forma vai ela reflectir a diversidade de experiências e como se consegue encontrar um máximo denominador comum? Está alguém a falar disso? A senhora ministra diz que vai ter um documento pronto brevemente. Que eu saiba, dos meus amigos administradores, ninguém viu documento algum. A não ser que vão todos para a rua, coisa em que não acredito... Jorge Salavisa parece já ser indicado como presidente, mas ninguém foi tido ou achado neste assunto.
As medidas de austeridade das Finanças surpreenderam os outros ministérios. Há pouco tempo para executar. E a ministra da Cultura diz que não há dinheiro para o São João.
Deixe-me dizer uma coisa: estar a fazer um espectáculo aqui, no São João, é um privilégio para qualquer pessoa. É comovente montar um espectáculo desta complexidade, no tempo recorde em que foi montado, com os talentos absurdos que estão aqui reunidos - Paulo Ribeiro, Mário Laginha, Fabio Iaquone, os intérpretes, todos de primeira categoria -, com a bonomia, a agilidade, a velocidade e a qualidade fantástica desta casa. E uma pessoa faz isto sabendo que há dificuldades financeiras. Como artista convidado, não se sente em momento nenhum que esta casa esteja a lutar pela sua sobrevivência, como diz a senhora ministra. Em vez de "salvar a casa", como diz a senhora ministra, a única coisa que é preciso é protegê-la da governação socialista, e o mais rapidamente possível. Não sei se para melhor ou pior, mas que se salve disto. Manifestamente, a única coisa que tem prejudicado o TNSJ são os sucessivos governos, com estas loucuras que nunca são contabilizadas, nunca são estudadas, e se sucedem umas às outras numa espécie de cacofonia gestorial digna dos piores dias de Santana Lopes.
O Ministério da Cultura estará, então, a fazer esta fusão porquê? Só para poupar dinheiro?
São devaneios políticos que não têm nada a ver com nada. É o instinto centralizador. Percebo que a máquina de propaganda socrática terá muitíssimo mais por onde se mexer e controlar se tiver um só instrumento a tomar conta de todas estas casas. Mas nem acredito que seja isso, acho que é frivolidade política pura. Estamos sempre a regressar à pré-história, pois é a única forma que os ministros encontram de ser originais e parecer que estão a trabalhar, quando, na realidade, não têm um tostão para fazer nada, nem sabem como fazê-lo.
São actos de gestão de crise, não?
Com os orçamentos como os que existem, e da maneira como são retidos e cativados, como é que se pode falar em gestão? Como, se 20% do orçamento foi cativado e nunca chegou a ser descativado? É sonegado. Acredito que seja preciso para outras coisas, mas, então, que tal seja dito desde o princípio. Como é que se pode falar em gestão? Gestão é a palavra mais gasta e abusada desta história.
Insisto: a Cultura está a participar no esforço da crise orçamental.
Claro, mas a Cultura é a única que está a participar desde o princípio... A cultura está em contenção desde que me conheço.
Pensemos nessa outra forma de Estado que somos nós, o contribuinte, o espectador. Num momento de crise nacional, de iminência de intervenção externa, de falta de autoconfiança e de identidade, de que forma é ou não a cultura importante?
Aí teríamos de parar para falar de outra coisa. Falamos sistematicamente de cultura e muito assistematicamente de arte. O grande objectivo da cultura é a produção artística. É natural que a senhora ministra se sinta muito bem em vir à abertura do "Porto Fashion", nunca tendo ido ao TNSJ assistir a uma produção própria. Fica bem, é chique. Isso nunca excluiu essa coisa determinante, que tem a ver com a educação, a qualificação, etc., que é a facilitação do acesso à criação artística e da sua comunicação e divulgação. Enquanto isto não estiver nas prioridades dos governos, não vale a pena falar de mais nada, porque não estamos, de facto, a falar de cultura. Estamos a falar de uma espécie de repartição da casa política, que se chama "cultura" como se podia chamar "Simões e Companhia".
Prioridade: criação artística.
Precisamente, se se tivesse a criação artística como prioridade, o TNSJ seria o teatro mais acarinhado do País. E é, infelizmente, o menos acarinhado. A senhora ministra é muito pérfida quando diz que a única forma de salvar uma casa que não tem dinheiro para o seu dia-a-dia é a fusão, porque se sabe que o TNSJ sempre teve a cara lavada e uma das melhores performances, precisamente com os poucos meios que tinha, que lhes estavam a ser sistematicamente ocultados. E sem que ninguém estivesse a olhar para isto com olhos de ver a repercussão imensa que tem nas pessoas, precisamente pela arte que pratica, e - mistério... - na economia!
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"Sombras" que fantasmagorizam o nosso ideário O espectáculo estreia esta semana, no Porto. E marca o regresso, dois anos depois, de Ricardo Pais ao Teatro Nacional de São João. E ao Brasil - que, afinal, lhe encomendou "isto". Isto? "Sombras". As sombras "são as coisas - temas, figuras, referências - que fantasmizam o nosso ideário e o nosso imaginário, nomeadamente o meu imaginário teatral", explica numa entrevista "interna", que será tornada pública com o arranque do espectáculo. Foi em 2009, quando esteve no Brasil com "Turismo Infinito", que lhe pediram "um espectáculo de fado 'a sério'", o que ele, aliás, já tinha feito. "Essa proposta dos nossos amigos brasileiros aconteceu porque a identificação do público de São Paulo com o 'Turismo Infinito' e com o Fernando Pessoa foi absolutamente fascinante". Então, "propus ao Nuno Carinhas fazermos uma coisa que correspondesse, na medida do possível, à encomenda brasileira: uma incursão no território da nossa língua, aí incluindo o fado". Deu "Sombras". "Temos, enquanto portugueses, um problema de auto-identidade de que a melhor metáfora é o jogo de retratos do Frei Luís de Sousa... Mas reconheçamos que alguns dos mitos ditos fundadores do nosso imaginário popular ou colectivo configuram uma realidade algo artificial. O próprio fado é uma espécie de fenómeno mantido artificialmente. A mitologia do fado, as referências do fado - do Marialva à Severa, passando mais recentemente pelas femininas espigas do Alentejo ou pelos masculinos cacilheiros do Tejo... -, tudo isso não diz efectivamente nada a ninguém", refere Ricardo Pais. Que escolheu para subtítulo do espectáculo um paradoxo: "A nossa tristeza é uma imensa alegria." Como diz? "Não é o princípio romântico de que o sofrimento e a separação são necessariamente motivo de missão, não é da alegria sofrida de que falo. É mesmo da alegria como aquilo que resulta de termos destapado finalmente a tristeza. E destapar a tristeza é aquilo que a gente faz de cada vez que sobe o pano, não é?" É: daqui a uma semana, o pano sobe. "E, realmente, o passo do teatro português que toda a gente sabe de cor é o 'Romeiro, Romeiro, quem és tu? Ninguém'." "Sombras" Teatro Nacional de São João, Porto 18 a 28 de Novembro de 2010 Uma criação e encenação de Ricardo Pais, com vídeo de Fabio Iaquone e Luca Attilii, música original e direcção musical de Mário Laginha, coreografia de Paulo Ribeiro, cenografia de Nuno Lacerda Lopes. Interpretação: José Manuel Barreto, Raquel Tavares (fadistas); Emília Silvestre, Pedro Almendra, Pedro Frias (actores); Carla Ribeiro, Francisco Rousseau, Mário Franco (bailarinos); Mário Laginha (piano), Carlos Piçarra Alves (clarinete), Mário Franco (contrabaixo), Miguel Amaral (guitarra portuguesa), Paulo Faria de Carvalho ou Diogo Clemente (viola); Albano Jerónimo, António Durães, João Reis, Teresa Madruga. |
Nota: as fotografias publicadas nesta notícia são de João Tuna e foram cedidas pelo autor e pelo Teatro Nacional de São João, a quem agradecemos.