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Costa sobre Lacerda Machado: "Um primeiro-ministro não tem amigos"
O primeiro-ministro pediu desculpas, dizendo que o dinheiro guardado por Vítor Escária em São Bento o magoava e envergonhava. Sobre Lacerda Machado diz que tê-lo considerado amigo foi "momento de infelicidade". Para o futuro, exclui voltar a exercer cargos políticos.
"Sem me querer substituir à Justiça, em que confio e em que respeito, não posso deixar de partilhar que a apreensão de envelopes com dinheiro no gabinete de uma pessoa que escolhi para comigo trabalhar, mais do que me magoar pela confiança traída, envergonha-me perante os portugueses e aos portugueses tenho o dever de pedir desculpa", afirmou a partir da residência oficial, em São Bento.
António Costa, que justificou esta nova comunicação ao país - já depois de se ter demitido - com a necessidade de explicar a importância dos projetos que estão a ser investigados pela Justiça e a postura do Governo, começou e terminou esta intervenção a falar do seu chefe de gabinete, agora arguido no âmbito da Operação Influencer. Apesar de ser alguém "em quem depositava confiança para as funções que exercia", deixou de a ter depois do episódio dos envelopes, algo que precipitou, disse, a decisão de se demitir da liderança do Governo.
Lacerda Machado é suspeito de exercer influência junto do primeiro-ministro para acelerar projetos, sendo que essa capacidade de influência seria aumentada pela proximidade ao primeiro-ministro. No entanto, António Costa rejeita essa amizade: "Apesar de eu ter dito, num momento de infelicidade, que ele era o meu melhor amigo, aquilo que é a realidade é que um primeiro-ministro não tem amigos. Queria deixar isso claro, o que quer que Lacerda Machado tenha feito, nunca o fez com o meu conhecimento ou interferência. Nunca, mas nunca falou comigo."
"Não está no meu horizonte voltar a exercer qualquer cargo público"
O primeiro-ministro disse considerar essencial explicar ao país a ação do Governo no que toca aos projetos de lítio, e em particular, a Sines, sublinhando que se sentia "muito à vontade para clarificar" os procedimentos, tendo em conta que já se tinha demitido e que não pensa voltar a exercer qualquer cargo público.
"No momento em que cesso as minhas funções, e não está no meu horizonte voltar a exercer qualquer cargo público, entendo ser importante salientar que esta ação política e esta ação governativa é essencial", afirmou.
O governante demissionário sublinhou que o papel do Executivo é conciliar interesses, sendo no caso de Sines o da preservação ambiental e o do desenvolvimento industrial. "A razão pela qual decidi fazer esta comunicação num sábado à noite é que, ao ver os diferentes noticiários, fui verificando que, além dos casos concretos, pressupunha-se uma ideia que me parecia muito perigosa: a ideia que os governantes não devem agir para atrair investimento, que não devem agir para resolver problemas que surgem na execução de investimentos, que não devem agir para simplificar os processos burocráticos e eu acho que essas são ideias perigosas para o futuro do país", alertou.
"A simplificação promove a transparência. A burocracia promove a opacidade", disse, defendendo ser essencial que qualquer Governo, incluindo o próximo, tenha "liberdade de ação política".
Em relação ao caso concreto de Sines e ao centro de dados, "o maior investimento em Portugal desde a Autoeuropa", Costa assegurou que todos os projetos foram "obrigados a respeitar os valores ambientais".
Sobre a exploração de lítio em Montalegre e Boticas, defendeu que "o país não se pode dar ao luxo" de não o aproveitar, "mas isso implica mitigar o impacto que isso tem nas populações". Garantiu que em ambos os casos "os concessionários foram obrigados a cumprir as condições impostas por esses estudos [de impacto ambiental], seja para a localização mais adequada da refinaria de modo a assegurar a preservação do lobo ibérico, seja para assegurar as necessidades de abastecimento de água, seja para a construção de uma nova via necessária para ligação à autoestrada".
Acima de tudo, o primeiro-ministro disse querer tranquilizar os investidores estrangeiros. "É essencial dar uma palavra de confiança aos que querem investir em Portugal. Somos um Estado de Direito onde a lei se cumpre, mas também criamos condições para atrair investimento. Não é o facto de haver lei que nos deve colocar na posição de paralisia, do medo de estar a violar a lei. A lei não se cumpre na paralisia da decisão", afirmou.
O primeiro-ministro recuperou uma frase muitas vezes por si repetida - "à justiça o que é da justiça, à política o que é da política" - para dizer que o lema também significa que "aos futuros governos de Portugal, quem quer que sejam os primeiros-ministros e quem quer que sejam os seus membros, tem que ser garantida a liberdade de ação política para prosseguir uma ação legítima".
António Costa é alvo de uma investigação autónoma do Ministério Público num inquérito instaurado no Supremo Tribunal de Justiça, após arguidos da "Operação Influencer" - num processo relacionado com negócios sobre o lítio, o hidrogénio verde e um centro de dados em Sines - terem invocado o seu nome como tendo intervindo para desbloquear procedimentos.
Aquando da sua demissão, Costa recusou a prática "de qualquer ato ilícito ou censurável".
O Ministério Público considera que houve intervenção do primeiro-ministro na aprovação de diplomas favoráveis aos interesses da empresa Start Campus, responsável pelo centro de dados, de acordo com a indiciação, que contém várias outras referências a António Costa.
No âmbito da "Operação Influencer", foram detidos para interrogatório o chefe de gabinete do primeiro-ministro, Vítor Escária, o presidente da Câmara de Sines, Nuno Mascarenhas, dois administradores da sociedade Start Campus, Afonso Salema e Rui Oliveira Neves, e o advogado Diogo Lacerda Machado, amigo de António Costa.
Além destas cinco pessoas, foram também constituídos arguidos neste processo João Galamba, o presidente da Agência Portuguesa do Ambiente, Nuno Lacasta, o advogado e antigo porta-voz do PS João Tiago Silveira e a empresa Start Campus.
Em causa, segundo o Ministério Público, podem estar em causa os crimes de prevaricação, corrupção ativa e passiva de titular de cargo político e tráfico de influência.
*com Rui Neves