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As corridas loucas dos carros amarelos

Dona Maria já tinha o saco pronto. Ricardo é um bom homem que o álcool derrotou e Patrícia apresentava o corpo coberto de hematomas. O INEM foi em seu socorro.

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Um saco de cartão com medicamentos, uma bolsa com documentos, uma pêra. E ainda uma faca. Maria de Lurdes, 62 anos, tem tudo pronto. Quando, há uns minutos, ligou aflita para o 112, queixando-se de falta de ar e de dor forte no peito, já sabia que esse era o bilhete que lhe daria uma ida, que ela esperava sem volta, até ao hospital. E até já tinha o destino definido na sua cabeça: o Hospital Pulido Valente.

Joana e Hugo só mais tarde viriam a perceber isso. A informação que recebem na central do INEM (Instituto Nacional de Emergência Médica) é diminuta. Deixam para depois a limpeza da ambulância amarela e arrancam à máxima velocidade para um bairro na Charneca do Lumiar, onde vêem uma sexagenária a acenar na janela de um rés-do-chão alto. "É a dona Maria de Lurdes", pergunta Joana. "Ai, sou sim, ai", responde a senhora debilitada, ao mesmo tempo que faz descer um cordel que tem preso, na ponta, a chave da porta do prédio. Os técnicos do INEM sorriem. Hugo Nunes, mais tarde, à porta do hospital, haveria de dizer que "muitas vezes os problemas sociais e psicológicos se sobrepõem aos de saúde".

Em casa, logo à entrada, Maria de Lurdes está sentada num banco, com as duas mãos apoiadas na bengala e um tubo que lhe dá o oxigénio que precisa para viver, mas que não lhe dá descanso. Está sempre a saltar-lhe das narinas porque as orelhas, "tombadas", não suportam a fita, nem mesmo quando a técnica do INEM lhe põe um elástico "à rambo".

Enquanto Hugo vai retirando o material da mala, Joana pergunta à doente o que sente e acalma-a. Mede-lhe a tensão e conta, tomando-lhe o pulso, os batimentos cardíacos. Antes mesmo de lhe dizerem que a vão levar para o hospital, já Maria de Lurdes mostra a sua preferência: "quero ir para o Pulido Valente." Uma indicação seguida de mais um lamurioso "ai".

Hugo vai buscar a cadeira de rodas. Joana ajuda-a a vestir o roupão e põe-lhe uma manta pelas costas: "vamos embora dona Maria de Lurdes." "Tenho ali um saco com coisas para levar. Está no chão entre a mesa de cabeceira e a cama", aponta a senhora, acrescentando que não quer voltar a casa. À saída, manda fechar a porta de casa, onde mora com o filho e a nora, com a chave lá dentro. Já na rua, com sorriso na cara e com mais "ais" mas sem queixas, Maria de Lurdes revela as "saudades" que tinha de "sair à rua".

Ambulância ou táxi

Chegada ao hospital e no caminho para a triagem, Maria de Lurdes, antecipando a frustração do seu desejo, pergunta ao técnico do INEM: "então e se eu não ficar internada, posso-vos chamar para me levarem de volta." "Muitas pessoas acham que nós somos um táxi", comenta Hugo em voz baixa, após negar o pedido.

Pesados os prós e os contra, Joana Feu, há três anos no INEM, afirma convicta que "este é o melhor trabalho do mundo". "É tão bom perceber que com coisas tão simples fazemos a diferença", explica a técnica de ambulância em emergência, já dentro da viatura que segue para uma rua perpendicular à Almirante Reis.

"Ajudem-no que é bom homem"

"Já cheiram daqui?", pergunta Joana, à medida que a ambulância se aproxima da esquina onde está um homem caído.

Se existissem dúvidas quanto ao diagnóstico, elas ficariam esclarecidas com os comentários que se vão ouvindo da boca dos ‘mirones’: "Ele é uma boa pessoa. O problema é a bebida"; "ele bebe muito"; "eu já disse que não lhe deviam dar bebida".

Todos os que passam o conhecem, mas ninguém sabe o seu nome. Só o "irmão" Rui, como o próprio se intitula, vai tentar descobrir e aparece com uma semi-resposta: "É Ricardo. Ajudem-no que ele é um bom homem", apela, escrevendo num pedaço de papel o seu número de telemóvel que pede aos técnicos para entregarem no hospital pois Ricardo "não tem família".

Dentro da ambulância e a muito custo, Joana consegue "arrancar" finalmente a Ricardo o seu segundo nome. Manuel. E a idade? 48. Mas os dados são poucos e na urgência do S. José não o conseguem encontrar nos registos, o que não o impede de entrar imediatamente para a triagem.

Casos como os de Ricardo Manuel e de Maria de Lurdes são frequentes no dia-a-dia dos técnicos do INEM, explica Hugo. Mas também têm de auxiliar equipas médicas em situações mais graves, como a que agora lhes chega, via telemóvel. Voam até à Academia Militar onde, pouco depois das oito da noite, aterra um helicóptero do INEM. Lá de dentro saltam um médico e um enfermeiro que, com a ajuda de Hugo e Joana, transportam um homem com queimaduras provocadas por choque eléctrico, para a ambulância, entretanto aquecida, de forma a prevenir hipotermia.

Hugo vai para o volante e na parte de trás, com o ferido, segue o resto da equipa, que o acompanha até ao Hospital de S. José onde é, de imediato, recebido pela equipa de cirurgia plástica.

É precisamente em situações mais delicadas como esta que Ana Lufinha e Vítor Carocha, da viatura médica de emergência e reanimação (VMER) do Hospital S. Francisco Xavier, são chamados a intervir.

À boleia de uma VMER

"Saída VMER.. Francisco Xavier". O alerta, que desta vez esperou pelo fim do almoço, ecoa do pequeno rádio – tipo "walkie talkie" – que a médica Ana Lufinha traz consigo.

Pé a fundo no acelerador, o enfermeiro assume a condução e a médica Acciona e regula a sirene. No caminho até Alfornelos não há filas de trânsito que resistam, nem semáforos vermelhos que os travem. A informação que têm é a de que uma mulher foi encontrada caída ao lado da cama e há suspeita de intoxicação medicamentosa.

Chegados ao local encontram estendida no chão da sala Patrícia, nome fictício, de 39 anos, com um hematoma recente que a impede de abrir o olho esquerdo e nódoas negras espalhadas pelo corpo. Os dois técnicos do INEM, que chegaram instantes antes, arrastaram-na do quarto, onde estava envolta em urina. Em cima da mesa estão várias caixas vazias de anti-psicóticos.

Patrícia fala mas não se percebe uma única palavra. O enfermeiro Vítor assegura-se que ela sente as pernas e os braços, abre-lhe os olhos e tenta perceber se tem o maxilar partido. A suspeita de agressão é agora muito mais forte e o caso torna-se ainda mais estranho quando o vizinho que pediu socorro revela ser pai da agredida, negando qualquer maltrato. Perante os factos, Ana Lufinha chama a PSP. "A situação é muito estranha, mas não nos cabe a nós averiguar", explica a médica, enquanto preenche a folha que dá aos técnicos do INEM para entregarem no hospital.

Esta foi a última das cinco saídas que Ana e Vítor tiveram desde as oito da manhã. Poucas justificaram a deslocação da VMER. "A questão é que mais vale pecar por excesso do que por defeito. O accionamento depende das indicações que chegam ao CODU (Centro de Orientação de Doentes Urgentes). As pessoas que ligam, como estão preocupadas, fazem mais do que as coisas são", diz a médica. Outro aspecto que pesa é quando há crianças envolvidas, como no caso que lhes chegou ao rádio perto do meio-dia: "uma criança de 11 anos pede ajuda porque o tio está com falta de ar e não reage".

Dez minutos depois Ana e Vítor chegavam à casa de Martinho, de 46 anos, em Queluz. O terceiro andar sem elevador torna-se ainda mais penoso por causa da mala médica, com cerca de 25 quilos de fármacos "salva vidas", e o monitor desfibrilhador, que os acompanham para todo o lado.

Sem medicamentos e com plasma

Martinho está sentado na cozinha com os bombeiros por perto. "O senhor tem asma", pergunta logo a médica, que recebe um sim com a cabeça. A origem da crise de asma é explicada mais tarde por Martim, já com máscara de aerossóis, que diz não ter dinheiro para comprar os remédios. Martim começa a respirar melhor e Ana Lufinha dá indicações aos bombeiros para o levarem ao hospital. "E pronto, mais uma vida salva", diz à saída da cozinha.

Perto da porta de saída, uma outra, entreaberta, dá entrada para um mundo à parte: uma sala com um ecrã plasma de muitas polegadas e um home cinema que muitas famílias da classe média só vislumbram nas lojas. "Às vezes são casas em que vivem muitas pessoas da mesma família e os compartimentos de uns estão vedados aos outros", avança a médica.

Em oito horas de serviço, três foram na base, mas não houve nenhum período "morto". Não fosse esta a VMER com mais saídas, talvez por ser a segunda mais antiga do país. Ana Lufinha, enquanto coordenadora, teve sempre assuntos para tratar. Já Vítor certificou-se de que as baterias dos vários aparelhos estavam carregadas e de que não faltava nada na viatura. Nos intervalos entre as saídas repôs os medicamentos entretanto usados.

Apesar de tudo foi um turno tranquilo. Ninguém morreu, nem ninguém esteve perto disso. Mas nem sempre é assim.

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