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"Em Portugal vivemos sempre entre expulsar e ser expulsos"

Francisco José Viegas deixou, há meses, a Secretaria de Estado da Cultura. Não deseja ainda fazer o relatório e contas da sua passagem pelo Governo.

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Haverá tempo para isso. Prefere falar de Jaime Ramos, o investigador que regressa às páginas de um livro, "O Colecionador de Erva" (Porto Editora), um policial que olha para Portugal e para os portugueses e também para personagens que observam o mundo que vai mudando à sua volta. Por isso, fala-se de política. E de economia. E de cultura.

 

 

 

No início de “O Colecionador de Erva”, Jaime Ramos olha para uma paisagem pintada por William Turner: “nuvens, carregadas ou suaves, tormentas ou sopros de cor. E, por vezes, a explosão de um céu limpo e azul”. Olha-se e vive-se a falsa calma antes da tempestade, tal como vive Portugal, de que aqui falamos, e das suas cíclicas incertezas: que modelo de país queremos, porque emigramos, porque deixámos o interior, porque expulsámos o capital financeiro e intelectual, porque é que nos sentimos incomodados pela Europa? São as dores de Portugal que acabam por ser investigadas por Jaime Ramos. E que Francisco José Viegas descodifica, passando pela economia e pela cultura, como faróis para compreender os ressentimentos da sociedade de hoje. Fala-se de política não se falando dela.

 

Porque é que um dos principais personagens deste teu novo livro colecciona erva?

Há um discurso sobre a erva, que hoje está completamente interiorizado num determinado estrato social, numa determinada geração, e tem a marca de uma ligeira transgressão. Aqui há uma transgressão que não é só praticada por ele, mas por quase todos os personagens, porque só o Jaime Ramos e o Isaltino de Jesus é que escapam a essa transgressão. Mas também é uma história real que eu e o José Eduardo Agualusa conhecemos no mesmo dia, à mesma hora, e andámos durante quatro, cinco anos, a dizer: quem é que aproveita esta história? E calhou-me a mim, mais ou menos por moeda ao ar.

 

O pensamento económico sobre essa transgressão também mudou. Há muitos pensadores liberais que consideram que muitas drogas deveriam poder estar no mercado e, portanto, reguladas e taxadas…

Exactamente. Mas não nos encaminhámos para isso. Por um lado, por motivos morais e, por outro, porque do ponto de vista médico não está provado que seja completamente inocente. As investigações têm dado conta de que os malefícios existem e não são inocentes. Por aí a doutrina diverge um pouco sobre os efeitos e consequências do uso de droga, de marijuana ou erva. Mas é um comportamento mais ou menos aceite em sociedade e limitei-me a usar essa possibilidade, uma prática mais ou menos normalizada. Infelizmente, os efeitos em mim são sempre desgraçados porque eu fico mal disposto, dá-me um sono horrível, nunca posso fazer um relato da experiência propriamente dita…

 

O Jaime Ramos é um homem de valores… fica um pouco desconfortável com a situação.

Sim, mas também é um homem do mundo. Nada lhe é estranho. Fica desconfortável mas, sendo um homem do mundo, também é tolerante. Limita-se a observar um bocadinho entre o seu mundo e o dos outros. Nessa medida, ele também é um observador. Vive muitas coisas como um observador.

 

Há falta de tolerância no mundo actual?

Depende se falamos de Portugal ou da Europa. Mas, mais do que falta de tolerância, no nosso mundo, Portugal e a Europa, estamos a viver um período de grande ressentimento. Acho que há uma fractura qualquer que aconteceu há 10, 20 anos, e que nos acompanha até hoje. E depois houve divisões políticas, houve a guerra do Iraque, que criou uma fractura na sociedade europeia sobre o papel da Europa e o seu destino e, sobretudo, sobre o papel da política. Em Portugal também não ficámos imunes a isso e, com a crise económica actual, esse ressentimento cresceu e atinge, por vezes, foros de insensatez pura. Não há uma procura de uma solução para os conflitos e estes acabam por nunca ser resolvidos. Os político-económicos, porque acabam por estar na mão de toda a Europa, e não na nossa. Os outros, que têm mais a ver com a sociedade portuguesa, não temos coragem para os encarar de frente, para estudá-los e interrogá-los. Tivemos sempre esse problema ao longo da história.

 

Neste livro encontramos personagens de diferentes latitudes. E isso é curioso numa altura em que na Europa voltamos a ter esse ressentimento. É a destruição do sonho de tolerância e de vivência multicultural que havia no início do sonho europeu, não?

Nós vivemos em Portugal esse sonho multicultural com a emigração. Há sempre um discurso um bocadinho dúbio de Portugal sobre a emigração. Neste momento, acho que a nossa sociedade, também por causa dos problemas do emprego e da economia, está a ficar mais pálida. Menos participada em termos multiculturais. Aí não é muito diferente do que se vive na Europa. Eu aí tenho uma vantagem: os meus personagens não se dão no circuito europeu. Passam muito mais facilmente para a África, para a América Latina ou para a Europa de leste do que para Paris, Londres e outras cidades do centro. Têm sempre um pedaço agarrado ao velho império, a questões que nunca foram resolvidas. Uma delas é África. Nós julgávamos que tínhamos resolvido África, que era um capítulo encerrado na nossa história, e estamos a ver que África pode fazer parte da solução de alguns dos nossos problemas mais imediatos. E, por outro lado, ainda faz parte da nossa memória e das nossas referências. Basta ver que um dos filmes mais importantes do ano passado foi o “Tabu”, cujo centro de gravidade era África. Essa marca, 30 ou 40 anos depois, não desapareceu nem desaparece.

 

Regressamos à simbologia nacional. Estamos sempre a olhar para o mar, para o Atlântico ou para o Mediterrâneo. Sempre a sonhar com o Índico. Isto em vez de estarmos a olhar para a Europa, que passou de sonho a pesadelo, de onde só estamos à espera das notícias que, no tempo do Eça, vinham de comboio, e agora chegam pela televisão…

E lá vinha o Proudhon em pacotes, encaixotado. Acho que nunca resolvemos essa questão europeia. Para muitos portugueses que eu conheço, e que tu conheces, Portugal ainda é visto um bocadinho como a Metrópole. Portugal vive muito da diáspora. É uma sociedade em diáspora. Não só nos damos bem fora do país como temos uma má relação com estas paredes que nos encostam à Europa. Não saímos muito disto e isto é algo que vem desde os anos 70, quando fomos encostados a essa inevitabilidade, com o fim dessa relação com África. Mas, periodicamente, há ciclos de emigração para o Brasil e para África. Continuamos a fazê-lo. Porquê? Porque uma parte da nossa identidade tem a ver com a diáspora e com o estarmos fora de Portugal.

 

Parte dos personagens que surgem são do Leste europeu. No livro, Isaltino de Jesus, quase espantado, diz que os russos são bons imigrantes, esforçam-se mais, são melhores a matemática, trabalham mais, são mais atentos…

A filha do Isaltino de Jesus tinha umas colegas que eram as melhores em gramática e matemática. Eu acho que nós, na relação com o estranho, vemo-nos sempre como ligeiramente superiores. Isso acontecia com África (eram os “pretinhos”, era uma posição caridosa…) e quando aparece essa imigração de Leste, que era uma imigração qualificada ou com um passado qualificado, havia engenheiros militares, havia professores, pessoas com formação académica que ultrapassava largamente a de aqui, dos portugueses, esse confronto sentiu-se com mais força e com mais intensidade. Era complicado: havia senhoras que tinham como empregadas domésticas pessoas que tinham sido professoras de química e havia senhores que faziam reparações lá em casa que tinham sido engenheiros do exército soviético. Isso baralhou um bocado as contas da imigração. Nós estávamos habituados a imigração que era para as auto-estradas e para o Alqueva. Isso mudou um bocadinho. Esse confronto foi muito bom para nós. Nunca tivemos atendimento comercial tão bom como tivemos desde que os brasileiros vieram para Portugal. Isso também nos marcou, mas uma das coisas mais depressivas que vamos ver aos poucos é que Portugal já não é um destino da imigração. Somos nós outra vez os emigrantes.

 

É como se fossemos devolvidos à nossa condição de sempre…

Isso. Como se fôssemos devolvidos à nossa génese, ao nosso DNA mais tristonho e histórico, até.

 

Voltámos a um tempo em que estamos outra vez a falar do Padre António Vieira, do Agostinho da Silva e do Fernando Pessoa. Estamos quase a precisar de uma nova voz que diga, outra vez de forma quase épica: vamos para fora para descobrir Portugal, não te parece?

Sim, isso foi o que me apaixonou no “Longe de Manaus”, quando o escrevi. Foi essa gente que ia para fora e não queria voltar. De maneira nenhuma. Os portugueses que faziam coisas grandiosas lá fora, que eram pessoas extraordinárias em todo o lado, e há uma espécie de maldição aqui na nossa pequena pátria. Isso acontecia no Brasil recém-formado no século XIX porque os que iam lá para fora e regressavam com fortuna feita maltratavam esta terra e não tinham uma grande ideia dela. Isso voltou, de alguma maneira.

 

O fenómeno do “brasileiro”, o português que ia para o Brasil e voltava rico, está de volta.

Era o português que tinha resultado. Obviamente que é um bocadinho frio e pode haver nessa frieza o sinal de alguma indiferença, que é o pior que há em política, que é quando se apela à emigração ou se desculpabiliza a emigração. Mas tem sido esse o nosso destino. Não só os intelectuais que vinham de fora no século XVIII, o D. Luís da Cunha, o Verney, o Ribeiro Sanches, como depois nos anos 70, também por motivos políticos, veio toda essa gente de fora. Mas a verdade é que as mudanças em Portugal só acontecem com essa injecção de capital, quer financeiro, quer mental, vindo de fora. Como se aqui tivéssemos de viver fechados, vivendo numa modorra muito pobre e triste e pequenina. Sem glória, brilho ou intensidade.

 

Depois dos Descobrimentos, que atraiu a nata da finança e do pensamento a Lisboa, começámos a correr a pontapé os judeus que foram para a Turquia e para a Holanda criar os novos pólos financeiros e intelectuais.

Vivemos sempre entre expulsar e ser expulsos. Expulsámos os judeus, a família Abravanel, que era um auxílio fundamental da Coroa, expulsámos a família do Espinosa, ou seja, expulsámos também o capital inteligente, mais tarde expulsámos novamente o capital inteligente com os jesuítas, e vivemos sempre nessa condição de ser expulsos e de expulsar. E neste momento vivemos também um bocadinho isso.

 

É um outro fim do ciclo?

Sim, mas eu temo que este fim de ciclo seja mais doloroso. Desde o final dos anos 80 que temos vivido por arrasto. Vamos assim porque a Europa também vai nesta direcção. Vamos para o euro porque isto nos ajuda. Vamos aproveitar os fundos europeus. Vamos aproveitar a onda de crescimento da Europa. E, neste momento, quando falamos do crescimento, falamos da Europa. E porque é que a Europa não cresce? E a questão que se coloca, que é muito mais grave, que não tem a ver com a crise de Chipre, a grega, portuguesa ou alemã, é: e se a Europa não cresce? E se o centro da economia, da inteligência e da nova vida está definitivamente em Singapura, na Tailândia, na Austrália, na Índia? E se isso é assim, o que é que nós vamos fazer? O que é que nós vamos fazer ao modelo de abundância das décadas depois da II Guerra Mundial? Ao modelo social europeu? O modelo que tornou os europeus nuns seres um bocadinho arrogantes. Repara, a ideia de que a Europa foi sempre o centro do mundo é episódica. Uma das famílias mais importantes de Bagdad, os judeus da capital do Iraque, os Kaduri, fundou a Light Hong Kong, a grande companhia de electricidade. E quem a dirigia era um português, o senhor Costa, cuja família ainda trabalha para os Kaduri. Nós estivemos sempre lá fora e a Europa esteve sempre com um pé lá fora. Às vezes, leio e releio o livro do David Landes, “A Riqueza e a Pobreza das Nações”, que tem um capítulo especialmente dedicado a Portugal, mas tem outros dedicados sobretudo à decadência. Eu penso que, infelizmente, há sinais dessa decadência europeia por todo o lado. E acho que os europeus ainda não se aperceberam disso. Tirando algumas universidades do Reino Unido, as grandes universidades já não estão todas na Europa. São americanas. Acho que há um envelhecimento cruel da Europa. Por isso, quando falamos de crescimento económico eu digo: isso está tudo muito bem, mas e se a Europa não cresce?

 

Talvez porque as balizas da Europa se tornaram unicamente económico/financeiras, e agora alguns dizem: “porque é que se estuda história ou filosofia?” e a Europa deixou de germinar ideias…

Exacto. Eu lembro-me da euforia nos anos 80 com os movimentos que surgiram à volta do Alvin Toffler, que pregavam o fim da indústria e do sector primário, e que todas as sociedades seriam de conhecimento digital e serviços. Era uma posição classista. Nós, os evoluídos da Europa e dos Estados Unidos, vamos dedicar-nos ao conhecimento digital, à economia digital e depois há uns pobres que vão fazer agricultura e indústria na América Latina, na África e na Ásia e que mandam para cá. E nós vamos comprar. Porque somos inteligentes.

O que aos poucos percebemos é que a Índia tem um poder enorme na economia digital, a China também, tal como Singapura e a Austrália, mas mantendo o sector primário, e nós deixámos de ter este último. Quer dizer: uma vaca francesa tem mais subsídio num ano do que um cidadão de Singapura em toda a sua vida. Isto diz-nos algo sobre a arrogância e o pensamento classista que dominou a Europa durante estas cerca de três décadas. Porque é muito bom ser o território da tolerância, que alberga todos, que é um porto seguro (e de facto é) mas perdemos um bocadinho o pé. O nosso eurocentrismo não resiste à comparação com a realidade.

 

Uma das poucas fugas de Portugal, depois deste pesadelo europeu, é a língua, não te parece? Unificou o Brasil, apesar de ter destruído a língua geral de origem tupi. Em Angola, foi determinante para o MPLA depois da independência…

Houve uma tentativa em Angola de não ter o português. Ainda me lembro do Luandino Vieira dizer que o português era a terrível herança do colonialismo. Mas, a partir de certa altura, o português era o único factor em Angola e Moçambique de uniformização e estabilização do território. Como foi no Brasil. O Brasil não se dividiu em vários estados porque tinha um factor de unificação diante das línguas regionais e do castelhano que era o português. Também estamos a assistir a um outro fenómeno: o da multiplicação da importância da língua, porque todos falamos a mesma. São 200 milhões no Brasil, 20 milhões em Angola, 10 milhões aqui. Por outro lado, a questão do Acordo Ortográfico veio magoar um pouco essa relação que tínhamos com a língua. Porque, com o acordo, há um certo artificialismo nessa relação. Este privilégio dado ao factor oral é como se tivéssemos de perder a história da língua. É como arrancar uma consoante muda, que pode ser útil do ponto de vista dessa relação com a oralidade, e que os brasileiros fazem há muito, mas que tem um outro lado: perdemos um pouco da nossa historicidade. É por isso que eu acho e sempre defendi a necessidade de rever metodicamente algumas coisas do acordo.

 

Uma tua outra vertente é de cronista conservador, com outro nome. Aqui, no “O Colecionador de Erva” falas às tantas do fim dos comboios, da desertificação do interior. Este abandono do Portugal interior perturba-te?

A mim choca-me muito. Mas não vejo solução à vista porque termos dois terços da população a ocupar um terço do território e temos um terço da população a ocupar dois terços do território. Já no “Longe de Manaus” e no “Um Céu Demasiado Azul” tinha dado essa descrição dum mundo que estava a ser abandonado, o do interior e das florestas, e esse abandono tinha-nos levado a tratar da nossa costa durante a década de 80 como a muralha de um bidé gigante. Em certos sectores da Administração Pública demo-nos conta desse risco e tentámos corrigir, mas nada pode impedir a desertificação do interior. A não ser que, de repente, haja um regresso à agricultura, às montanhas e às florestas.

 

Isso não tem a ver com a incapacidade de decidirmos que país queremos?

Eu lembro-me do relatório Porter, onde se gastou dinheiro e depois se atirou para uma gaveta. E que dizia coisas sensatas…

Pois. Foi esquecido, infelizmente. Um exemplo: 67% dos passageiros que aterram no aeroporto Francisco Sá Carneiro, no Porto, vêm a Portugal para estadias de curta e média duração, para ver património. Portanto, é necessário investir no património. É necessário haver uma relação entre cultura e economia.

A economia tem de estar muito atenta ao património cultural. E, por isso, todas as autoridades do turismo devem pensar que a aposta no património não é só para preservar a memória, nem só uma aposta nas obras públicas. Tem também a ver com o crescimento das economias locais, nomeadamente hotelaria e turismo. Tem a ver com a captação de estrangeiros para Portugal.

 

Estiveste num cargo público, a secretaria de Estado da Cultura. O que é que emperra essa coisa óbvia?

São coisas práticas. Falta massa crítica e falta tempo.

 

Falta dinheiro?

Falta tempo e massa crítica. Queremos crescer 5% no próximo ano, não vai dar. A relação de Singapura ou da China com o tempo é uma coisa tremenda. Há calma, tudo há-de vir. É uma geração. Não podemos imaginar que todas as nossas aldeias ou vilas históricas ficam recuperadas e prontas para ser visitadas por turistas. Não pode ser num ano, porque isso, sim, exige muito dinheiro. Precisamos de mais tempo. E precisamos de investir em massa crítica, em discussão. Quando os orientais fazem o caminho inverso ao que fizemos, deveríamos aproveitar esse capital. Como algumas sociedades orientais acabaram por fazer.

 

Um ano depois de ires para a SEC, se tivesses de fazer um balanço, qual seria?

É muito cedo. Seja em termos pessoais ou políticos. Por outro lado, sou uma pessoa educada e não quero estar a dizer que vou fazer o balanço. É muito cedo. Houve um enriquecimento pessoal mas não iria muito além disso.

 

Neste romance falas de políticos e juristas, e das cumplicidades do poder. Estamos a voltar ao paradigma do Eça e do Fialho de Almeida, do clientelismo, do partidarismo, da cumplicidade de interesses, agora disfarçada por técnicos de elevado potencial? Nunca conseguimos sair desta armadilha?

A prova de que nunca conseguimos sair desta armadilha é que desde 1834 a estrutura da propriedade mudou muito pouco em Portugal. A estrutura da propriedade, as famílias que a detêm, que têm capacidade de investir. Tirando excepções muito localizadas, a estrutura não mudou muito. Nós somos ainda os herdeiros do Novo Regime, como se ainda estivéssemos no século XIX. Lembro-me de um senhor que visitei no Douro e isso aparece no “O Mar em Casablanca”, em que ele me dizia: “sabe, nós ainda somos do Antigo Regime”. Eu disse, claro, o 25 de Abril. E ele: “Não, não está a perceber, eu estou a dizer 1820 e não 1974”. Pôs tudo no sítio. O tempo não é propriamente uma folha de calendário. É uma coisa que demora. Ele dizia: estamos sentados aqui sentadinhos a ver. À espera.

 

Falas, através dos teus personagens, das classes desprotegidas e de a leitura ser hoje uma ocupação de risco. Da falta de massa crítica. Há falta de cultura em muitos sectores da sociedade?

Não somos diferentes de nenhum outro povo do Ocidente. A nossa capacidade para absorver todos os defeitos é imensa e catastrófica. Temos assistido ao empobrecimento. Há o exemplo do “Mau Tempo no Canal”: qualquer romance português de hoje tem um vocabulário cerca de cinco, seis vezes inferior ao do livro do Vitorino Nemésio. Ele, olhando para esta paisagem, não diria: isto está cheio de árvores. Ele diria: há ali um plátano, oliveiras, palmeiras, nespereiras, cedros, pinhos bravos e mansos. E nós já perdemos essa riqueza. Fomos reduzindo o nosso potencial, mas isso também aconteceu nos outros lados.

Tendemos a simplificar tudo. Temos isso na Internet, nas redes sociais, estou sempre a ver se uma bigorna cai no servidor do Facebook para ver se a coisa acalma, mas não vejo solução. Há um empobrecimento da nossa capacidade de estarmos atentos, de conhecer, de despertar a curiosidade. Falavas há bocado da reacção que é dizer que não precisamos de saber história ou química. E que o que interessa é a gestão e o direito e a macroeconomia. Mas depois acabamos por ver que alguns economistas são verdadeiros astrólogos. Que é uma expressão que o doutor Sousa Homem usa nos seus textos, muito antes do professor Marcelo. O doutor Sousa Homem diz sempre: o meu irmão é astrólogo, referindo-se ao economista. Acho que a economia tem a ver com coisas muito reais, com o comportamento das pessoas em sociedade.

 

Isso é que era a economia política, como até a encarava Adam Smith.

Eu gostava de ver economistas a saber quanto custa realmente um passe do metro, quanto os meus filhos pagam por mês para andar de comboio e metro, quanto custa um quilo de arroz. Coisas reais. Comparar o salário com as exigências da vida. Se fizéssemos uma sabatina a alguns economistas sobre coisas banais da realidade, acho que eles não passavam.

 

O Schiller, um grande filósofo alemão, dizia: contra a estupidez até os deuses lutam em vão.

Exactamente. (risos) A Agustina Bessa Luís tem uma frase notável, mais ou menos assim: é inexplicável como determinados períodos da nossa vida são marcados pelo ódio e pela estupidez. E às vezes perguntamo-nos porque isto é assim. Temos sempre a tendência de nos pouparmos a esta inclusão. Estamos sempre a salvo. São sempre os outros. Mas não, somos todos nós.

 

Não sendo astrólogo, que futuro vês para Portugal?

Não sei. Gostava de ver uma discussão séria e uma discussão sem preconceitos sobre o papel de Portugal não na Europa, porque isso é voltar à língua de pau, mas qual o lugar de Portugal em Portugal. Que país Portugal ocupa no país. O que implica discutir o euro, e discutir se vale a pena estarmos ligados desta forma a uma economia global, se a solução é sair do euro e valorizar os nossos recursos, a nossa pesca, a agricultura que é fundamental. Talvez sermos mais modestos, mas muito mais responsáveis e mais ricos. E essa capacidade de criar riqueza acho que não depende só das macrotendências. Depende também de nós.

Eu vejo com muita preocupação o facto dos economistas e dos financeiros explicarem muito mal as coisas às pessoas. Quando se impõe uma medida que é estruturante para a vida das pessoas, como a redução dos salários e das reformas, não aparece alguém com um gráfico a explicar porquê. Isso não tem sido feito. E essa participação das pessoas na vida do seu país é fundamental. Não é só chegar ao fim de quatro anos e fazer o balanço. Não estou pessimista nem demasiado optimista. Espero é que acabe o Inverno.

 

 

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