Notícia
Mais imaginação nas provas, pode ser?
O sector agro-industrial nunca foi tão dinâmico, mas os viticultores continuam a apresentar os seus vinhos à moda do século passado. Aqui ficam algumas sugestões para a malta não adormecer à mesa.
A propósito da crónica da semana passada, um ou outro produtor fez questão de recordar-me que eles próprios cumprem aquilo que se pedia no capítulo das sugestões: imaginação e exercícios didácticos no lançamento das novas colheitas. De facto, alguns têm razão. Mas se eu não inventei a roda nesta matéria, pretendi dizer - e reitero - que a generalidade dos eventos de vinhos são de uma modorra enjoativa, suportada pelo velho modelo da prova comentada + visita às vinhas + visita à adega para observar a qualidade do inox (parecem miúdos a mostrar brinquedos, valha-nos Deus) + almoço ou jantar e, claro, muita conversa para mostrar quão genial é o produtor. É tipo siga o baile que para o ano há mais. Sejamos honestos, cerca de 90% das provas que acontecem em Portugal são assim: perfeitas para a malta vir a dormir no autocarro de regresso a casa.
Claro que eu e os restantes jornalistas não nos esquecemos de iniciativas de uns poucos produtores interessados em passar informação que, depois, se traduzirá em textos úteis para os consumidores. Assim, de repente, lembro-me, nos últimos dois anos, de três debates sobre castas portuguesas: Alfrocheiro na Quinta de Lemos; Vital na Casa das Gaeiras e Fernão Pires em Santarém. Também não me esqueço das permanentes aulas de Anselmo Mendes, do espírito visionário de Dirk Niepoort, das invenções de Luís Cerdeira, da irrequietude de Domingos Soares Franco, da boa maluqueira de Duarte Leal da Costa, das dissertações precisas de José Carvalheira, do "feeling" estratégico de António Maçanita ou das orações de sapiência de António Magalhães (grupo Fladgate Partnership) - o homem de ciência que deveria andar pelo país a falar com produtores e consumidores. Mas, convenhamos, aqui estamos perante as excepções à regra.
A meu ver, está na altura de os produtores de vinhos trazerem para as suas apresentações outros produtores de excelência do sector primário ou agro-industrial que trabalham no mesmo terroir, mostrando que não têm uma visão paroquial do mundo. E vou atrever-me a dar exemplos variados. Se eu fosse produtor de vinhos em Portalegre, arranjaria maneira de organizar uma prova de ervas aromáticas orientada por José Júlio Vintém; se eu fosse produtor no Fundão e arredores, não descansaria enquanto não metesse os jornalistas a distinguir os cogumelos comestíveis dos tóxicos; se eu fosse produtor do Dão, haveria de insistir para que os jornalistas percebessem a importância de defender a existência de rebanhos na serra da Estrela; se eu fosse produtor de Porto, procuraria que toda a gente provasse amêndoas de variedades autóctones do Douro e em vias de extinção; se eu fosse produtor na região de Lisboa, haveria de levar a malta a sentir o sabor marinho e explosivo dos ouriços da Ericeira; e, se eu fosse produtor de Setúbal, haveria de convidar a Célia Rodrigues para explicar por que razão o Sado é um rio fantástico para a criação de ostras e por que razão, nós, consumidores, permanecemos ignorantes na matéria (e a mandar belas ostras para França).
É que alguns dos jornalistas que escrevem sobre vinhos interessam-se por outras coisas que se cruzam com o vinho. Não estão só interessados em taninos, leveduras ou tostas de barrica. Por outro lado, nunca como agora se registou tanta criatividade em Portugal no sector agro-industrial.
E, para não irmos a seco, cá vai este Sapidus, que se diferencia de outros queijos de vaca pelo facto de, primeiro, ser totalmente artesanal, segundo, contar com culturas lácteas de leite de ovelha que foram seleccionadas ao longo de anos por investigadores ligados ao universo dos lacticínios e, terceiro, coagular com cardo (coisa rara ou pioneira em Portugal para leite de vaca). Sendo totalmente feito à mão e sem qualquer conservante ou revestimento de ceras antifúngicas, é um queijo que se come gulosamente aos triângulos, com casca e tudo.
Pelo facto de contar com as tais culturas lácteas de um leite diferente dá ideia de que estamos a provar um queijo de ovelha, mas sem o peso que estes acabam por revelar a partir da segunda fatia.
E, como a ausência das ceras deixa os fungos à sua vontade, o queijo vai evoluindo naturalmente, ganhando notas aromáticas curiosas, muito ao agrado de quem gosta de queijos à séria, mas possivelmente desinteressantes para quem pensa que Flamengo é queijo.
Ora, quando eu sinto as notas de cogumelos que o queijo liberta, fico na dúvida se o melhor vinho para o acompanhar é um Encruzado com algum tempo de garrafa ou um Alfrocheiro, justamente por causa das notas de bosque dos dois produtos. À conta das dúvidas, quase comia metade de um queijo por estes dias.
Lá está, se eu fosse produtor do Dão, haveria de meter um queijo destes numa prova de lançamento de novos vinhos, promovendo a discussão entre os presentes. Ganhava toda a gente: o produtor, o queijeiro e os jornalistas. É assim tão esquisito?