Notícia
Longa vida à vinha velha
Cepas com largas dezenas de anos dão uvas muito ricas e, claro, vinhos invulgares. Se acha que tudo isso não passa de marketing, leia o livro de Luís Antunes. Está tudo explicado ao detalhe.
29 de Abril de 2017 às 13:00
Luís Antunes
Vinhas Velhas de Portugal, CTT, com edição cuidada e excelentes fotografias de Anabela Trindade, €37.
Há agricultores que, desconhecendo o conceito de animismo, gostam tanto das suas plantas que lhes dão alma. Com animais, ainda se percebe a empatia, mas perante plantas a coisa é rara. Meu pai, por exemplo, exagerava. Era incapaz de abater uma criptoméria plantada por meu avô ou meu bisavô (ia à serralharia mais próxima e comprava árvores criadas por outros). E, no que dizia respeito à protecção da vida selvagem, faria do senhor deputado do PAN um menino de coro. Vejam isto. Nos dias de tratamentos fitossanitários aplicados na vinha, ia sempre à frente dos trabalhadores para espetar, junto nas videiras rasteiras que tinham ninhos de melros, uma cana ao alto. Quando os homens passavam com as máquinas de sulfatar, desviam-se das canas. E assim meu pai haveria de ter sempre melros a cantar de manhã e ao fim do dia, não se importando com o facto de os gajos serem grandes comilões de uvas.
Lembrei-me desta lengalenga toda quando folheava com gosto o livro "Vinhas Velhas de Portugal", do crítico de vinho Luís Antunes (edição dos CTT), pelo facto de ser um tratado de paixão por vinhas velhas e por produtores que fazem tudo para as preservar.
É certo que esta preservação tem uma componente que mistura romantismo com marketing, mas não deixa de ser um exercício racional. É que - e vamos ao que interessa - as uvas de vinhas velhas são muito mais ricas em determinados componentes (açúcares, ácidos, substâncias fenólicas), pelo que vão dar vinhos com aromas e sabores complexos, misteriosos e desafiantes.
Uma videira pujante produz muito, mas isso significa que distribui muito da sua energia por uma quantidade enorme de cachos; uma videira velha, pelo facto de estar em fim de vida, concentra todo o seu esforço em muito poucos cachos (por vezes um só cacho). Uma videira nova tem as suas raízes muito à superfície; uma videira velha tem um sistema radicular muito fundo, pelo que a alimentação em profundidade é mais diversificada e rica. Numa vinha nova moderna temos, por regra, uma casta (um perfil de vinho muito linear); numa vinha velha temos sempre várias castas à mistura, pelo que o vinho daqui resultante será incomensuravelmente mais complexo. Razão pela qual se regressa, no Douro, ao sistema de plantação de vinhas com várias castas numa mesma área.
Explicando com mais detalhe as virtudes sensoriais dos vinhos velhos, o livro de Luís Antunes não se dedica apenas às notas de prova. Cada capítulo debruça-se sobre um produtor, com as necessárias pequenas histórias que explicam a origem, a preservação e as peripécias das vinhas ao longo de décadas. Assim, temos histórias de vinhos, de vinhas e de famílias de norte a sul, com a Madeira e os Açores incluídos. O que significa que, apesar da modernização da viticultura, temos ainda alguma quantidade interessante de vinhas velhas.
Um tipo vai visitar um produtor alentejano que lançou uma marca nos anos 90 (Herdade das Servas) e, quando dá por si, está a olhar para cepas com uns 60 anos enfiadas em pedra rolante que parecem ter brotado do leito de um rio e com as quais a família Mira faz o fantástico tinto Herdade das Servas Vinhas Velhas.
Noutra latitude, damos um passeio por Trás-os-Montes (de Chaves a Miranda do Douro) e podemos acabar a provar coisas como Encostas de Sonim Vinhas Velhas para nos maravilharmos com as notas de uma casta que muita pouca gente liga - o Bastardo.
A mim calhou-me, por estes dias, provar um vinho que nem vem aqui no livro mas que me interessou pela relação qualidade-preço: o Quinta do Pôpa Vinhas Velhas 2013, feito a partir de uma parcela de terra no Douro com 21 castas e plantada há cerca de 80 anos. O vinho destaca-se pela sua textura de boca. Finura, elegância e firmeza.
Não sendo eu um saudosista, tenho de admitir que, em matéria de vinhos, os antigos sabiam-na toda. Nesse sentido, o livro de Luís Antunes deveria ser leitura de cabeceira de muitos produtores cuja visão só alcança o curto prazo.