Notícia
O lado ainda mais negro das trevas
Joseph Conrad confronta-nos com os segredos mais horríveis do ser humano e descreve como o poder ou a cobiça conduzem à depravação total.
Joseph Conrad
Coração das Trevas
Guerra & Paz, 155 páginas, 2017
Em 1890, a Europa dividia a régua e esquadro a África, como se fosse uma propriedade sua. Entre os velhos colonialistas (Portugal, Inglaterra...) e os novos (Alemanha, Bélgica), havia um grande desconforto. Lisboa despertara tarde para a cobiça europeia e apressara-se, tarde, a tentar mostrar que ocupava realmente o interior, sobretudo entre Angola e Moçambique. A Bélgica, do rei Leopoldo, apostava fortemente na sua presença africana e no Congo haveria de criar um dos mais sanguinários regimes coloniais de que há memória. Foi isso que Joseph Conrad encontrou nesse ano, quando navegava no rio Congo, e conheceu as terras em redor, que funcionavam como uma propriedade privada de Leopoldo.
Oito anos depois, quando começavam a transpirar publicamente as atrocidades dos belgas, Conrad escreveu "O Coração das Trevas", um dos mais influentes livros jamais escritos nos últimos séculos e talvez um dos melhores de Conrad ("Vitória" é um bom concorrente). Era uma crítica contundente do imperalialismo europeu e é, ainda hoje, uma obra perturbadora.
O romance centra-se nos esforços de Marlow (o "alter ego" de Conrad) para trazer, depois de percorrer um longo rio, um lendário traficante de marfim, Kurtz (o nome, claro, foi depois aproveitado, tal como o contexto, para o filme de Francis Ford Coppola sobre a guerra do Vietname). Por um lado, Kurtz era considerado um emissário da ciência e do progresso, mas conforme se vai aproximando da sua base, Marlow vai percebendo que ele entrou numa espiral de loucura e selvajaria. Chegar lá é difícil, porque há muitos perigos, mas o espectáculo aterrador que espera Marlow no campo de Kurtz ultrapassa todos os limites da imaginação. Kurtz está a morrer e não sobrevive. As suas últimas palavras ficarão para a história: "O horror! O horror!". As trevas no coração de África são assim: ainda mais escuras do que se pensava.
É por isto que este livro é tão perturbador: ele confronta-nos com os segredos mais horríveis do ser humano, com os seus crimes menos explicáveis, com a perturbação que o poder ou a cobiça conduzem até à depravação total. Conrad coloca um espelho defronte da nossa consciência e, claro, é impossível gostarmos do que ali vemos. No fundo, o escritor transcreve para um universo de pretensa ficção aquilo a que ele assistiu no Congo belga: corpos a decompor-se, esqueletos amarrados a postos, homens a ser abatidos a tiro sem contemplações.
Tudo o que de pior a "civilização" tentou esconder está aqui, à luz do dia, exposto, para todos percebermos como são na realidade os seres humanos. Perante o que viu no Congo, Conrad tem a sensação de que todos os seus sonhos terminaram. Todos os valores faliram. E Kurtz, perdido no seu próprio mundo, é a prova disto. Tudo está corroído, num mundo onde o poder e o dinheiro são tudo. Neste livro, vemos o lado negro dos seres humanos. E da nossa civilização. Por isso, tantos anos depois, continua a ser uma obra-prima.
Coração das Trevas
Guerra & Paz, 155 páginas, 2017
Em 1890, a Europa dividia a régua e esquadro a África, como se fosse uma propriedade sua. Entre os velhos colonialistas (Portugal, Inglaterra...) e os novos (Alemanha, Bélgica), havia um grande desconforto. Lisboa despertara tarde para a cobiça europeia e apressara-se, tarde, a tentar mostrar que ocupava realmente o interior, sobretudo entre Angola e Moçambique. A Bélgica, do rei Leopoldo, apostava fortemente na sua presença africana e no Congo haveria de criar um dos mais sanguinários regimes coloniais de que há memória. Foi isso que Joseph Conrad encontrou nesse ano, quando navegava no rio Congo, e conheceu as terras em redor, que funcionavam como uma propriedade privada de Leopoldo.
O romance centra-se nos esforços de Marlow (o "alter ego" de Conrad) para trazer, depois de percorrer um longo rio, um lendário traficante de marfim, Kurtz (o nome, claro, foi depois aproveitado, tal como o contexto, para o filme de Francis Ford Coppola sobre a guerra do Vietname). Por um lado, Kurtz era considerado um emissário da ciência e do progresso, mas conforme se vai aproximando da sua base, Marlow vai percebendo que ele entrou numa espiral de loucura e selvajaria. Chegar lá é difícil, porque há muitos perigos, mas o espectáculo aterrador que espera Marlow no campo de Kurtz ultrapassa todos os limites da imaginação. Kurtz está a morrer e não sobrevive. As suas últimas palavras ficarão para a história: "O horror! O horror!". As trevas no coração de África são assim: ainda mais escuras do que se pensava.
É por isto que este livro é tão perturbador: ele confronta-nos com os segredos mais horríveis do ser humano, com os seus crimes menos explicáveis, com a perturbação que o poder ou a cobiça conduzem até à depravação total. Conrad coloca um espelho defronte da nossa consciência e, claro, é impossível gostarmos do que ali vemos. No fundo, o escritor transcreve para um universo de pretensa ficção aquilo a que ele assistiu no Congo belga: corpos a decompor-se, esqueletos amarrados a postos, homens a ser abatidos a tiro sem contemplações.
Tudo o que de pior a "civilização" tentou esconder está aqui, à luz do dia, exposto, para todos percebermos como são na realidade os seres humanos. Perante o que viu no Congo, Conrad tem a sensação de que todos os seus sonhos terminaram. Todos os valores faliram. E Kurtz, perdido no seu próprio mundo, é a prova disto. Tudo está corroído, num mundo onde o poder e o dinheiro são tudo. Neste livro, vemos o lado negro dos seres humanos. E da nossa civilização. Por isso, tantos anos depois, continua a ser uma obra-prima.