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Entre a traição e a lealdade

John le Carré, o grande mestre que nos trouxe Smiley, recorda o seu passado num livro de memórias que nos permite perceber melhor o que foi a sua vida e as obsessões que o motivaram.

John Le Carré, "O Túnel de Pombos" D. Quixote, 382 páginas, 2016
12 de Novembro de 2016 às 12:30
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O que se poderá esperar das memórias de um dos maiores escritores de livros sobre o mundo da espionagem? Nem o branco nem o negro: apenas o cinzento, esse território nebuloso onde John le Carré sempre se movimentou com brilhantismo. Afinal, ele conseguiu transportar-se do mundo da Guerra Fria, com o planeta dividido entre blocos, para o do "fim da história", onde passou a olhar para os outros senhores da guerra e dos interesses políticos e económicos.

"O Túnel dos Pombos", a memória de Le Carré sobre a sua vida, tem muitos momentos culminantes. Talvez um dos capítulos mais empolgantes seja o que tem que ver com o seu pai, Ronnie Cornwell, identificado como trapaceiro, mentiroso compulsivo, falido e maçónico. Percebe-se o mundo onde o jovem John foi criado. E entende-se melhor o seu fascínio pelo mundo das sombras da espionagem. Le Carré lembra que, nesses tempos, falar bem poderia ser o factor fundamental para uma carreira no exército, conseguir um crédito bancário ou um emprego na City.

A vida de Ronnie (que poderia ser a grande influência de Magnus Pym, de "O Espião Perfeito") encontrou fortaleza nestas margens e os seus filhos (o irmão de John é um reputado jornalista do The Independent) serviram-lhe para garantir esse estatuto social. O título do livro também se pode começar a entender melhor a partir daqui: descreve-se a atirar contra pombos verdadeiros em vez de pombos de barro. David Cornwell (o verdadeiro nome de John Le Carré) desvenda aqui algumas das histórias que fizeram da sua vida algo de fascinante. E os seus livros, obras fundamentais para se perceber os tempos da Guerra Fria. Smiley foi, e é, um herói insidioso que se torna fascinante.

Le Carré pergunta-se se alguma vez houve uma recordação em estado puro. Que seja, a pura das verdades. E isso é, desde logo, uma interrogação fulcral. Ele diz que sempre tentou contar a verdade, mesmo que esteja consciente de que, com a passagem do tempo e com a própria vida, estas acabem por falsear as memórias que se tem. Como lembram muitas das personagens que povoam as suas novelas. Elas são o eco de pessoas que conheceu. Assim, a realidade, facilmente, acaba por se transformar em ficção e ao contrário. A fronteira torna-se ténue. Le Carré diz que: "Um bom escritor não é especialista em nada excepto em si próprio." E isso leva-nos a entender melhor a sua obra: ele, mais do que escrever sobre espiões, acabou por ser o mensageiro de sentimentos contraditórios e que muitas vezes chocavam para fazer uma terrível faísca.

E aqui chegamos ao tema central na obra de Le Carré: o dilema entre a traição e a lealdade, que poderia ser exemplificado num dos livros protagonizados por Smiley, em que este deixa que executem o seu grande amigo Bill Haydon por ter delatado os seus companheiros e ter passado segredos para o inimigo. Le Carré escreve estas memórias para tentar recuperar o tempo perdido. E aí voltamos às pombas, que são o farol deste livro: quando era novo, ele viu um túnel onde punham os pombos que, largados, serviriam os instintos dos atiradores. Mas os que escapavam à morte acabavam por regressar ao local de onde tinham partido. Para voltarem a ir para o terrível túnel.

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