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A tragédia de Penélope

Margaret Atwood recria neste livro a história da "odisseia". Mas fá-lo do ponto de vista feminino, de Penélope, que teve de sobreviver durante os 20 anos em que Ulisses esteve fora.

03 de Novembro de 2018 às 17:00
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Margaret Atwood
A Odisseia de Penélope
Elsinore, 149 páginas, 2018


Margaret Atwood é das mais incisivas escritoras das últimas décadas. O seu olhar certeiro sobre os seres humanos, os seus sonhos e pesadelos, amores e traições, são de uma lucidez clínica. Atwood entende o que nos move e o que nos faz ser predadores. Aqui, ela transporta o mundo da "Odisseia" para o ponto de vista de Penélope. É, no fundo, uma forma de atentarmos sobre algo que ficou nas entrelinhas: o que é que pensava a fiel Penélope, que espera obedientemente, durante 20 anos, pelo seu marido, Ulisses, sobre o qual não sabe nada.

Nesses anos, tece os fios no seu tear e chora, enquanto vai afastando os seus pretendentes. E submete-se, indo para o quarto, quando o seu filho, Telémaco, lhe diz para o fazer. Atwood faz, no entanto, com que o mundo masculino da "Odisseia" seja submergido aqui pelo olhar feminino, de Penélope. Como se assim se transformasse a obra mitológica, tornando-a feminina. A autora dá aqui voz aos que não têm voz. Algo que faz parte do universo da literatura desde sempre.

O livro começa mesmo como se fosse a memória de um fantasma, Penélope, que nos convida a conhecer a sua história desconhecida: "Agora que estou morta, sei tudo. Era isto o que eu desejava que acontecesse, mas, tal como muitos dos meus desejos, não se revelou verdadeiro. Tenho apenas acesso a meia dúzia de factos de pouca monta que, dantes, ignorava. Será desnecessário dizer que a morte é um preço demasiado alto, a pagar, apenas para se satisfazer a curiosidade". Agora Penélope sabe o que desejaria não ter sabido. E questiona os que a estão a ler: "Acham que gostava de ler os pensamentos dos outros? É melhor pensarem duas vezes."

O livro é uma espécie de composição a duas vozes: a de Penélope e as das 12 criadas, que lhe serviram de conforto e foram os seus olhos e ouvidos durante todo aquele longo tempo, e que foram cruelmente enforcadas após o regresso de Ulisses. Penélope olha para isso como um trágico desperdício de vidas e não um acaso menor, como é apresentado na "Odisseia". Percebe-se como Penélope é uma sobrevivente pragmática, seja ao cerco dos pretendentes, ao génio de Ulisses, à guerra e mesmo à beleza da prima Helena, por quem os homens lutaram e se mataram em Tróia.

Amor e traição, sonho e represálias. Tudo isso cabe neste "A Odisseia de Penélope", que mostra o mundo fantástico onde sempre se moveu a escrita de Margaret Atwood. Há aqui muito de teatro, e isso remete-nos para o universo dramático da Grécia, como é visível nos coros das servas que pautam as memórias de Penélope: "Enforcou-nos, enfileiradas numa corda, deixou-nos a balouçar como roupa estendida. Que diversão alegre! Que entusiasmo! Como parecia virtuoso, como parecia purificado, agora que mentalmente se tinha livrado das filhas de ninguém, jovens, roliças e porcas! Devia-nos ter enterrado como deve ser. Devia-nos ter regado com vinho. Devia ter rezado para que lhe perdoássemos." Aqui encontramos o outro lado do espelho. O outro lado da tragédia de Ulisses e Penélope.

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