Notícia
Vhils: Nunca deixei de ser visto como um vândalo porque nunca deixei de o ser
Alexandre Farto assina as suas obras com o nome Vhils. Ganhou-o no graffiti, onde tudo começou. Hoje é o artista português de arte urbana mais reconhecido lá fora. Para ele, o que faz é muito mais do que arte. Tem uma missão social e causas a defender. Agora quer criar uma escola.
Quando é que deixou de ser visto como um vândalo e passou a ser olhado como um artista?
Acho que nunca deixei de ser visto como um vândalo porque nunca deixei de o ser. Comecei com graffiti, toda a minha escola e tudo o que aprendi vem dos graffiti. Com 13 anos, comecei a fazer as primeiras coisas, mas quando tinha 16 ou 17 anos comecei a questionar tudo aquilo que fazia.
O que é que o movia para fazer esses primeiros graffiti aos 13 anos?
Foi o crescimento normal, a rebeldia. Foi o estar em grupo com amigos e, com eles, construir alguma coisa em conjunto. A dada altura, comecei a explorar caminhos novos e a reflectir muito sobre o acto de pintar no espaço público. Então comecei a tentar alargar o horizonte e a perceber que esse acto pode ter uma mensagem, pode ter impacto nas pessoas e na cidade. Não tem de ser necessariamente negativo. Os graffiti têm muita energia, mas ela nem sempre é bem direccionada. Comecei a perceber que podia ser uma forma de comunicar com as pessoas em geral, de fazer "statements", de passar conceitos e, ao mesmo tempo, um modo de tornar a cidade mais interessante. Uma cidade que tem arte no espaço público é sem dúvida muito mais interessante, gera discussão, interesse. Com este conceito da destruição, que é uma subversão do que as pessoas interpretavam sobre graffiti, consegui criar um corpo de trabalho que pegava nesse princípio mas que, no final, criava alguma coisa. Fazia uma ligação com o espaço, humanizava-o.
Pintar rostos foi algo que o despertou desde o início?
No início, não. Mas depois, gradualmente, questionei muitas coisas sobre a identidade porque comecei a ver os muros. Nasci em 1987, cresci na margem sul e lá houve sempre muita coisa na rua. Nessa altura, ainda havia murais do 25 de Abril que já estavam completamente abandonados, esquecidos. Eram murais muito simbólicos, de uma utopia que se criou e que vem do período pós-revolução. E o meu pai também esteve bastante envolvido na UDP...
Pertencia a uma família politizada?
Sim, que depois se foi despolitizando ou frustrando. Acho que foi o que aconteceu com muitas pessoas que estiveram envolvidas nesse momento da História. Depois, nos anos 1990, houve aquele "boom" gigante em que, ao mesmo tempo que havia esses murais [do pós-25 de Abril], existiam do outro lado da estrada "muppies" a vender produtos de consumo. Havia duas ideologias que se confrontavam nas ruas. De um lado, um mural com esses sonhos utópicos, quase a cair de podre, e do outro o consumismo. As duas coisas, a certo ponto, tomaram o lugar uma da outra. Depois, os graffiti começaram a ir para cima disso. E eu fazia parte desse processo, eu adicionava. Este passo de sobreposição de camadas era um bocadinho o reflexo das mudanças que estavam a acontecer no país. No final, os muros são as camadas ideológicas que se vão acumulando. E esse passo cada vez é mais rápido. O consumo, a comunicação, tudo aquilo que se passa no espaço público é cada vez mais fugaz, mais descartável. Todas essas coisas são uma metáfora para as mudanças que a própria sociedade vai atravessando. Eu fazia parte deste processo de competição pela utilização do espaço público. Comecei a pensar no porquê de adicionar e a pensar também porque é que não pintava tudo de branco e começava a expor essas próprias camadas e a reflectir sobre o impacto que estas mudanças têm sobre nós enquanto pessoas e na nossa identidade. A ideia começou por aí. Por escavar, para ir à entranha dos edifícios e tentar encontrar o que está por trás de tudo aquilo que nos passa pelos olhos todos os dias.
É uma maneira de mostrar a história das cidades? De expor aquilo que já passou?
Sim, e de reflectir sobre a sustentabilidade do modelo de desenvolvimento vigente. Tem muito que ver com a questão ambiental e com os equilíbrios económicos a nível mundial, com a globalização e o impacto que tem nas sociedades ocidentais, orientais. O trabalho depois levou-me a viajar e comecei a ter uma noção do global, da flutuação que existe entre cidades, no interior dos países, entre o Oriente e o Ocidente.
Considera-se um activista. Tem causas que quer expor?
Sim, não havia outro motivo para fazer isto.
Quais são as suas causas?
São, exactamente, essas questões da sustentabilidade do modelo de desenvolvimento económico, social e cultural. Toda a sustentabilidade a nível global. Não é uma crítica directa, é mais um acalmar, um fazer reflectir, um fazer parar. Começo a reparar que os pósteres que vou cravando em Lisboa são os mesmos que estão em Xangai. Apesar de terem uma língua diferente, o produto é o mesmo. Se calhar, perdemos muito daquilo que nos tornava muito especiais e únicos há 50 anos.
Mas, ainda assim, é diferente escavar uma parede em Xangai, em Lisboa ou no Rio de Janeiro?
É, mas as últimas camadas começam a ficar mais parecidas umas com as outras. Ou seja, é diferente porque a História dos países é diferente, a bagagem cultural é diferente, mas nos últimos anos essas camadas tornam-se mais próximas, o que diz muito sobre o mundo. Isso levanta uma série de questões às quais ainda não sabemos responder. O que é que pode vir a seguir? Será que os recursos do mundo aguentam o caminho por onde estamos a ir? Seja em termos de consumo ou de estabilidade dos países. O sistema de desenvolvimento vigente que existe assenta muito no consumo ao extremo. E esse consumo tem um preço muito grande nos recursos do mundo. Já estamos a pagar esse preço.
E esse é um tema muito presente nas suas obras.
Sim, é um caminho do trabalho, mas depois também faço activismo. Na altura dos Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro, fiz um projecto em torno das pessoas que estavam a ser expropriadas de algumas favelas. Fizemos um "workshop" numa associação local e percebemos que as pessoas estavam a ser expropriadas à má fila, que tentavam falar com as autoridades e não havia diálogo. No Morro da Providência, havia várias casas que tinham sido demolidas. Percebia-se que existia uma tensão e que as pessoas estavam receosas em relação ao que ia acontecer. Chegámos lá e, basicamente, tínhamos uma empena, as casas não existiam. Fomos entrevistar as pessoas que lá tinham vivido, tirámos um retrato dessas mesmas pessoas e cravámos o rosto de uma delas no que restava da ruína da casa. Claro que tudo isto teve um impacto muito grande nas pessoas. Nós criámos uma relação directa com o sítio onde elas tinham crescido. E eram obras no espaço público, que depois saíram na comunicação social. Os media foram lá para fotografar arte, mas depois quiseram entrevistar a pessoa retratada e, de alguma maneira, deram voz a essa pessoa. Isto é utilizar a arte como um mecanismo de chamar a atenção, de pôr o foco e de dar voz. Também fizemos isso no Bairro 6 de Maio, na Amadora, porque houve um processo de despejos em que, basicamente, deixaram as pessoas com tudo na rua. Isso são projectos de activismo localizado através dos quais tentamos ajudar numa situação em concreto. Depois, há também todo um lado educacional. Fazemos "workshops", trabalhamos com escolas...
O artista Vhils teve também a preocupação de criar um mercado para a arte urbana.
Não foi de uma forma consciente. Com a crise, esta nova geração de artistas – sejam músicos, artistas plásticos, performers, designers, fotógrafos – foi forçada a sair do país. O mercado não conseguia absorver todas estas pessoas. Nem sequer havia mercado em Portugal que olhasse para esses artistas. Todo o circuito estava muito receoso por causa da crise. Para mim, era importante criar projectos que conseguissem dar não só uma oportunidade melhor do que aquela que eu tive, porque lutei bastante para conseguir fazer as coisas que faço até hoje, mas também que criasse sustentabilidade para estes artistas. Sendo que muitos deles têm mais valor do que eu. Têm um trabalho muito bom.
Está a falar de artistas portugueses?
De portugueses e de estrangeiros que vêm para cá fazer projectos e que criam "links".
É importante essa interligação com os outros?
É, porque muita da sustentabilidade do projecto começou por vir de fora. É desse modo que se tenta criar o tal mercado. Dar sustentabilidade a esta geração de artistas era importante para mim. O contributo que estes artistas podem dar à sociedade e a Portugal é muito maior do que aquilo que Portugal lhes estava a dar. Daí a criação deste projecto, que cria mecanismos para gerar "empowerment" a esta geração. A Galeria Underdogs conseguiu fazer isso com artistas, o Festival Iminente também tenta fazê-lo com músicos, a agência Solid Dogma é um projecto de comunicação que dá recursos aos artistas para fazerem comunicação e também dá espaço a designers.
Sente que abriu caminho para muita gente?
Todos estes artistas já tinham aberto caminho por si próprios. O problema é que não havia uma estrutura que os valorizasse tal como eram e que os respeitasse. Todos eles já tinham um trabalho enorme, já tinham feito uma série de coisas, tinham as suas obras-primas. Mas não havia algo que lhes desse visibilidade lá fora. É isso que a Galeria Underdogs procura fazer. Tenta fazer essa ponte, respeitando os artistas na sua essência.
Mas já se pode dizer que existe um mercado em Portugal para a arte urbana?
Sim, e cada vez é maior. Mas não é sustentado apenas pelo mercado nacional. É um mercado que tem uma ligação muito forte com o mundo.
Perderam "telas" nos últimos anos nas cidades com este "boom" imobiliário e de renovação de casas degradadas?
Não, pelo contrário. Há muito interesse pela arte no espaço público. A arte pública funciona como um catalisador da atractividade de Lisboa para esta nova geração. Há uma série de projectos com artistas que tiveram grande impacto e geraram interesse. Em 2008, um artigo no The Guardian falava sobre o projecto de murais em Lisboa naquela altura. Todos esses artigos sobre o que se passava nas ruas de Lisboa acabavam por comunicar a cidade.
Foi contactado por pessoas que viram as suas obras na comunicação social lá fora?
Sim. Mas, para ter independência, é necessário haver um compromisso entre o lado comercial e o social. E é também uma forma de sustentar a equipa, que já não é pequena, sem perder o foco na nossa missão. Esse é o equilíbrio que tenho de fazer internamente. E as pessoas, aqui, estão contratadas com tudo certinho e estão bem.
No fundo, tem uma empresa para gerir.
São três [empresas] neste momento.
O artista tornou-se um empresário?
Não. Tive de criar uma estrutura. Há o estúdio em si e depois tenho pessoas que gerem as outras áreas. São directores e gestores. Três ou quatro cabeças pensam melhor do que uma e há conhecimentos que eu não domino, como é óbvio. Prefiro estar no estúdio e concentrar-me no meu trabalho. Apesar de me ter educado a mim próprio numa série de coisas. Sempre percebi que era preciso algum compromisso dessa parte [financeira] e daí ter-me rodeado dessas pessoas que também me ajudaram a crescer. Sem a minha equipa, seria muito difícil consegui-lo. Mas tentei sempre não centrar tudo meramente em mim e no meu ateliê, mas sim em projectos que conseguissem dar oportunidades à nova geração de artistas.
A relação das autarquias com a arte urbana mudou muito nos últimos anos. Percebeu-se que vale a pena investir nestes projectos artísticos?
Sim. Mas devem investir no movimento em si. Isso gera não só actividade cultural para a cidade, como tem um impacto nas pessoas e na maneira como elas usufruem do espaço público. Além disso, a arte urbana também tem impacto económico ao comunicar as cidades de maneira diferente. E ainda há muito a fazer. Todo este movimento está aberto a uma série de actividades que podem fazer diferença, não só em termos visuais ou de comunicação da cidade, mas também em termos de impacto social, uma vez que é uma arte envolvida com as comunidades.
Principalmente com as gerações mais novas?
E com as mais velhas também. Há o projecto Lata 65, da Lara Seixo Rodrigues, em que ela faz "workshops" de arte urbana para idosos no interior do país e em Lisboa. Todo este movimento, como nunca teve mecanismos de sustentabilidade, sempre soube estar em autogestão e auto-sustentar-se, trazendo consigo uma energia muito pura, que interessa não perder. É preciso perceber o potencial que tudo isso pode ter não só do ponto de vista económico, mas também de interacção com as comunidades. Muitas vezes nem sequer são necessários custos gigantes, porque os artistas são pessoas que acreditam, que querem fazer a diferença através da arte, seja ela qual for.
Como é que é feita a escolha dos sítios onde faz os seus trabalhos? É coordenado com a autarquia ou é uma escolha sua?
Depende muito do projecto.
Implica pedir licenças?
Sim e falar com o morador. Se o edifício está abandonado, tento saber quem é o dono. Se não souber quem é, visto-me como um trabalhador, parto o prédio e ninguém me chateia. (Risos) Há várias maneiras. Cada país tem as suas sensibilidades. Trabalhar no Brasil é uma coisa, na China é outra e em Portugal é outra.
Onde é que apanhou o maior susto?
(Pausa) Apanhei vários..., mas acho que os primeiros anos de graffiti foram os piores. Estamos a falar em 2000, quando os graffiti ou a street art eram encarados de forma negativa.
Chegou a ser preso?
Sim, várias vezes. Fez parte. Mas não fui preso três meses. Era identificado e… Isso aconteceu duas ou três vezes. Não foi uma coisa muito consistente porque depois aprendi. (Risos)
Quando é que começou a sentir que o seu trabalho era valorizado?
Acho que foi na exposição que fizemos em 2005 na Interpress. Foi a primeira vez que juntámos o pessoal todo que vinha dos graffiti e decidimos fazer a continuação do nosso trabalho dentro de um espaço. Tive uma semana para pensar sobre o trabalho e, pela primeira vez, fiz um projecto com um conceito por trás. A Vera Cortês [galerista e agente de artistas] olhou para o meu trabalho nessa altura. Falámos, ela percebeu o meu trabalho e disse-me que gostava de trabalhar comigo. Aceitei e, desde os 16 anos, tenho trabalhado com ela.
Criou-se uma relação de confiança entre os dois?
Uma relação de confiança, de apoio mútuo e de respeito. Foi, sem dúvida, a primeira vez que me senti valorizado. A Vera Cortês deu-me a oportunidade de mostrar o meu trabalho tal como ele era. Isso foi muito especial e é daí que também surge a minha vontade de criar oportunidades a outros artistas, de uma maneira similar àquela que ela me deu a mim.
É irónico que tivesse de ir para Londres para estudar. Não conseguiu entrar na Faculdade de Belas-Artes, porque não teve média.
Na altura, terminado o 12.º ano, a única maneira de ser avaliado era pela média das disciplinas, como Português e Matemática, nas quais eu não era especialmente bom ou não me esforçava. Na área de artes, eu tinha 20. Depois tentei entrar em Berlim e em Londres e, nessas cidades, a média tinha alguma proporção na decisão, mas o portefólio era visto como o potencial de quem estava a querer entrar no curso.
Do seu ponto de vista, esse método faz mais sentido?
Não há uma resposta linear, mas é um bom ponto a ter em consideração. O portefólio é aquilo que as pessoas fazem. As notas também são importantes, mas acho que deve haver a abertura de olhar para aquilo que as pessoas produzem.
Daí que tenha o tal sonho de criar uma escola?
Não é só por isso. Tive, desde os 16, 17 anos, uma actividade muito forte com o associativismo que envolvia projectos baseados no ensino produtivo. Tinha a ver com associações que trabalhavam nos bairros da zona onde nasci e cresci, no Seixal, Arrentela. Havia projectos muito disruptivos que conseguiram fazer coisas muito especiais quando havia um desinteresse na escola por parte dos miúdos. Todos eles têm um sonho, seja serem futebolistas, rappers ou pintores. Isso é o início para se conseguir trabalhar com eles. Se existe um rapper respeitado no bairro e se há um miúdo que quer aprender a "rappar", esse "mentorship" pode ser dado. "Queres ‘rappar’? Então, tens de saber escrever como deve ser, tens de saber métrica, matemática, tens de saber português". Ou seja, a ideia era fazer a ponte entre a escola pública e as aulas na associação. Assim, consegue criar-se um equilíbrio entre o sonho e a realidade. Muitos daqueles miúdos, se calhar, acabaram por não ser rappers, mas esta era uma maneira de os motivar para o estudo. E esse conceito teve algum impacto. Chegámos a ter apoio da Gulbenkian para reescrever estes projectos, mas entretanto houve uma série de questões que bloquearam. De alguma forma, percebi que fazia sentido tornar-me independente e criar uma estrutura para chegar a um ponto em que tudo isto seria sustentável. Eu queria um projecto que conseguisse realmente fazer a diferença e que fosse disruptivo para as comunidades periféricas, não só de Lisboa, Porto, mas de muitas cidades em Portugal. Queria atrair pessoas supostamente perdidas, mas com um potencial enorme. O problema é saber interpretar esse potencial. É neste sentido que surgiu a ideia da escola.
É um sonho que tem por realizar.
Espero que não seja só um sonho. É por isso que estamos a criar todos estes projectos [galeria, festival, agência] – não só para os artistas terem boas condições de trabalho, mas também para que estas iniciativas consigam, eventualmente, tornar sustentável o projecto da escola. Criámos uma plataforma. O Festival Iminente, que aconteceu em Oeiras e em Londres, para o ano deverá acontecer em Macau. Este projecto já é uma montra para estes artistas. E parte deles até pode sair dessa escola. A Galeria Underdogs pode apoiar artistas, assim como os artistas podem dar "workshops" na escola. Cria-se aqui um dinamismo interessante e uma rede de apoio para que essa escola tenha o impacto que todos queremos que tenha. Para construir um projecto destes, é preciso muito mais do que apenas idealismo. Também é importante uma estrutura auto-sustentável que consiga dar-nos independência.
A escola teria uma participação do Estado?
Depende. Tem de haver sempre colaboração, uma vez que têm de ser criadas equivalências. É preciso existir um compromisso entre o Estado, os privados e os vários agentes que podem fazer a diferença no processo. E, para fazer a diferença, é preciso criar pontos de diálogo.
O conceito já está bastante pensado.
A ideia é, no próximo ano, começar a trabalhar na parte de investigação e tentar perceber o que é que faz sentido. É o início, mas estamos a falar de um projecto a cinco, dez anos. São coisas que levam tempo.
A técnica dos explosivos marcou uma viragem na sua carreira. Começou a usá-la em 2010. Explodir era uma metáfora para alguma coisa?
Sim, foi quando a crise económica de 2008 se começou a sentir mais por cá. De repente, aquelas camadas que pareciam tão distantes e que estavam atrás da parede desde os anos 1970, com uma pequena fagulha, voltaram todas. "Pum." Hoje em dia estamos a confrontar-nos com isso tudo. Foi o que aconteceu nos Estados Unidos e nas eleições em vários países da Europa. Acho que ainda não percebemos bem a magnitude do impacto dessa crise. A história da Catalunha começou assim, com cortes. São fissuras que demoram anos a perceber realmente o seu impacto. A negociação para gerir este conflito extremou as posições e não se sabe muito bem como é que se sai delas. Estão aqui todos os fantasmas da guerra civil espanhola. Foram essas fissuras todas que se abriram nessa altura. Acordaram uma série de questões na Europa, que podem ser muito sensíveis para um continente que esteve em paz tanto tempo à conta de um projecto que, de repente, se tornou num projecto que teve de aplicar pressões aqui e acolá, e que podem ter consequências muito piores. É nesse sentido que a parte dos explosivos aparece. As paredes são aquilo que absorve a história. Aquela técnica era quase uma metáfora para o que estava a acontecer no mundo.
As cidades também nos cravam a nós? Também nos deixam marcas?
Exactamente. E como nós cravamos a cidade é outra questão. Como participamos na construção ou na maneira como as cidades são feitas. É uma questão que vai ser cada vez mais importante, dado que o mundo se tornou mais global, mas ao mesmo tempo também é mais local. Os sentidos de identidade que antigamente eram ideais nacionais passaram a ser muito mais locais.
Ultimamente, têm surgido uma série de movimentos cívicos. Não são apenas os partidos a ter uma voz.
Sim, com tudo o que tem de bom e mau. Também trouxeram uma série de populismos. Isso levanta questões de transparência, de gestão e de responsabilização. Esses movimentos vêm nesse sentido, mas estava a falar mais em democracia directa, daquilo que o desenvolvimento tecnológico permite fazer em termos de poder de decisão local. Há uma série de questões e desafios dos quais se deve falar.
Vale a pena investir na arte urbana?
Em princípio, qualquer investimento em arte, apesar de ser subestimado, tem um retorno gigante, não só na sustentabilidade do mundo artístico, como de retorno a longo prazo em termos de comunicação do país, de autarquias, ou de quem queira chamar a atenção para algo. São coisas que perduram no espaço e criam ligações emocionais com as pessoas, trazendo um retorno muito superior a qualquer outro investimento em publicidade de revistas, de internet ou seja do que for. Depois, do lado privado de compra de arte, muitos destes artistas começaram a vender as obras muito baratas e, hoje em dia, a sua actividade está a correr bem, não só em Portugal como fora. Têm coleccionadores que lhes compram peças e os próprios leilões mostram o valor que eles têm. Por isso, seja neste movimento, seja na arte em geral, qualquer investimento é sempre algo que tem um retorno.
O Alexandre é também um investidor em arte urbana. Tem uma colecção.
Não me vejo como investidor. Vejo-me a apoiar artistas e a conseguir reunir um espólio deste movimento, porque não há muita gente a fazer isso. Sempre tive a preocupação de coleccionar, de fazer trocas, de ajudar artistas em alturas mais complicadas. Tenho feito sempre isso. Para mim, é emocionalmente importante.