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Teresa Salgueiro: Sim, a música portuguesa é mal tratada em Portugal

A eterna menina dos Madredeus diz que aquilo que eles, Madredeus, fizeram ainda é muito desconhecido no país. “As pessoas, até hoje, conhecem três músicas”. As que passavam na rádio. Fala de si, da música, dos seus discos. Acaba de lançar “O Horizonte”.

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Estamos a ficar todos parecidos uns com os outros. As crianças, os Estados, as culturas. Temos de ser todos semelhantes, ao serviço de uma "economia plástica", canta Teresa Salgueiro, amante do conceito de "vadiagem" do filósofo Agostinho da Silva, ele que dizia que todos nós somos poetas. Ele que dizia: "Uma vez que nascemos de graça, a vida deveria continuar a ser de graça." Ao menos que trabalhemos em áreas que nos tragam satisfação. Assim é com Teresa Salgueiro. A eterna menina dos Madredeus diz que aquilo que eles, Madredeus, fizeram ainda é muito desconhecido no país. "As pessoas, até hoje, conhecem três músicas." As poucas que passavam na rádio. Em 2007, saiu do grupo e continuou a cantar a sua língua portuguesa, e não só. Lançou discos como "Você e Eu", "Matriz" e "Voltarei à Minha Terra". Começou a escrever canções e a criar os seus próprios arranjos, que resultaram em álbuns como "O Mistério", que percorreu vários países. Lançou agora "O Horizonte", com bateria, percussão e guitarra de Rui Lobato, o contrabaixo de Óscar Torres e o acordeão de Marlon Valente.



Dois amigos meus, ela portuguesa, ele alemão, conheceram-se em Inglaterra. Ele ouvia os Madredeus, mas não entendia as letras. Ela começou a traduzi-las para inglês. Hoje têm dois filhos. Vivem em Portugal. Em parte, é graças aos Madredeus que ele sabe falar português...    

Que giro. É uma coisa que me dá muita alegria, acho que é o maior cumprimento que posso receber por parte do público. A nossa língua é de uma grande riqueza e é muito musical. Foneticamente, é mesmo muito rica. Para todas as vogais, temos uma série de sons, ao contrário de outras línguas latinas. O português é mais gutural. Lembro-me sempre do Afonso X de Leão e Castela, o avô do Dom Dinis. Ele fez as Cantigas de Santa Maria e decretou, como língua oficial para o canto, o galaico-português e não o castelhano, porque achava, precisamente, que o português era uma língua muito musical. É uma língua muito doce, muito ondulante, muito aquática. Uma das evidências desta riqueza é a literatura. Sempre cantei as palavras portuguesas, tive sempre esse amor pela poesia. Sempre li muito, comecei a ler a poesia de Sophia de Mello Breyner relativamente cedo, lia os seus contos infantis, que são poemas, foi um amor que se foi desenvolvendo e que permanece até hoje. Ela tem uma capacidade extraordinária de nomear as coisas, consegue fazê-lo com uma simplicidade, uma verdade e uma justeza exemplares.

 

Tendo em conta os grandes nomes da literatura portuguesa e a riqueza e a dimensão da língua portuguesa, esta não deveria ter mais peso no mundo?

Portugal poderia ter mais peso no mundo. A cultura portuguesa poderia ter mais peso no mundo. Para já, tem um passado e uma ligação histórica aos quatro cantos do mundo, como se costuma dizer. Essas ligações são de natureza diversa, claro. E, agora, que passou algum tempo desde o fim das colónias, está na hora de restabelecermos uma ligação real com essas culturas, indo ao fundo da questão: como começaram essas relações, como terminaram e como poderíamos potenciar a nossa língua, que é uma das mais faladas no mundo. Portugal poderia, sem dúvida, ter mais peso no mundo a todos os níveis. Até porque somos uma cultura de pontes, uma cultura que pode fazer ligações, e as ligações são muito necessárias. Cada vez mais. Uma das coisas que me deixou muito feliz foi a nomeação do Engenheiro António Guterres como secretário-geral da ONU, uma organização que, enquanto ideal, é fenomenal. Sabemos, claro, que as organizações são humanas e há sempre lógicas internas a puxar para vários lados, mas acredito que o novo secretário-geral da ONU terá capacidade para fazer as tais pontes. E, sendo português, ainda tem mais capacidade para tal. De uma forma ou de outra, sempre fizemos pontes…

 

Pontes entre os povos. No seu novo álbum, o tema "Êxodo" fala mesmo sobre o tema dos refugiados, dos povos excluídos.

É inspirado no tema, sim. A melodia da voz já tem muito tempo, a letra, escrevi-a há menos tempo, mas desde o início que lhe chamei "Êxodo", e a primeira imagem que tive foi a de alguém a fazer uma travessia no deserto. Sempre pensei que seria uma música que haveria de falar sobre os povos excluídos, que sempre existiram ao longo da História. E a História vai-se repetindo. Há povos que são empurrados para fora do lugar onde nascem e são largados ao nada, sem destino, sem serem acolhidos por alguém. É uma realidade absolutamente inimaginável e dramática.

 

Inimaginável, mas já se viu, vê-se e continuará a repetir-se, não?

Sim, se não fizermos nada. Está tudo nas nossas mãos, todos nós somos responsáveis, todos nós somos cúmplices, porque hoje, com tanta informação, sabemos, mais ou menos, aquilo que se passa. E os erros do passado não se repetem, são piores, são mais graves, porque ao repetirmos os mesmos erros, estamos a fazer muito pior.

 

Mas tem esperança na humanidade?

Tenho, tenho mesmo. Não tenho dúvida de que o bem é muito maior do que o mal. Não é aquilo que é visível neste momento, é certo, porque há muitas forças a lutarem entre si e são muitos os interesses a proteger os interesses de poucos. E esses poucos estão a ser servidos por todos os outros. Há aqui uma máquina poderosa.

cotacao Muitas vezes ouço dizer: "Madredeus foi uma das bandas mais internacionais." E eu penso. E qual é a outra? Aquilo que fizemos é muito desconhecido em Portugal. 

Nas suas letras e música, há uma preocupação de intervenção social?

Eu sou o reflexo daquilo que penso e acho que, enquanto cidadãos, devemos ser interventivos, temos de falar, temos de erguer a voz e denunciar aquilo que achamos que está mal, e defender a dignidade humana. Já não há desculpas, temos o conhecimento, ainda que muita informação seja manipulada. Sabemos a História, sabemos o passado, sabemos o presente e temos os meios para agir. Há um conhecimento científico, tecnológico e humano que, se for usado para servir o próximo, pode tornar o mundo muito melhor. E essa é a ideia, acho eu, da maioria das pessoas quando vai à procura do conhecimento. Voltando ao tema "Êxodo", a esperança e a memória são o último reduto das pessoas que não têm nada. O tema acaba num tom festivo – a pessoa que está a falar e conta o seu êxodo, para poder sobreviver, refugia-se na memória daquilo que viveu. Aquelas pessoas passam a ser só aquilo que elas se lembram que eram, elas já não sabem se aquilo que perderam existe, não sabem o que é que vão encontrar, mas elas estão ali, e estão vivas, e podem partilhar a lembrança, a sua memória, as emoções de outrora. E essa partilha da alegria é contagiante. A esperança é contagiante. Eu tenho esperança. Não se pode perder a capacidade de sonhar.

 

É sobre isso que fala o álbum "O Horizonte".

O horizonte simboliza, precisamente, o caminho que se empreende em direcção aos sonhos. O horizonte é uma linha, distante, que nem sempre é visível – nas grandes cidades, é difícil ver o horizonte. Mas é preciso procurá-lo. É preciso procurar essa linha que é um limite do visível, do mundo tangível. E, para lá dessa linha, há qualquer coisa que simboliza o sonho.

 

Estamos a sonhar menos, estamos a sonhar pouco, deixámos de sonhar?

Precisamos de sonhar mais, precisamos de acreditar, precisamos de falar uns com os outros, precisamos de perceber que, para sermos felizes, não precisamos de muito. E que o mundo em que nascemos está preparado para nutrir toda a gente. Falo sempre do poema de Sophia de Mello Breyner, "A Forma Justa", poema belíssimo, que diz isso, que a terra onde nascemos é plena, ou seja, que tem o suficiente para alimentar todos, não fosse a ganância humana, que é aquilo que impera a nível global. Houve uma globalização, claramente uma globalização económica, e não no sentido de enaltecer e aproximar culturas. Foi uma globalização no sentido de retirar o máximo possível a todas as culturas para servir os interesses dos mesmos de sempre, que são poucos. É uma lógica económica cega.

cotacao Não vejo a Amália a ser enaltecida ou estimada. E onde é que está a música do Zeca na televisão? E onde é que está o Paredes? E o Fausto?. Sim, a música portuguesa é bastante mal tratada. 

Numa entrevista ao Observador, a Teresa dizia que somos todos empurrados para sermos um tipo de pessoa, para termos um tipo de profissão. No fundo, para sermos todos iguais.

Nós nascemos livres, mas imediatamente condicionados pelas circunstâncias que nos rodeiam. A liberdade é uma procura, nunca se atinge plenamente. Falo sempre do professor Agostinho da Silva, gosto muito, e ele dizia algo como: a escola não dá às crianças um espaço de formação onde elas possam descobrir a sua verdadeira vocação. A maior parte das pessoas é induzida a escolher uma profissão por uma questão de sobrevivência. Dizia ele: "Nascer de graça e passar o resto da vida a ganhá-la. O que é inteiramente absurdo. Desde que nascemos de graça, a vida devia continuar a ser de graça." Já que temos de trabalhar, ao menos que trabalhemos em actividades que nos tragam satisfação, porque todos somos criativos, todos temos capacidade para fazer uma coisa que mais ninguém faz. Todos nós somos poetas, esclarecendo ele que um matemático faz poesia, ou seja, qualquer pessoa que esteja a ser criativa numa actividade de que gosta está a criar. Isso é poesia, é assim que eu a entendo também. Dizia ele que a maior parte das pessoas passa a vida a trabalhar em actividades das quais não gosta e, quando finalmente chega à idade da reforma, grande parte dessas pessoas já não se lembra sequer do que é que gostaria de ter sido – eu sei lá quem é que eu poderia ter sido!

 

"O problema não está nos meninos – em vez de os metermos a fazer poesia à solta, metemo-los a seguir uma espécie de vida militar. [O problema] está no mundo competitivo que temos de pensar se tem jeito de continuar assim ou tem jeito de ser de outro modo." Agostinho da Silva disse isto no programa "Conversas Vadias", em 1990…

As coisas levam tempo, estamos claramente a caminhar para momentos de ruptura, as coisas não podem continuar assim durante muito mais tempo e não acontecer nada. A escola precisava de evoluir, sem dúvida. As crianças têm cada vez menos tempo para o lazer. Como os pais têm pouco tempo para estar com elas, quando não estão na escola, os miúdos estão numa actividade, ou em duas ou três, e depois têm de ser bons a fazer tudo. As crianças não têm tempo para respirar, não têm tempo para ser crianças, para descobrir quem são. Para descobrirem o mundo sem filtros. A escola tem de mudar e é preciso tempo para novas experiências. Mas, enquanto a lógica for a desta economia que nos tolhe os movimentos, é difícil escapar.

 

No tema "A Cidade", a Teresa canta: "Basta de retórica vazia, de economia plástica…"

Essa expressão ocorreu-me face àquilo a que temos assistido, às crises financeiras sucessivas e à relação dos Estados com a banca. Realmente, esta economia é uma economia que não serve para multiplicar os bens essenciais dos cidadãos, serve antes para multiplicar números quase virtuais e mascarar coisas. Faz-me confusão a actual situação da União Europeia, a caminhar no sentido diametralmente oposto daquilo que está na sua génese. De facto, a Europa foi sempre um continente desunido, em guerra, e por isso é que nasceu esta UE, mas aquilo que prevaleceu, mais uma vez, foi a lógica económica, com as distintas culturas ao serviço dessa lógica, e a diversidade, voltamos a ela, não foi tida em conta. Estamos a ser obrigados a ficar parecidos uns com os outros. As crianças, os Estados, as culturas têm de ser todos semelhantes, a servir uma lógica, que neste caso é a tal economia plástica.

 

A Europa multicultural não está a ser respeitada?

De todo, vê-se o que se passa com os países do Sul da Europa e com os países do Norte da Europa. As premissas não são as mesmas. Existe uma discriminação, sim. Por exemplo, a questão dos refugiados existe em Itália há anos e só quando o êxodo começou a subir por esta Europa acima é que passou a ser notícia, falava-se muito pouco do que acontecia.   

 

E nós? Nós "acordámos" nas redes sociais com as imagens de Alan Kurdi, o menino sírio que apareceu morto numa praia turca. E depois, o que fizemos?

Sim, pouco fazemos. Temos coisas a cumprir, temos filhos, horários, deixamo-nos alienar. E depois vêm outras notícias e não se discute o fundo das questões. Mas não vamos poder continuar a virar a cara e a ficar em silêncio e achar que não vai acontecer nada de terrível outra vez. Mas acho possível que a situação melhore e por isso é que fico feliz de ver o português António Guterres na ONU. E temos outros sinais óptimos, como o Papa Francisco, um homem extraordinário que tem conseguido cativar pessoas que nem são religiosas e que consegue aproximar e enaltecer outras religiões. 

 

Por outro lado, temos fenómenos como Donald Trump, tivemos o Brexit no Reino Unido, assistimos a movimentos de extrema-direita a ganharem fulgor…

Isso resulta de falta de diálogo e de vontade política, tudo em prol da tal economia plástica, que é como um veneno que se vai espalhando. E há um problema de retórica vazia, fala-se e falam de muita coisa, mas ninguém explica realmente como é que as coisas poderiam ser diferentes para resolver os problemas da humanidade. Por exemplo, sabemos que existem excedentes alimentares, não pode existir justificação alguma para haver fome no mundo.

 

E como lê Portugal? Diz-se, muitas vezes, que a sociedade civil é fraca, que as pessoas não se unem em torno de causas. É assim?

Não sei. É preciso lembrar que só depois do 25 de Abril é que houve uma democratização da formação, só nessa altura é que todas as pessoas começaram a ir à escola. Só as gerações recentes é que começaram a ter mais ferramentas e, infelizmente, muita gente emigrou. Acho que as pessoas em Portugal são muito abandonadas, o povo português viveu sempre dificuldades, as pessoas estão muito habituadas a terem de batalhar sozinhas. Portugal é um país complicado. Paradoxalmente, é um país que conheceu o mundo e entrou em contacto com outras culturas, mas foi sempre um povo sofrido e teve pouco acesso ao conhecimento. Por outro lado, existe uma grande dificuldade em comunicar as coisas boas que acontecem no país. Na música, por exemplo. Não existem programas de rádio para passar música, não existem programas de televisão para passar música ou para tocar ao vivo. Existem concursos de miúdos a imitar cantores que, normalmente, nem sequer são portugueses. A música portuguesa não é difundida, não é cultivada, não é transmitida.

 

Falava da música portuguesa, é mal tratada em Portugal?

Eu acho que é. E não é só a música. A expressão "mal tratada" não é minha, mas concordo com ela. A música é uma coisa muito séria em termos culturais, e tanto falo da música que se faz hoje como falo da música que se fez antes. Onde é que nós ouvimos a Amália Rodrigues a cantar? Tem uma carreira fulgurosa, fez um trabalho extraordinário no mundo inteiro…

 

E o mundo inteiro não sabe isso?

A Amália, depois do 25 de Abril, foi silenciada. Na rádio e na televisão. E foi silenciada para sempre. Até ao fim. Não passou a não ser silenciada.

 

Acha mesmo? O seu legado parece estar em todo o lado. E o fado é Património Imaterial da Humanidade…

Vi o filme "Fados" (2007), do Carlos Saura, e fiquei escandalizada. Aparecem várias figuras actuais do fado, que geraram esse movimento, e o único momento em que a Amália aparece é num ensaio, num momento fugaz. A Hermínia Silva, por exemplo, não está presente. Eu não vejo a Amália a ser enaltecida ou estimada, sobretudo por muitos que cantam o reportório dela, não vejo nada disso, pelo contrário. E onde é que está a música do Zeca na televisão? E onde é que está o Paredes? E onde é que está o Fausto? E onde é que estão todas as bandas rock dos anos 80? Também seria importante passar a música que já se fez, é muita. Sim, acho que a música portuguesa é bastante mal tratada.

 

Agora, a expressão é sua.

Sim. Agora já é minha.

 

Numa reportagem televisiva recente sobre a feira internacional do sector agro-alimentar em Paris, pareceu-me ouvir, num "stand" português, uma música antiga dos Madredeus. Os Madredeus continuam a representar Portugal?

Espero que continuem porque, durante 20 anos, fizeram um percurso extraordinário e único na história portuguesa, sobretudo num tempo em que não havia redes sociais. Se existissem, teríamos tido uma comunicação com o público extraordinariamente maior porque poderíamos ter comunicado, em tempo real, tudo aquilo que estávamos a fazer, e aquilo que fizemos é muito desconhecido aqui em Portugal. Fizemos quase mil concertos no mundo inteiro, com muitas viagens, os discos foram publicados em 32 países, num reportório continuadamente renovado.

cotacao Nós temos uma vida muito solitária. Tenho poucos amigos, converso com poucas pessoas. 

Mas ficou muito por conhecer?

Na rádio, em Portugal, só se ouvia "O Pastor", "A Vaca de Fogo"… As pessoas, até hoje, conhecem três músicas dos Madredeus. Não estou a falar dos fãs. Mas não falo só da música dos Madredeus ou da música portuguesa, falo dela porque estou em Portugal. Podia falar da música italiana, da música francesa…

 

Mas quase todos os portugueses conhecem Teresa Salgueiro. Sente-se, de alguma forma, embaixadora de Portugal?

Embaixadora é uma palavra muito forte porque os embaixadores têm um apoio, eu nunca tive, nem os Madredeus.

 

Mas deveriam ter tido?

Nunca pedimos, eu gosto de ser independente. Mas é só para colocar as coisas no lugar certo. É preciso dizer as coisas como elas são porque as pessoas, às vezes, têm percepções diferentes. Mas, sim, embaixadora no sentido de representante, isso sim.

 

Saiu dos Madredeus em 2007. A sensação que temos é que desapareceu.

Andei sempre a fazer música, nunca parei. Quando saí dos Madredeus, pensei: "Não vou desistir da música." Saí porque me foi proposto um contrato com um tipo de ocupação completamente diferente daquilo que tinha sido combinado e disseram-me: "Ou é isto ou sais." E eu saí.

 

Saiu em ruptura?

Saí em paz com a minha consciência. E foi bom. Acho que estava na hora de sair. Foram 20 anos, na altura isso significava mais de metade da minha vida, eu tinha 37. O último ano dos Madredeus até foi um período de paragem, cada um de nós tinha muitas coisas que queria fazer. O Pedro Ayres Magalhães produziu dois discos meus, um deles foi gravado no Brasil, o "Você e Eu", e foi um encontro fugaz, mas muito sincero do meu amor pela música e pela língua portuguesa no Brasil, por aquela forma de cantar, pela liberdade poética, pela sonoridade. Gravei um outro disco, espelhando a viagem que tinha sido a viagem dos Madredeus. Depois fiz um disco a que chamei "Matriz", dedicado à cultura portuguesa, eu queria mostrar que a música portuguesa não era só fado, queria mostrar a diversidade e a antiguidade da nossa cultura. Desse projecto, nasceu o "Voltarei à Minha Terra", em que comecei a fazer arranjos. E já tinha a ideia de escrever música original e isso aconteceu em 2011, com o "Mistério", com o qual fizemos uma longa viagem em diversos países. E agora estamos com o disco "O Horizonte".

cotacao A cultura portuguesa deveria ter mais peso no mundo. É uma cultura de ligações, que sabe fazer pontes entre os povos. E por isso fico feliz de ver o português António Guterres na ONU. 

Começou, então, a escrever canções. Sempre gostou de escrever?

Sempre gostei de escrever, tive sempre os meus diários de viagem e as minhas notas de adolescência, que guardava para mim, não mostrava a ninguém. Mas nunca imaginei que viria a escrever letras também para canções. Normalmente, faço a melodia da voz e só depois é que faço a letra. A melodia vem primeiro.

 

Chegou a ter aulas de música?

Frequentei o Conservatório durante pouco tempo, coincidiu com a grande "tournée" de "O Espírito da Paz", quando a actividade dos Madredeus começou a ser absolutamente envolvente. Também tinha estudado na Academia de Amadores de Música, tive aulas de piano quando era pequenina e cheguei a ter umas aulas de canto que deixaram as suas raízes. Mas a minha grande formação são o palco e as canções que fui aprendendo ao longo da vida.

 

Na sua família, ninguém está ligado à música?

Em termos formais, não, mas a minha mãe cantava muito bem, e o meu pai também gosta muito de música. Sempre se ouviu muita música lá em casa, desde música clássica às óperas, e depois ouvia-se a música que entrava pela rádio, que, na altura, passava música portuguesa e brasileira. E depois havia dois discos que foram determinantes para mim, o "Busto", da Amália, e o "Cantigas do Maio", do Zeca Afonso. Mas o mais marcante foi mesmo o da Amália – eu tinha uns 16 anos quando ouvi o disco e fiquei completamente esmagada pela sua pureza, pela força, pela perfeição, pela entrega. Esses valores estão sempre comigo. Ela é uma mestre.

 

Não planeou vir a ser artista? Não tinha noção da sua enorme voz?

Eu cantava muito em casa, mas nunca pensei em ser cantora. A partir do momento em que ouvi esses discos, da Amália e do Zeca, comecei a cantar muito essas músicas, em casa e quando saía à noite no Bairro Alto. Cantava a caminhar pela rua, cantava no restaurante Vá e Volte, cantava sempre depois de jantar. Começou a haver esse hábito, eu cantava, as pessoas aplaudiam, eu cantava outra vez, comecei a aperceber-me de que realmente gostava de cantar e que as pessoas também gostavam de me ouvir, e isso começou a ter importância para mim. Continuei a ir ao senhor António e ao Gingão, onde me convidaram para fazer uma audição para os Madredeus. 

 

Pelo meio, teve uma banda de garagem que tocava rock sinfónico.

Só havia um tema. Foi de passagem.

 

Como se chamava?

"Amenti", uma palavra que, para os egípcios, quer dizer morte ou para além da vida. (risos)

 

Os Madredeus venderam cerca de cinco milhões de discos em todo o mundo e tiveram um sucesso internacional constante ao longo dos anos, o que é caso raro para uma banda portuguesa.

Os Moonspell também têm uma actividade internacional há vários anos, mas direccionam-se a um público mais segmentado. Sim, foi muito tempo, andámos em muitos países.

 

Foram os maiores em Portugal?

Não sei se me fica bem dizer isso, mas muitas vezes ouço dizer: "Madredeus foi uma das bandas mais internacionais." E eu penso. E qual é a outra?

 

Já deu a resposta.

Não estou a dizer que não existem outras bandas que façam o seu percurso e eu tenho o maior respeito por todas as pessoas que perseveram nesta profissão, mas há sempre um certo problema em dizer as coisas como elas são, e não tem mal nenhum fazer isso. Realmente, não houve mais ninguém que tivesse feito aquilo que nós fizemos.

 

Na cabeça dos portugueses, a Teresa Salgueiro ainda é o rosto dos Madredeus. Isso aborrece-a ou enche-a de orgulho?

Enche-me de alegria, ficaria triste era se as pessoas se esquecessem.

 

Mas tem os seus próprios projectos desde 2007. Ainda assim, as pessoas continuam a associá-la mais aos Madredeus do que aos novos projectos.

É verdade. Foi algo muito forte, foi muito tempo, saí há praticamente dez anos, mas estive lá vinte, e a comunicação daquilo que eu fazia quando lá estava tinha uma força que não tem aquilo que eu faço agora.

 

Este lado da comunicação não a incomoda, o músico ter de comunicar?

Não me incomoda nada. Eu gosto de todas as facetas da minha profissão, gosto imenso de conversar com as pessoas e de conhecer a sua curiosidade. Muitas vezes, é a curiosidade de quem se aproxima de nós e quer saber o que andamos a fazer que nos faz encontrar até outros sentidos nos quais nós próprios não tínhamos pensado. Fazer música é algo muito espontâneo. É, acima de tudo, o prazer de fazê-la. E, depois, há uma necessidade de partilha. É necessário conseguirmos comunicar aquilo que andamos a fazer e é interessante fazê-lo. Nós temos uma vida muito solitária. É verdade! Ao longo dos anos, mantive algumas amizades, mas vejo muito pouco as pessoas, porque estou sempre fora. Tenho poucos amigos, converso com poucas pessoas. Acho que já conversei mais com jornalistas do que com outras pessoas (risos). 


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