Outros sites Medialivre
Notícias em Destaque
Notícia

O Carlos da Carris

De volta à Câmara de Lisboa, a Carris vai prosseguir uma viagem com quase século e meio de história. Pela primeira linha de eléctrico criada na capital, entre Algés e a Praça da Figueira, o antigo guarda-freio conta o que mudou com os anos e o que se mantém no dia-a-dia de quem liga as pontas à cidade.

Miguel Baltazar
  • ...
Carlos Nobre cora um pouco mas não resiste a cantar o fado. É o Fado do Eléctrico, "que ouvia em miúdo e trouxe para a Carris", explica o guarda-freio que trabalha há quase quatro décadas na empresa de transporte público de Lisboa. A história da canção é a de uma viagem num eléctrico apinhado, de outros tempos, onde não falta uma loira, um magala e uma dose de malandrice.

Aos 58 anos de idade, Carlos Nobre conta 39 ao serviço da companhia que este mês regressou às mãos da câmara da capital. Começou nas oficinas, primeiro na limpeza dos eléctricos, depois como electricista, mas acabou por enveredar pela condução. É dos mais antigos funcionários da companhia que foi fundada no Rio de Janeiro em 1872 com o objectivo de criar em Lisboa um sistema de transporte do tipo "americano" (carruagens sobre carris movidas a tracção animal).

Dos eléctricos mais antigos que lhe passaram pelas mãos recorda o desconforto. Eram conduzidos de pé e ao frio. Religiosamente guarda o capote que fazia parte da farda dos antigos guarda-freios, que chegava até aos pés porque os veículos eram abertos. Ainda trabalhou com cobradores, antes da automatização que a Carris iniciou em finais dos anos 70.

"Se me deixassem só conduzia os eléctricos novos", sublinha Carlos Nobre, explicando que se "tratam de veículos mais seguros e mais cómodos". É o caso do eléctrico articulado, usado na carreira 15, que liga Algés à Praça da Figueira, a primeira linha criada em Lisboa que a ainda se mantém. Inaugurada a 31 de Agosto de 1901, fazia o percurso entre o Cais do Sodré e Ribamar, em Algés. Ao longo do século XX passou por prolongamentos e encurtamentos em função das necessidades, chegando a ir até ao Dafundo e à Cruz Quebrada. Era sempre a primeira a encerrar nos dias de tempestade, quando as águas pluviais coincidiam com a preia-mar, inundando a Avenida 24 de Julho.

A centenária "Linha Marginal Ocidental" ou "Linha Marginal de Belém", dois nomes por que é conhecida, foi a primeira a ser totalmente modernizada e até agora foi a única a receber os modernos eléctricos articulados, mais rápidos, silenciosos e confortáveis, que em meados dos anos 90 passaram a integrar a frota da Carris.

Às 13h15 Carlos Nobre inicia mais uma viagem no Jardim de Algés. Uma octogenária entra na segunda paragem e dirige-se imediatamente à cabine do guarda-freio para o cumprimentar. "Como está o senhor? Eu hoje vou sair já na próxima", informa-o. O condutor devolve a saudação. Já está habituado a estas atenções por parte de passageiros mais velhos, com quem se cruza há anos e que mantêm o costume de lhe ir dizer "bom dia". "Amigos são sempre amigos", salienta o guarda-freio, que reconhece os que o acompanham em cada percurso e lamenta alguma solidão.
Do eléctrico aberto na baixa lisboeta com destino ao Dafundo aos remodelados que hoje circulam. A linha 15, que hoje liga a Praça da Figueira a Algés, foi a primeira a entrar em funcionamento, em 1901. Nos anos 90 os eléctricos históricos foram objecto de uma remodelação, mantendo as tradicionais carroçarias mas passando a contar com novas tecnologias que os tornaram mais seguros e cómodos.
Do eléctrico aberto na baixa lisboeta com destino ao Dafundo aos remodelados que hoje circulam. A linha 15, que hoje liga a Praça da Figueira a Algés, foi a primeira a entrar em funcionamento, em 1901. Nos anos 90 os eléctricos históricos foram objecto de uma remodelação, mantendo as tradicionais carroçarias mas passando a contar com novas tecnologias que os tornaram mais seguros e cómodos. Foto cedida pela Carris
Miguel Baltazar
O eléctrico articulado tem uma capacidade para 201 pessoas, muito superior à dos veículos históricos, cuja lotação se limita a 58 passageiros. Falta-lhe o charme dos clássicos mas, com ar condicionado e um percurso junto ao Tejo, assegura uma linha com uma procura constante e elevada. É estrutural para Lisboa, ligando o centro da cidade a eixos como Belém, Calvário ou Algés.

É precisamente junto ao Mosteiro dos Jerónimos que o 15 que Carlos Nobre conduz enche àquela hora, ao início da tarde. O perfil dos passageiros muda, com os turistas a ocuparem os lugares deixados vagos pelos locais. Ao guarda-freio vem à memória o dia em que uma turista brasileira lhe pediu para falar mais devagar, acusando-o de ter sotaque.

A partir de Belém os passageiros apertam-se dentro do eléctrico. Mas o sol entra pelas janelas e arranca sorrisos. Pelas 14h00 chega à Praça da Figueira, cumprindo o horário. Apeando-se junto a uma vendedora de castanhas, Carlos Nobre quer saber como vai o negócio. O seu dia de trabalho vai ficar por aqui. "Hoje só parámos nas paragens", sublinha, deixando claro que não é isso que costuma acontecer. Os carros mal estacionados são dos maiores inimigos dos guarda-freios, explica. É que como o eléctrico não se desvia, chega atrasado às paragens e as pessoas protestam. "É com quem está a conduzir que ralham", lamenta.

O 28 dos turistas e carteiristas

Carlos Nobre é um dos 140 guarda-freios da Carris, dos quais 30 são mulheres. Faz serviço em todas as carreiras de eléctricos, actualmente cinco (12, 15, 18, 25 e 28). A política da empresa é que regularmente façam percursos diferentes, para se manterem actualizados. A empresa tem ao serviço 48 eléctricos de serviço público e 14 de turismo. Os eléctricos articulados da linha 15 começaram a circular em 1995. Um ano depois a empresa concluiu a remodelação de 45 eléctricos tradicionais, mantendo-os com as carroçarias antigas mas introduzindo novas tecnologias, para os tornar mais rápidos, silenciosos e seguros. São estes remodelados que asseguram as linhas que servem as zonas históricas. Carlos Nobre aprecia a reacção dos turistas sempre que o eléctrico passa pelas apertadas curvas e acentuados declives dos bairros antigos.

A carreira 12 é a mais curta das linhas, fazendo uma circular em torno do Castelo de São Jorge a partir da Praça da Figueira. Já a mais procurada é a 28, que liga Campo de Ourique ao Martim Moniz. "É confuso, mas os estrangeiros gostam", nota o guarda-freio. O mesmo acontece com os carteiristas. Para estes, entrarem num eléctrico cheio "é como se fossem ao milho", compara. Carlos Nobre lamenta os pequenos furtos de que são por vezes vítimas os passageiros, mas tem consciência que "não pode andar um polícia em cada eléctrico". Além disso, nunca assistiu a situações de grande insegurança. Em 2001 a Carris iniciou a instalação de um sistema de videovigilância nos seus veículos para garantir melhores condições de segurança física e psicológica aos passageiros e tripulantes, assim como aumentar a eficácia da actuação da polícia. A cada momento as autoridades sabem onde está cada veículo e têm possibilidade de ver o que se passa no interior.
Antigamente os guarda-freios conduziam os eléctricos em pé e ao frio. Fazia parte da farda que lhes era fornecida pela Carris um capote que ia até aos pés.
Antigamente os guarda-freios conduziam os eléctricos em pé e ao frio. Fazia parte da farda que lhes era fornecida pela Carris um capote que ia até aos pés. Foto cedida pela Carris
A segurança da condução é outra evolução positiva da frota realçada por Carlos Nobre. Os travões dos veículos são hoje mais seguros, mas as folhas que caem das árvores nos carris continuam a ser uma dor de cabeça, porque o óleo que largam dificulta a travagem, explica. É por isso que os eléctricos continuam a utilizar areia, que largam para os carris quando antecipam essa necessidade. O processo é antigo, havendo mesmo uma ordem de serviço de 1925 que já lhe faz referência. Antes "era rezar e sair da frente". Hoje, o eléctrico articulado até "pensa sozinho" e a areia é largada quando o computador detecta o risco. Mas a areia não pode ser uma qualquer, explica Carlos Nobre, tem de ser do rio e lavada, de forma a que passe facilmente pelos tubos.

Lisboa vai reactivar eléctricos

A carreira 24 foi das primeiras que conduziu. Na altura, recorda, entre o Largo do Carmo e a Rua da Alfândega, num percurso de pouco mais de uma hora. A linha, que chegou a unir Cais do Sodré a Campolide, foi suprimida em 1995, cerca de 90 anos depois de se ter iniciado.

Já foi o tempo em que eram retirados os eléctricos de Lisboa para dar prioridade aos automóveis. Agora, a câmara da capital, que a 1 de Fevereiro passou a deter a gestão e a propriedade da Carris, garante a instalação de novas linhas e já prometeu reactivar o eléctrico 24. Para o autarca Fernando Medina, reduzir eléctricos na cidade foi um erro. À autarquia não faltam agora planos para a empresa de transporte público. Já se comprometeu com a compra de 250 autocarros e a contratação de 220 motoristas, assim como com a criação de mais corredores bus e ligações aos parques de estacionamento dissuasores que está a construir na periferia e à rede de bicicletas partilhadas.


A Câmara entende que a empresa regressou a casa. O município viu este mês satisfeitas as pretensões de voltar a ser proprietário da empresa, como era até às nacionalizações de 1975. Na altura, um decreto-lei do Governo de Vasco Gonçalves, do qual constam as assinaturas de Álvaro Cunhal e Mário Soares, determinou a transferência das acções da Carris para o Estado, mas apenas as que estavam nas mãos de accionistas portugueses. O Estado ficou então com dois terços do capital da companhia enquanto a britânica Lisbon Electric Tramways, ligada à história da Carris desde o século XIX, manteve um terço do capital. Apenas até 1980, altura em que acabou por vender à empresa pública o lote de acções que detinha, dando por terminada uma ligação de cerca de 80 anos. O diferendo judicial entre o Estado e a autarquia da capital, que exigia ser indemnizada por causa da nacionalização, ficou resolvido com o acordo concretizado agora.

Um século e meio de história

A história da Carris começa com os "americanos" ainda no século XIX, com a abertura da primeira linha, entre Santa Apolónia e Santos, em 1873. O serviço de eléctricos arranca com a viragem do século, em 1901, já depois de estarem a funcionar os ascensores do Lavra, da Glória e da Bica. A rede de autocarros é inaugurada oficialmente em 1944. A partir do final da década de 50, altura em que o metropolitano surgia e crescia, o número de autocarros ia sendo aumentado em detrimento dos eléctricos. De acordo com dados da Carris, em 1974 a empresa dispunha de 440 veículos e de uma rede com 608 quilómetros de extensão. Tinha cerca de 5.300 funcionários, dos quais 3.100 ligados à exploração, entre cobradores, guarda- freios e motoristas. A introdução da cobrança automática foi inevitável e a empresa avançou com a instalação de obliteradores nos veículos. Foram então criados os passes sociais.
Em 1901 a Carris inaugurou o serviço de eléctricos, que ligava o centro da cidade a Ribamar, em Algés. Em 1950 os eléctricos passavam junto ao Rossio.
Em 1901 a Carris inaugurou o serviço de eléctricos, que ligava o centro da cidade a Ribamar, em Algés. Em 1950 os eléctricos passavam junto ao Rossio. Foto cedida pela Carris
Foto cedida pela Carris
Em 1980 o número médio de unidades da frota, autocarros e eléctricos, ascendia a 1.067 veículos. Nesse ano a empresa transportou mais de 400 milhões de passageiros. Passados 25 anos, em 2005, foram apenas 240 milhões os transportados pela empresa. E m 2015 menos de 145 milhões. Há pouco mais de um ano a Carris contava com cerca de 72 carreiras de autocarros, dos quais seis da rede da madrugada, cinco de eléctricos, três ascensores e um elevador, num total de 678 veículos.

A chegada da troika a Portugal, em 2011, prometia mudanças profundas na empresa. Depois de acentuadas subidas nos preços dos passes e bilhetes destinados a assegurar o equilíbrio operacional, o Governo de Passos Coelho lançou um concurso público para a subconcessão a privados da gestão da empresa, que foi ganho pela Avanza, do grupo mexicano ADO. Um contrato que o Executivo de António Costa se apressou a reverter, à semelhança dos restantes processos de subconcessão dos transportes em curso, envolvendo os metros de Lisboa e Porto e a STCP. A redução de pessoal e a degradação da frota dos anos anteriores tiveram consequência no serviço e não pouparam a empresa a coros de críticas dos utentes.
A linha 15 era sempre a primeira a encerrar nos dias de tempestade, quando as águas pluviais coincidiam com a praia-mar, inundando a Avenida 24 de Julho.
A linha 15 era sempre a primeira a encerrar nos dias de tempestade, quando as águas pluviais coincidiam com a praia-mar, inundando a Avenida 24 de Julho. Foto cedida pela Carris
Miguel Baltazar
Por acordo com o Governo de António Costa, defensor da municipalização da Carris enquanto líder da Câmara de Lisboa, o município assumiu a gestão e a propriedade da empresa, sem a dívida histórica que ficou no Estado. A entrega das chaves coincidiu com novas políticas tarifárias, em nome da recuperação de passageiros para o transporte público. Os passes para crianças até aos 12 anos passaram a ser gratuitos e foram aplicados descontos aos maiores de 65 anos.

Nos planos do município está ainda a criação de 21 novas linhas, num conceito de rede de bairro, com a qual se pretende assegurar uma ligação constante e continua aos principais pontos de cada zona da cidade: mercados, centros de saúde, escolas, farmácias ou comércio. O projecto vai arrancar este ano com a implementação de quatro linhas, duas em Marvila, uma nos Olivais e outra no Parque das Nações. O regresso a uma proximidade com a cidade.



Ver comentários
Saber mais Carris transportes Câmara de Lisboa
Outras Notícias
Publicidade
C•Studio