Notícia
Melo Ribeiro: "O país cria riqueza, só que, de tempos a tempos, deita-a fora"
A 1 de Outubro de 2016, a sua vida mudou. Deixou a liderança da Siemens Portugal. Os trabalhadores fizeram-lhe uma despedida. Quase chorou. O gestor duro e pragmático prevaleceu. Foram mais de 30 anos na empresa alemã. Agora, prepara os próximos 30 com projectos próprios. Lamenta que o país não esteja preparado para que gestores com a sua experiência dêem mais à sociedade, quer em administrações de outras empresas, quer na política. Acredita que tem um papel no país. Como teve em 20 anos de liderança na Siemens Portugal, que contribuiu, nesse período, em 21 mil milhões para o PIB.
Trinta anos de Siemens, 20 anos de liderança na Siemens Portugal. Agora que saiu, ainda se engana no trajecto de manhã?
Não, se bem que eu ainda vou à Siemens. Ainda estou a arrumar caixotes. E vamos fazer um jantar, uma entrega simbólica de testemunho, no dia 23 de Novembro. É, sobretudo, simbólico. E, depois de 33 anos e 21 à frente da Siemens, ainda há coisas para arrumar.
Tem muitos caixotes. É daquelas pessoas que guarda muitas coisas?
Sim. Também tinha lá coisas do meu antecessor que eu ainda nem tinha visto.
Andava a preparar a sua saída?
Eu sou um homem que prepara a vida 10 a 20 anos antes. Comprei a minha quinta, aos meus irmãos, há mais de 20 anos, exactamente a pensar nesta transição.
Sente-se um reformado?
(risos) Não. Vou continuar a trabalhar enquanto puder. Estive mais ou menos 30 anos a preparar-me, a estudar, a fazer estágios, e depois estive mais 30 anos na Siemens. Agora estou a planear os próximos 30.
Como vão ser?
Com actividade. Há tanta coisa para fazer. Aprendi muito com a experiência numa multinacional com 170 anos, que está no mundo todo, que já está cá há 111, que faz reestruturações de negócios de dois em dois anos e que consegue fazê-lo com segurança. É uma empresa que tem 80 mil milhões de euros de facturação, 350 mil pessoas, que poucos empréstimos tem e guarda o dinheiro nas crises... são ensinamentos muito importantes.
Quais são os principais ensinamentos da Siemens para os seus negócios?
Diria mais, são ensinamentos para o país. Porque um dos meus principais objectivos, que seria absolutamente normal noutros países, seria passar agora a dar um contributo à sociedade, através de "boards", consultoria, ou participar em temas da sociedade.
Vai fazer isso?
Vou fazer isso. Vou continuar ligado à universidade. Além disso, um dos meus filhos está a seguir a área de economia social e eu vou, com certeza, estar ligado a isso. E há projectos interessantíssimos, start-ups na área social, algo que está a crescer. Primeiro, esse meu filho queria ser cozinheiro e eu disse-lhe para estudar administração. Convenci-o e ele estudou. Dei-lhe dois conselhos: faz o que gostas, mas faz para o mundo. Este país termina. Qualquer pessoa que tenha uma actividade cá, tem de a fazer para o mundo.
Também foi por isso que estudou fora?
Sempre quis aprender nas duas maiores economias, a dos EUA e a da Alemanha. Na Alemanha, eu não tinha muitos contactos na altura, mas houve uma oportunidade de uma bolsa e lá fui eu. Nos EUA, fiz o MBA e estive lá mais um ano.
Sempre foi porque quis?
Porque quis e por iniciativa.
Era um privilegiado? Sente-se privilegiado?
Claro que sou, porque tenho capacidade de o ser. Ainda no outro dia, li uma frase: as pessoas mais felizes não são as que têm sempre as melhores coisas, são as que fazem o melhor das coisas que têm. É só isso. Não tem nada que ver com as posses. O meu pai era, com certeza, privilegiado, mas de uma classe média normal, ele era comandante da TAP militar e tinha oito filhos.
Mas, na altura, não era muito comum uma pessoa tirar dois cursos e ir para o estrangeiro estudar…
Tirei os cursos com o meu esforço. Arranjei uma bolsa. Para ir para a Católica de Boston, trabalhei no Verão, a vender de porta em porta, numa área de ensinamento, porque a área de vendas é uma escola. Fiz tudo através de bolsas. Um tio também me emprestou dinheiro, que eu devolvi.
Como é que entrou na Siemens?
Foi por acaso. A Krupp/Alexander v. Humboldt, que [na altura] geria uma das melhores bolsas de estudo, foi à Católica para dar um estágio e aperfeiçoamento de alemão aos melhores alunos. Eu não era dos melhores alunos, era muito preguiçoso, mas juntava-me aos bons… e aquilo andava para a frente. Era preciso saber alemão. E eu, no Verão, fui tirar um curso de três semanas, 12 horas por dia, incluindo sábados. Foi a primeira vez que me doeu a cabeça por estudar, porque eu nunca estudei assim tanto. Fiquei com as bases em alemão e era o único. Ganhei a bolsa. Foi assim. Depois era preciso uma empresa alemã. Eu não tinha ideia. Fui ver na família – tenho uma família enorme – e o meu tio – o general Galvão de Melo – era casado com uma senhora alemã que me apresentou a Siemens.
É curioso que, depois, esteve muitos anos à frente da Siemens, mas sempre em Portugal, nunca fora. Nunca quis uma carreira internacional dentro da Siemens?
Eu fui para fora cá dentro. Aumentei aqui as responsabilidades para o mundo. Enquanto pude fazer isso, fiz. Tive sempre as oportunidades e até pressão para ir para fora, mas gostava de estar aqui. O meu antecessor foi um grande homem na Siemens, fez crescer a Siemens e deixou uma empresa com muito bons engenheiros e com uma estrutura muito grande._A grande diferença que eu fiz foi colocar os portugueses e a Siemens Portugal no mapa do mundo. Porque, hoje, estão 10 ou 12 portugueses em posições muito altas e há 200 lá fora._
Durante estes 20 anos na Siemens, a empresa sofreu muitas transformações.
Nós "fazíamos" a visão de 10 anos e, a cada dois anos, tínhamos de mudar. Primeiro, foram as fábricas, tínhamos fábricas enormes, com muitos postos trabalho, e a Siemens vendeu-as internacionalmente. A maior parte ainda cá está, mas com outros nomes. Depois, a empresa apostou nas telecomunicações, que era o nosso grande furo, ainda cá estão, com outro nome. Depois, foi a energia que cresceu, etc. Fomo-nos sempre reinventando, tal como nos estamos a reinventar agora. Antes de eu sair, uma das vitórias mais importantes foi a parte do corporate IT [tecnologias de informação] e "cybersecurity" [cibersegurança], onde já temos 250 pessoas e é uma área que vai crescer.
Já temos… ainda fala no colectivo.
Com certeza. É como os cunhados, mesmo quando o casal se divorcia, fica-se sempre cunhado. Eu sou ex-Siemens. Agora, quero começar nas coisas novas. Não é olhar para trás.
Mas qual foi o pior momento?
Não tenho.
Perguntam-lhe sempre isto, não é?
Não tenho. Se tivesse de escolher, apontava o momento em que tivemos um chefe de um "cluster" espanhol, de quem ninguém gostava, e eu tive de lutar contra ele, porque ele queria deitar a mão aqui. Acabou por sair. Foi a altura de maior luta, mas nós ficámos e ele saiu.
A Siemens foi sempre uma grande fornecedora do serviço público, dos governos e do Estado. Alguma vez foi sondado para pagar alguma coisa para ganhar concursos?
Em 1995, 90 anos depois de a Siemens estar cá, assim que entrei [para a presidência], disse que só eu é que decidia isso. Estamos a falar de 1995. E eu era relativamente jovem. A Siemens [grupo] teve problemas no mundo em 2006.
A decisão era o quê?
Havia despesas confidenciais ou financiamento de partidos que eram legais [a proibição de financiamento pelas empresas surge com a lei de 2000]. Eu, naturalmente, nunca tive nada e acabei com isso tudo. E foi logo ao princípio.
Conhece bem o país industrial, empresarial e político. Há muita corrupção?
Você ouve nos jornais que há muita corrupção. Nós temos aqui casos que, se acontecessem noutros países, já estavam resolvidos. Se há muita corrupção ou não, digo-lhe assim: nós somos muito melhores do que o Brasil. Só sei que, quando comecei na Siemens, o que quer que houvesse legalmente nessa área acabou. Hoje, não se pode convidar ninguém. Não tinha mal nenhum. Eu recebia os cabazes de Natal e ficava todo contente. Dava uns e, outras vezes, levava-os para casa. Para nós, isso era natural.
Esses presentes eram normais?
Eram normais. Mas claro que tem de haver limites.
Acha mal um governante ir ao Euro a Paris, pago por uma empresa com a qual o Fisco tem um litígio?
É bom que haja regras. Mas acho que isso foi tudo um exagero porque era uma coisa de 500 e 600 euros. Não é por isso que uma pessoa vai estragar a vida. Foram descuidos dos governantes. Eles próprios admitiram. Não me pareceu que fosse má intenção.
À mulher de César também tem de parecer, não é?
Claro que tem e vai parecer. Se fosse cinco mil ou 10 mil euros, parecia muito mal, mas agora uma coisa de 500 paus. Não sou nada apologista de que fossem crucificados. Até porque alguns deles, nomeadamente o da Indústria, está a fazer um trabalho muito bom na área das start-ups e tecnologia, e a Siemens está a ajudar o Governo na parte da indústria 4.0. São trabalhos importantíssimos que podem ajudar este país a deixar de ser periférico. Temos jeito para trabalhar essas áreas. São descuidos que se podem emendar e agora com as regras… A Alemanha também foi apanhada nisto. Nestas empresas grandes que são tendencialmente sérias, como a Siemens, as pessoas que estão lá é que têm de controlar e ver. Até 2000, havia despesas confidenciais ou podiam deduzir-se comissões. Quando se ia para a Arábia Saudita, tinha de se pagar uma comissão a uma empresa estatal. Há comissões que se pagam em aberto, comissões de entrada ou lóbis. Aqui, a certa altura, podia financiar-se partidos desde que houvesse um limite e que estivesse nos livros.
Em Angola, tem de pagar comissões?
Nós fazemos "business" lá, estamos a crescer, com zero [comissões]. Temos sócios locais e eles próprios ajudam-nos a trabalhar bem. Foi a condição que dei. É um país que está com um índice internacional muito alto nessa área.
A Siemens Portugal tem a responsabilidade de Angola e Moçambique. Acha importante que seja Portugal a manter essas duas áreas?
Claro que é. Todos os países de África são difíceis. Primeiro, tem de se falar a língua e depois tem de se perceber o que está nas entrelinhas, as intenções dos clientes. E nós estamos à vontade… Infelizmente, [como país] não temos a capacidade financeira. Se não for Portugal, o negócio de Angola e Moçambique estaria na África do Sul e estaria praticamente fechado.
Nasceu em Moçambique.
Nasci. Vim com dois anos. De infância, não tenho memória. Voltei lá depois.
Quando é que voltou?
Voltei lá com 11 anos e, a partir daí, fui regularmente, também tinha familiares no país.
Sente que aquela é a sua terra?
Sinto que… fui sempre um embaixador de Moçambique. Adorava África. A 20 Abril de 1974, vim como estudante fazer as malas para ir para Angola. Tinha lá dois irmãos.
Já não foi.
Já não. Eles ainda ficaram lá até 1975/76. Quando se sente África, fica-se sempre com o bichinho. Isso também é muito bom para aqueles dois países aproveitarem porque nós temos essa ligação, entendemo-nos, e não há outro país que consiga fazer tão bem lá.
Esteve muitos anos à frente de uma empresa alemã. Os alemães são, de facto, muito mais trabalhadores?
Não têm custos de contexto. Trabalhei três anos na Áustria e um e meio na Alemanha. Chega-se às cinco e meia e já não há mais nada para fazer, está tudo feito. Aqui fica-se mais duas horas e não é para fazer mais, é para fazer aquilo que a gente sabe que os outros não fizeram.
Podemos aprender o quê com eles?
Podemos aprender a cumprir as nossas obrigações. Aqui, não há obrigações, só há direitos.
Como é que isso se faz?
Sabe o que eu transmito? Fazer as sistemáticas de tudo, ambiente, qualidade. Aliás, a Siemens introduziu no país duas ou três dessas certificações. É o que faço para compensar aquilo que não temos. Quando foi da crise de 2008, a Siemens guardou "cash" e depois, com "cash" guardado, fez "lay off" a 100 mil pessoas. Agora está a "bombar".
Esse é um dos ensinamentos para os seus negócios, guardar o "cash"?
Claro.
Na agricultura, não é muito fácil.
Gosto imenso da agricultura, não gosto de ser dependente dela. Ela só pode funcionar como uma empresa à séria, com investimentos, todos os anos, com contas certas. E claro que é dependente da natureza. Por isso, tem de se guardar sempre para um ou dois anos.
Consegue?
Consigo. Tudo o que eu meti lá está a funcionar e, muitas vezes, foi preciso. Quando fiz a aguardente, foi preciso esperar 10 a 15 anos. E eu esperei.
Porque se lembrou da aguardente?
Estava na única região demarcada e não havia ninguém a fazer. Eu agora sou o guardião da região. É a única destilaria que lá está, depois há dois ou três produtores.
Já vende bem?
Eu esforcei-me para ter parceiros. Hoje já tenho o Esporão. Vende a aguardente mais cara e melhor do país. É a Magistra.
Consegue ganhar dinheiro para os tais anos maus?
Eu tenho-o lá todo guardado. Custou-me os primeiros 10 anos, agora não.
Mas não faz só aguardente...
Tenho pêra-rocha e maçã de Alcobaça e vinho.
Tinha passado agrícola? Tinha família na agricultura?
A quinta era do meu avô. E o meu pai era do Cadaval e tinha sempre alguma actividade agrícola. O meu avô, do lado da minha mãe, era de Mangualde. Havia sempre ligações. A parte do campo é sempre engraçada. Há uma coisa que eu aprendi e que me ajuda a ser pragmático: tenho tudo bem preparado e se a natureza dá cabo de tudo, eu durmo na mesma. Não posso nada contra a natureza. É um bocadinho como os nossos políticos. Aplico o mesmo. É o que a gente consegue, não conseguimos mudar. O que é que eu posso fazer?
Candidatar-se?
Não dá, porque é uma profissão que foi abandalhada. Não foi respeitada. Era naturalíssimo uma pessoa chegar a determinada altura e querer fazer alguma coisa pelo país. Mas é completamente impossível.
Esse pensamento levar-nos-á a políticos cada vez piores.
Não leva. Não é só os políticos nem os media [Melo Ribeiro critica muito os media portugueses por só "falarem de misérias em vez de soluções e saídas". Por isso, diz que só vê noticiários de canais estrangeiros]. Começa pelos empresários. Seiscentas organizações? Os empresários têm muito mais capacidade e obrigação de serem organizados e construtivos. E não são. Porque é que os outros haviam de ser? É completamente ridículo e triste que Portugal, até há uns anos, fosse o único país da Comunidade a estar [em reuniões] com duas ou três associações empresariais. Chegavam a interromper reuniões para as associações de Portugal se entenderem. Os espanhóis e os irlandeses não faziam isso. Nós ainda não aprendemos. Não nos juntamos.
Porquê?
Por muitas razões. Não temos esse hábito e, como estamos aqui num país bonito com o melhor peixe do mundo e sol, nunca sentimos necessidade. Encostamo-nos sempre aos outros.
Nunca pensou numa acção mais política?
Pensei. Tantas vezes pensei que não me importaria nada. É normalíssimo. Houve até outros empresários que quase tentaram, mas depois…
Afasta isso?
Claro que afasto.
O que é que seria, se fosse político. Seria presidente de Câmara?
Podia ser isso, podia ser ministro, qualquer coisa.
Presidente da Câmara da Lourinhã?
(risos) Isso não, porque entraria com outras coisas. Mas eu tenho feito política estes anos todos, no sentido que posso e na proximidade. Fomos nós [Siemens] um dos grandes impulsionadores na abertura das universidades às empresas, na investigação. A Siemens é uma empresa que lida muito com a parte pública. Sempre fui confundido, em cada Governo, como amigo do Governo. Institucionalmente, damo-nos com todos. Temos de dar. Eu sou da opinião que, assim que há uma eleição, o povo todo devia apoiar quem foi eleito, concorde ou não. Não temos meios para desperdiçar. Enquanto os principais responsáveis deste país não falarem uns com os outros, no sentido construtivo – e não falam –, não há possibilidade nenhuma. Com o país aflitíssimo, alguém discute o que Portugal precisa? Ou discute-se o que o partido precisa para ganhar as próximas eleições? Os jovens estão desempregados. Sabe o que faz a Alemanha? É só copiar. Na Alemanha, as empresas obrigam-se a pôr milhares de estagiários. Na Siemens, tínhamos uma cadeira para um estagiário e eu pedi para pôr 10 em cada departamento.
Depois não ficam.
Não interessa. O primeiro contacto é importantíssimo. Para ele e para a sociedade, é óptimo. Na Alemanha, as empresas obrigam-se a isso em prol da sociedade. Aqui, alguém já começou a pensar nisso? Outra coisa que está a aparecer na Alemanha e nos Estados Unidos: os mais velhos já começam a fazer saídas faseadas, trabalham só meio termo e depois estão com estagiários novos a passar o seu conhecimento. Isso custa alguma coisa? Alguém está a pensar nessas coisas para o país?
Por cá, substitui-se os mais velhos pelos mais novos porque são mais baratos…
O mais velho a meio termo também é mais barato. Ninguém pensa. Só se remenda, ninguém pensa no longo prazo. Eu investi 15 anos para ter uma aguardente... 15 anos.
Recentemente, disse ao Expresso que estamos numa fase perigosa. O que quis dizer com isso?
Não sei o que era, nesse caso específico. Estamos há muito tempo numa fase em que seria preciso que as pessoas levassem tudo isto a sério. Não temos meios e estamos a deitá-los fora. Continua-se ridiculamente a dizer: "Vêem que aquele fez tão mal?"
Houve alguém que tivesse feito bem?
Todos fazem bem. Fazem uma coisa bem e três mal. E o país fica na mesma. Até o Eng. Sócrates fez uma coisa extraordinária neste país. Que foi o IT no Estado. O que isso desbloqueou... Tem um valor extraordinário. E depois vem outro Governo e, sem critério, diz que aquilo não serve para nada. E depois vem outro que, só porque o outro disse que não vai continuar, continua.
Retrocedemos nos últimos anos?
Nós andamos sempre 1,5 para a frente e um passo para trás. As pessoas não discutem as coisas como estão. A demagogia da esquerda... quando estava o outro [Governo], era tudo péssimo. Todos os anos, quando começavam as aulas, havia greves. Até nós acreditávamos que estava tudo mal. Muda o Governo, os sindicatos já não fazem greve. Isso é só política. Então, e o país? Subam o salário mínimo, as pensões. Nós [Siemens] já não damos ordenados mínimos há não sei quantos anos. Se calhar, nunca demos.
Mas há muita gente em Portugal a ganhar o salário mínimo.
Demais até. E quanto mais baixo estiver, mais seremos um país de nada.
O que acha das associações patronais?
Perderam muito valor. São 600. Deviam ser três: norte, centro e sul.
Não estão também a fazer política?
Há muito tempo. Agora estão menos, só porque estão todos falidos.
O travão aos investimentos públicos…
... e privados, assustando os privados. Agora, ia comprar duas casas e parei logo.
Por causa do adicional ao IMI?
Pois. E sou eu.
Acha que é assim tão penalizador?
Até saiu melhor do que se estava à espera, mas é penalizador e assusta.
Já não vai comprar por causa disso?
Exactamente. Desisti.
E, agora, vai comprar em Espanha?
Não, se calhar vou investir mais na agricultura ou noutro sítio. Mas o imobiliário é uma parte importante. Não podemos ir atrás dos estrangeiros. Os franceses, por exemplo, estavam cá na maior e, agora, se calhar… Este país tem de estar integrado no mundo. Não pode estar isolado. É um país muito pequenino, pensa muito pequenino. Mesmo no futebol. Onde é que já se viu termos os melhores jogadores do mundo e não ganharmos nada?
Ganhámos o Europeu…
Mesmo agora, no Europeu, podiam ter feito muito melhor. Falta a ambição e o trabalho em conjunto. Quando fazemos isso… Nós fizemo-lo na Siemens em Portugal. Há outros que também o fazem, felizmente, e isso vai melhorar muito.
Porquê?
Está previsto que mais de 50% do novo trabalho, da nova época digital, seja em start-ups. É o que os jovens vão fazer. Os meus dois filhos mais velhos criaram empresas. Não quiseram ir para estágios de 600 paus.
Não temos é capital de risco.
Pois não. Mas, se fizermos global, ele vem. Por isso, aconselhei os meus filhos a fazerem coisas globais.
Que ligação teve ao universo Espírito Santo?
Estava há 10 anos a programar o futuro – e se este país fosse mais desenvolvido nesse sentido da preocupação da sociedade, uma pessoa como eu iria agora contribuir em vários "boards" de empresas, dar aquilo que aprendeu estes anos todos. Eu já vou em dois e corre muito bem [Riopele no "board" e conselheiro numa empresa de plásticos] – e eu programei isso. [O grupo Espírito Santo era] dos melhores grupos que tínhamos e com reputação global extraordinária. Como estávamos ligados pela saúde – fizemos com eles a parte da saúde que é do melhor a nível mundial –, naturalmente comecei a pensar em alguns "boards" que fizessem sentido na altura ou mais tarde.
Mas como representante da Siemens?
Não. Era particular. Quando as instituições obrigaram a separar [no universo Espírito Santo] os "non-financial assets" [activos não financeiros], foi criada a Rioforte e eu fui para a Rioforte e, nos dois anos que lá estive, ficou a sociedade dele mais limpinha e transparente que era não financeira.
Em que anos?
Foi em 2012/13 e em 2014 saí. No fim de 2013, ela foi agarrada pelo Espírito Santo e posta como "holding", o que não fazia sentido nenhum. E depois aquilo espoletou e saímos quase todos. Ninguém fazia ideia do que se passava. Nem o sócio principal dele, há 20 anos, que era o Crédit Agricole, quanto mais as outras pessoas.
Nem nunca imaginou?
Nunca. Aliás, entrei simbolicamente no último aumento de capital, por simpatia.
Perdeu dinheiro?
Já perdi muito mais noutras acções.
Foi um choque grande?
Claro que foi. É o típico deste país. Cria riqueza, tem capacidade para criar riqueza como qualquer país do mundo, só que, de tempos a tempos, destrói-a, deita-a fora.
Também acontece nos outros países…
Não assim. E digo-lhe porque não acontece. Respeitam as regras de "governance". Que aqui nunca se respeitaram.
Qual é o principal problema nas regras de governação? São as partes relacionadas?
É o facto de não as levarem a sério. Elas existem. Se há um "board" que tem de ver…
Não se fiscaliza?
Era conversa. A própria autoridade ou fiscalizador também tem…
Aprendemos com os erros?
Não. E é logo a seguir. Temos de ter um resgate porque gastamos dinheiro a mais e, logo que podem, dão tiros.
O Governo está a dar tiros nos pés?
Este e os outros. Começam a estragar tudo o que fizemos.
Podemos ser um país de indústria?
A indústria 4.0 e a digitalização são uma grande oportunidade para o país. Podemos ser o país de indústria como pudemos ser em 900 anos. Temos uma posição ímpar no meio dos dois maiores mercados do mundo. Se fizerem o TTIP [acordo comercial União Europeia-EUA], Portugal dá logo um "bust".
Tem Ordem do Mérito Industrial pela presidência [dada por Jorge Sampaio]. O seu trabalho foi reconhecido?
Quando faço o trabalho, não estou à espera de que seja reconhecido.
O que disse quando saiu?
Que saia sereno e de alma cheia. Porque a minha recompensa foi durante o trabalho. As despedidas foram simples. Normais.
Os trabalhadores fizeram alguma coisa?
Reuniram-se quase mil trabalhadores, de surpresa, e fizeram discursos, soltaram balões. E eu não estava à espera.
Chorou?
Não. Consegui não chorar. Estava quase, mas segurei. Tenho a fama de ser muito duro e pragmático na vida, só choro a ver novelas. Mas estava quase, estava quase.