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Madalena Wallenstein: A nossa missão na vida é mantermo-nos entusiasmados

Madalena Wallenstein, coordenadora da Fábrica das Artes do CCB, defende a criação de uma escola de raiz. “Todos já percebemos que esta escola é uma escola do século XIX, com professores do século XX e crianças do século XXI”.

Bruno Simão
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Tem dois filhos. Afonso é afinador de pianos, Vicente é actor. Madalena Wallenstein, mãe, tia, irmã e filha de homens e mulheres de teatro e música, cresceu a ser escutada pelos pais. Quando foi para a escola, a sua palavra parecia valer pouco. "Sempre senti um grande desconforto em relação à forma como a infância era tratada", diz a coordenadora da Fábrica das Artes do CCB. "Todos já percebemos que esta escola é uma escola do século XIX, com professores do século XX e crianças do século XXI." E o que faz Madalena? Tenta criar pequenas ilhas de utopia. Iniciou a sua formação no Movimento da Educação pela Arte, na Gulbenkian, estudou música no Conservatório Nacional, especializou-se em educação artística, sobretudo junto das crianças. Em 2008, integrou o CCB, onde, no fim-de-semana passado, decorreu o Festival Big Bang, evento destinado a todas as infâncias. Entretanto, a Fábrica das Artes está a lançar o "Ciclo Memórias de Intenção Política", que pretende contrariar a ideia de que os jovens não se interessam pela política. Como? Partindo de histórias reais que possam despertar inquietações.


Tenho um afinador de pianos, o Afonso, e um actor, o Vicente. São os meus filhos. O Afonso usa um vocabulário ao qual muitas vezes nós não conseguimos aceder, ele fala da cor do som, mas o que será a cor do som? Em relação ao Vicente, eu costumo brincar e perguntar onde é que ele foi buscar a ideia de ser actor? Eu tive uma infância muito rica, muito original, o meu pai (Carlos Wallenstein) era actor, dramaturgo, poeta, encenador e um ser bastante inquieto. Nós vivíamos numa casa sempre cheia de gente e muito aberta. O conselho mais forte que os meus pais me deram foi: a nossa missão na vida é mantermo-nos entusiasmados. Então, quando estivermos aborrecidos e isso não for uma coisa pontual, temos de mudar de vida.
Aos quatro anos, eu já andava nas oficinas de educação pela arte. Lembro-me, também, de passar muitas horas nos ensaios do meu pai. Cresci neste caldeirão. Depois, fiz o curso de música no Conservatório Nacional e, aos 19 anos, para ganhar alguns trocos, comecei a dar aulas de música a crianças. E fiz logo um "statement": queria ensinar como eu gostaria de ter sido ensinada. Com metodologias que, ao invés de partirem de um conhecimento acabado, partissem da experimentação e da descoberta, tendo subjacente a ideia de que o conhecimento é como uma floresta que é preciso ir percorrendo, experimentando e validando, criando uma espécie de arquivo. Só depois é que as coisas começam a ter nomes. Revejo-me nas pedagogias do Movimento da Escola Moderna e na metodologia de Murray Schafer, que trabalhava muito a partir de paisagens sonoras e que, influenciado por John Cage, defendia que a música está em todo o lado e que a partitura também é feita de acasos.
Eu encaro a música como "musiquês", como uma linguagem. Ao ensinar música, ao invés de pegar numa partitura, numa coisa já construída, eu começo por brincar com a música como se ela nos dissesse coisas, ouvindo-a, experimentando-a, utilizando instrumentos de muito fácil acesso técnico, como xilofones. Depois há ciclos de reflexão e de sistematização. Há um momento em que é preciso registar. E, normalmente, essa curiosidade parte sempre das crianças - "Madalena, como é que se lê uma pauta, como é que escreve um Sol ou como se escreve um Mi?" É um processo ao contrário.

Tive sempre uma vida muito dispersa, gosto de fazer muitas coisas, de tocar, de encenar, de dar aulas, de trabalhar em intervenção comunitária. A dada altura, fui dar aulas na Saint Dominic's International School e tive acesso à pedagogia nórdica e anglo-saxónica. Mais tarde, uma série de miúdos que tinham trabalhado comigo nesta e noutras escolas veio ao meu encontro. Começámos a trabalhar num anexo do jardim de casa dos meus pais e depois fomos invadindo a casa toda, aquilo era uma espécie de circo. Assim começou a Artemanhas, associação que depois foi convidada para desenvolver projectos no âmbito das escolas do 1.º ciclo, sempre com esta atitude: como é que, dentro de um sistema que está montado, nós podemos inscrever um território com uma metodologia que recorre a uma inteligência muito mais divergente? O Artemanhas está em processo de encerramento, é pena, mas tudo se transforma e, como o projecto contaminou pessoas que andam por aí a contaminar outras pessoas, então valeu a pena.

Olhar para as crianças enquanto criadoras foi sempre uma inquietação que veio da minha própria infância, da minha família. Como tínhamos um modo de estar muito crítico e muito aberto na discussão, e as minhas opiniões eram consideradas, quando eu entrei para a escola, isso foi mesmo um problema. Enfim, eu não fui nada feliz neste confronto. Sempre senti um grande desconforto em relação à forma como a infância era tratada. As crianças são encaradas muito mais como um projecto de futuro, como não tendo uma vivência própria naquele tempo de vida, e há uma certa desconsideração sobre o seu pensamento, há uma certa falta de escuta.
Todos já percebemos que esta escola é uma escola do século XIX, com professores do século XX e crianças do século XXI. Aliás, Michel Foucault já dizia que, das instituições da era industrial, desde a prisão ao hospital, a escola era aquela que menos tinha mudado. Uma escola ideal? O mundo, em vez de ser entregue aos mais novos como fechado, deveria ser entregue como algo aberto, como alguma coisa que um dia vai ser deles e que eles poderão transformar. Eu sei que estou a dizer poesia. Mas acho que estas ciências educativas, estes discursos educativos, estas políticas educativas e estes currículos são, na verdade, somas de reformas, umas atrás das outras, e mal coladas. Seria necessário coragem para fazer implodir este sistema e começar um novo. Seria necessário criar uma escola de raiz, onde a arte e a ciência estariam no centro. A ciência no sentido da investigação e da curiosidade - e não no sentido de colocar tudo em caixinhas. Aliás, estamos a precisar de partir as barreiras da categorização. A divisão da escola por idades, por exemplo, é uma loucura. Têm de se encontrar outras formas de juntar as pessoas. Uma nova escola seria também uma escola não centrada na escola, até poderíamos manter uma sala de aula, mas teríamos de desarrumar aquelas carteiras e aquelas paredes. Todas as salas de 1.º ciclo têm um abecedário de A a Z, e, provavelmente, o Z é uma zebra…
A Finlândia pode ser um exemplo porque assumiu que a educação iria ser o grande investimento e que a alternância democrática não iria interrompê-lo. É um país onde os professores são escolhidos a dedo pelo seu desejo de ensinar e pelo seu talento, são muito bem pagos, têm turmas de 15 alunos e todo o 1.º ciclo é feito para descobrir o mundo. Toda a gente sabe que, em Portugal, os professores têm uma pressão brutal, com turmas enormes e, com isso, esvai-se o tempo para a relação com os alunos. E não se aprende sem afectos, não se aprende sem o olho no olho ou, então, aprendem-se coisas à bruta que se esquecem imediatamente. A pressão sobre as crianças é extraordinária e, muitas vezes, elas nem sequer são escutadas naquilo que são as suas inquietações, as suas angústias. A infância não é, necessariamente, um lugar feliz.

Mas eu não tenho um discurso nada derrotista, acredito que cada um de nós, no local onde está, pode tentar criar pequenas utopias. É isso que tenho tentado ao longo da minha vida, dentro da escola, fora da escola e aqui no CCB, na Fábrica das Artes. Uma instituição cultural ainda pode ser uma espécie de último reduto para a liberdade de criação, o que não quer dizer que não existam compromissos, mas é possível fazer experiências. Criámos projectos que resultaram em livros como "Se não havia nada, como é que surgiu alguma coisa?", que partiu de um ciclo sobre filosofia na infância. Ou "Raízes da Curiosidade - Tempo de Ciência e Arte", em que juntámos artistas das artes performativas com neurocientistas, e o livro "Nós pensamos todos em nós", que é uma frase da Matilde, uma menina que captou bem o espírito do projecto e disse: "Eu costumo gostar de coisas muito livres… e não gosto daqueles teatros que são só para adultos e… e as crianças não podem entrar… eu adoro que seja uma comédia, ou uma coisa de música, ou as duas juntas… adoro que seja para todas as idades… porque nós somos iguais… a única coisa que temos é as idades… mas isso não interessa… nós… nós pensamos todos em nós…"


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