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Jorge Coelho: Sempre soube lidar bem com o poder e a falta dele

Foi com António Guterres que entrou na vida política a sério e tem grandes expectativas para o seu mandato nas Nações Unidas. Sentiu-se, também ele, “um pouco eleito”. Foi número dois do Governo e CEO da Mota-Engil. Agora regressou às origens para abrir uma queijaria em Mangualde.

Miguel Baltazar
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Foi com António Guterres que entrou na vida política a sério e tem grandes expectativas para o seu mandato nas Nações Unidas. Sentiu-se, também ele, "um pouco eleito". Foi número dois do Governo e CEO da Mota-Engil. Agora regressou às origens para abrir uma queijaria em Mangualde, onde recorda a figura do avô Raul e as primeiras intervenções políticas. Conta como desistiu e resistiu ao cancro que lhe foi diagnosticado há 10 anos e o apoio que dá a quem o procura para enfrentar a doença. Exige que Portugal combata a pobreza infantil. "Não me vou calar com isso", avisa.


Depois de anos na política e nas grandes empresas, lançou-se num negócio seu e abriu a queijaria Vale da Estrela em Mangualde, onde nasceu. Porque é que sentiu necessidade de regressar às origens?

É uma fase da vida. Uma pessoa, quando começa a ter alguns anos, procura perceber se já fez tudo aquilo que queria ter feito. Eu já tinha tentado umas duas vezes desenvolver projectos na zona, mas não tiveram sequência. Queria, um dia, poder investir aqui e colaborar no desenvolvimento da região à qual estou muito ligado. Tenho uma casa a cinco quilómetros da queijaria, onde normalmente fico. A minha mãe morreu há uns anos, mas a casa funciona como se estivesse habitada. As pessoas que trabalhavam lá no tempo em que a minha mãe era viva trabalham lá na mesma. Isso é importante para a minha forma de estar na vida.

 

Como decidiu que ia fazer queijo da serra?

Numa iniciativa de promoção do queijo DOP (denominação de origem protegida), dei conta de que o concelho de Mangualde estava inserido na zona demarcada do queijo DOP e não havia nenhum queijo de Mangualde. Começou assim. O projecto foi para a frente e, ao fim de um ano e meio, está a funcionar em pleno. Com dificuldades…

 

Emperrou em burocracias?

Como qualquer outra pessoa. Não é fácil a vida para um empreendedor. A ministra Maria Manuel Leitão Marques, tenho-lhe dito, tem muito trabalho ainda para fazer. Há muita coisa que não seria necessária e só o é por falta de bom funcionamento do Estado entre si, dentro dos seus organismos. Uma das áreas do Governo em que pode haver um trabalho importante é a reforma do Estado.

 

Essa necessidade de fazer alguma coisa pela sua região foi para devolver à sociedade o que ela lhe deu?

Já estive em muitos projectos de grande dimensão em Portugal, seja a nível político, seja na Mota-Engil, mas este é o projecto da minha vida. Tem que ver com todas as minhas raízes. Quando tinha cinco anos, ia com o meu avô, que era o que em França se chama um "affinateur", que comprava os melhores queijos e depois transportava-os para uma queijaria que tinha na aldeia onde tenho a minha casa (Contenças) e tratava os queijos. Eu tinha uma grande paixão pelo meu avô, ele era a grande referência da família e da região. É uma homenagem, mas também é um regressar às origens a todos os níveis. Hoje, felizmente, é possível desenvolver projectos no Interior. Não é por acaso que Mangualde tem esta indústria toda. Fica a 80 quilómetros de Espanha, tem duas auto­-estradas, uma estação de comboios para o transporte de mercadorias, tem o porto de Aveiro a 70 quilómetros. Isso também é importante para este negócio.

 

Fala com orgulho do concelho...

A minha terra, ao contrário de outras que estão a definhar, é um caso claro de sucesso. Tem uma taxa de desemprego baixa e um grande fulgor. Poder estar a contribuir para isso, nesta fase da minha vida, é muito importante. Nós vamos fazer uma promoção da queijaria em Lisboa em Fevereiro e Mangualde tem uma orquestra com 50 jovens. Tenho um gosto tremendo de os poder levar, de poderem actuar para muitas pessoas, algumas com protagonismo na sociedade, num sítio com todas as condições técnicas. Por isso é que digo que este é o projecto da minha vida. Tem muito mais simplicidade e muito menos meios do que os sítios por onde passei, onde tudo era de grande envergadura. Isto é mais real. E há uma fortíssima responsabilidade social porque quem, como eu, já andou na vida política não pode andar a falar no que se devia fazer e depois não fazer o que se andou a dizer. Por isso é que na queijaria só há contratos sem termo. Todas as regras que defendi na vida são aplicadas. Faz­-me ficar de bem comigo e por isso é que as pessoas que aqui trabalham estão felizes. É a dignidade que chegou às suas vidas.

 

Teve uma infância feliz em Mangualde?

Sim, mas o meu pai morreu quando eu tinha seis anos. Tive uma mãe extraordinária, foi a pessoa mais importante na minha vida. Isso fez com que viesse cá permanentemente. Ela viveu nos últimos anos em Lisboa, mas sempre com a casa aqui a funcionar e vinha cá quando queria, comigo, com a minha irmã. Estudei aqui até ir para a universidade. Joguei futebol no clube de Mangualde, tenho muitos amigos de infância e adolescência.

 

Está a reencontrá-los? Como o tratam?

Alguns ia encontrando, mas estou a reencontrar muitos. Nunca deixei de andar por aqui. Na minha aldeia tratam-me por Jorginho. Já ao meu pai tratavam por senhor Jorginho. Isto é tudo muito pequeno, as pessoas conhecem-se todas.

 

Custou-lhe sair para Coimbra para estudar ou os tempos empurravam-no para lá?

Estava ávido de sair daqui. Na altura, a vida aqui era muito complicada do ponto de vista social. Muito morta. Antes do 25 de Abril, Mangualde não tinha nem um liceu. Tinha um colégio privado onde só estudavam os filhos das pessoas que tinham dinheiro. Na minha aldeia havia duas pessoas a estudar, eu e outro. Na altura, não havia um hospital, não havia nada do ponto de vista cultural, o apoio social era zero. Era um país completamente definhado.

Na minha aldeia tratam-me por Jorginho. Já ao meu pai tratavam por senhor Jorginho. As pessoas conhecem-se todas. 

 

Um adolescente só queria sair daqui...

Na altura, eu só queria ir embora para ver se via qualquer coisa.

 

Já tinha consciência política?

Em 1969, tinha 15 anos e colaborei nas eleições na oposição, na CEUD, Comissão Eleitoral de Unidade Democrática.

 

Foi a sua primeira experiência política?

Foi. Tive uma situação curiosa. Lembro-me de andar a colar cartazes na aldeia e arranjei a primeira zanga com o meu avô. O meu avô era uma figura do regime, era regedor. Uma das casas onde os cartazes foram colados era um armazém dele. Quando lhe disseram que tinha sido eu a fazer aquilo, não me falou durante uns 15 dias.

 

Era um jovem revoltado?

Lembro-me de ser uma pessoa revoltada com as injustiças da vida desde miúdo. A minha ligação aos meios da oposição de Mangualde foi natural. Quem me lançou no meio da política foi um senhor chamado José Alberto Inácio. A minha casa nas Contenças é em frente à estação e ele era ferroviário. É um grande amigo meu e é do PS. Foi a primeira pessoa que conheci revoltada verdadeiramente com as injustiças da vida.

 

Foi ele que o levou para o PS?

Não foi bem assim. Aprendi muito com ele. Aprendi a ler. Ele comprava o jornal Record, é um sportinguista ferrenho, e eu fiquei do Sporting à conta dele. O comboio chegava às duas horas e trazia os jornais. Hoje já não param comboios na minha aldeia, a estação está automatizada e nem tem funcionários. Foi este senhor que me trouxe para estes campos da contestação social. Mas o grande salto foi a crise académica de 1969. A minha irmã estava na Universidade de Coimbra e fez greve. Eu era miúdo. Ao fazer greve, o problema político entrou em minha casa. Claro que eu estava solidário com ela. A crise de 69 teve um peso brutal nas famílias portuguesas, porque a discussão política entrou nas casas.

 

Para o seu avô, terá sido difícil…

A coisa não foi fácil. Nem para mim. O meu avô acabou a votar no partido socialista quando eu fui candidato a deputado há muitos anos. Disse-me: "Agora vou votar em ti, nunca imaginei." Era uma pessoa extraordinária, a quem devo muito. Depois fui para Lisboa, e enveredei pela luta política a sério. Fui fundador da UDP e pertenci a organizações comunistas antes do 25 de Abril, como militante activo, clandestino. A minha ruptura com a extrema-esquerda foi feita no 25 de Novembro.

 

A que se deveu?

Assisti ao assalto da embaixada de Espanha sentado com a minha mulher, da altura e de hoje, nas escadas na Fundação Gulbenkian, e olhei para aquilo e disse "eu não tenho nada que ver com isto, é um bando de ladrões que está aqui". Roubaram tudo quanto havia. Quando vi as pessoas a sair com presuntos às costas, a queimar quadros, disse "alto e pára o baile". Houve uma ruptura política e acabou com a minha entrada em 1983 no PS, com o qual já colaborava.

 

No PS, criou uma imagem de todo-poderoso, que é até o título de uma biografia sua. Acha que foi?

Na verdade, eu não tinha bem consciência disto. Todo-poderoso não digo, mas nos anos em que desenvolvi actividade política e governamental, pelas funções que exercia, tinha muito poder. Se lá estivesse outro, também tinha. Fui número dois do Governo durante anos e o número dois de um Governo tem muito poder. Daí a ser todo-poderoso… Esse é um conceito religioso e eu não sou religioso.

 

Soube lidar bem com esse poder?

Sempre soube lidar bem com o poder e a falta dele. Nunca tive qualquer depressão por ter altas funções e no dia seguinte já não as ter. É uma coisa absolutamente normal para quem anda na vida pública.

 

Acabou por sair do Governo na sequência da queda da ponte de Entre-os-Rios. O que exigiu de si exige aos outros?

Tomei a decisão que achei que devia tomar. No dia seguinte estava de bem comigo próprio. Cada um deve fazer o que a sua consciência lhe determina, mas não pode fugir ao julgamento das pessoas. As pessoas têm de ser coerentes com os seus princípios de vida e praticá-los.

 

Um dos melhores telefonemas que tive na vida foi quando António Guterres me disse que tinha acabado de saber que ia ser eleito. Também eu me senti um pouco eleito.

Fui número dois do Governo durante anos e o número dois de um Governo tem muito poder. Daí a ser todo-poderoso… 

 

Por que razão um dia decidiu que não queria mais cargos políticos nem partidários?

Por uma razão muito simples: entrei na vida política a sério com o engenheiro António Guterres e no dia em que ele saiu, para mim, aquilo acabou. Continuei a ajudar o PS depois disso, mas não com aquele peso de ser membro do Governo, de ser dirigente… Eu tinha duas opções: ou me candidatava a líder do PS e era eu que, se ganhasse, iria enveredar por esse caminho ou então devia fazer aquilo que fiz e que foi ajudar a criar condições para que outros desenvolvessem a sua vida política.

 

Porque é que não se candidatou?

Havia pessoas mais bem preparadas para desempenhar a exigência desses cargos. Eu já tinha sido tudo aquilo que queria ter sido. Já tinha sido coisas que nunca na vida me passaram pela cabeça ser.

 

Quais?

Algum dia me passou pela cabeça ser membro do Conselho de Estado? Ser ministro de Estado? Ser ministro da Presidência? Acho que tinha qualidades para desempenhar bem os cargos que desempenhei, em relação a outros tinha dúvidas e, quando se tem dúvidas, não se deve andar a fazer experiências. Nunca gostei de ser deputado. Sempre gostei de exercer cargos mais executivos, com capacidade de resolver problemas das pessoas. Respeito muito a Assembleia da República mas, pessoalmente, não é uma área onde tenha sido feliz.

 

Teve uma desilusão?

Nada disso. Tenho um grande respeito pelos políticos portugueses. A actividade política é muito nobre e, com as vicissitudes que existem, é preciso uma grande dedicação para se ser político em Portugal. Tiro o meu chapéu a quem dedica a sua vida, como eu dediquei muitos anos, à actividade política.

 

Não há cada vez menos pessoas disponíveis a fazê-lo com as condições e os salários que se pagam?

Quem está na causa pública tem de estar preparado para isso. Quem anda lá por sacrifício tem de fazer um grande favor, a si próprio e ao país, que é ir embora. Quem está em cargos que exigem uma entrega pessoal total e o faz por sacrifício está a fazê-lo mal.

 

Quem é que sobra?

Criem-se condições. Há pessoas que têm demonstrado não estar ali por sacrifício. O actual primeiro-ministro sempre pugnou por dizer que tinha orgulho em ser político.

 

Faltam referências na política portuguesa, como na europeia? Os populistas preocupam-no?

Claro, só se eu fosse louco é que não me preocupava com o que aconteceu nos EUA, com o que está a acontecer na Grã-Bretanha, com o que pode acontecer em Espanha ou em França. Mas nem toda gente anda infeliz. Estive em Moscovo e as elites russas andam satisfeitíssimas. Nunca os tinha visto tão contentes. O mundo está perigoso.

 

António Guterres é o homem certo na ONU?

Ouvi a intervenção de António Guterres nas Nações Unidas, e disse-lhe: "Vi o homem que eu conheci há 30 anos, com uma determinação total, uma convicção absoluta, uma força, rejuvenesceste 30 anos naquilo que é o espírito de combate que queres imprimir nas Nações Unidas." Tenho grande esperança de que ele seja um grande motor da transformação que o mundo tem de ter. O risco que ele assumiu ao dizer "tenho aqui um objectivo: acabar com a guerra na Síria" é uma coisa...! É bom que o mundo tenha líderes que definam objectivos. Aqui há um problema: não se sabe como vai ser o relacionamento do novo Presidente americano com as Nações Unidas. São riscos novos.

 

Há outras coisas que falta saber...

Pois, mas Trump foi eleito. Ele é Presidente. As pessoas não podem fazer de conta que ele não foi eleito.

 

Comentou a escolha de António Guterres para a ONU, quase violando o princípio que assumiu de não comentar as questões políticas. Não resistiu a elogiar um amigo?

António Guterres é a pessoa com quem eu mais me identifiquei na vida política. Foi o meu líder e, como líder, nunca encontrei mais nenhum. É uma pessoa com quem tenho uma relação de amizade gigantesca e, por isso, gostei de comentar. Acompanhei todo o processo.

 

Sofreu?

Um dos melhores telefonemas que tive na vida foi quando ele me disse que tinha acabado de saber que iria ser eleito. Também eu me senti um pouco eleito. São muitos anos. Já tivemos muitos problemas nas nossas vidas pessoais, já sofremos muito em conjunto, já fomos muito cúmplices, já fomos muito felizes em conjunto, infelizes em conjunto, mas nunca tivemos uma discussão. Discussões políticas sim, mas de nível pessoal não. Para mim, esse foi um momento de grande realização também. É claro que a diplomacia ajudou, toda a gente ajudou, mas isto deve-se a ele, às características e à vida dele.

 

Que comparação faz com Durão Barroso, que foi para a Goldman Sachs?

São opções de vida. Durão Barroso fez a opção de vida dele. A imagem dele em Portugal já era má, ficou péssima.

 

Mesmo tendo cumprido o período de nojo?

Optou por outra carreira. É evidente que foi mau para o país. Durante uma série de anos, em Portugal também não se deu o devido valor ao papel que enquanto presidente da Comissão Europeia teve. Seguramente procurou sempre ajudar Portugal, mas Portugal nunca o reconheceu. Foi sempre visto mais como um ex-líder partidário do que alguém à frente de uma instituição poderosíssima.

 

Aconteceu-lhe também a si quando foi para a Mota-Engil sete anos depois de sair do Governo. Não lhe pouparam críticas…

Eu compreendo. Fui político durante anos com tanta intensidade que, à generalidade das pessoas, não passava pela cabeça eu querer ter uma vida profissional como outra pessoa qualquer. Mas se eu decidi que não queria continuar a ser político, tinha de trabalhar. Não era rico. Tive um convite de uma empresa, mas já tinha trabalhado noutras antes, é curioso...

 

Foi uma combinação explosiva, Jorge Coelho e Mota-Engil?

Vivi bem com isso. Não quero saber disso para nada. Se tivesse intervenção política, tinha de querer saber porque quem está na vida política tem obrigação de responder perante os cidadãos. Eu respondo perante mim.

 

Da Mota-Engil saiu por falta de resistência física?

Tive um problema de saúde muito grave há 10 anos, tive um cancro. E consegui, eu e os médicos, estar aqui, porque se as estatísticas tivessem funcionado, eu não estaria aqui, teria morrido. Digo isto a rir, mas não tem piada nenhuma. Tem piada porque, no dia em que o médico descobriu que eu tinha um tumor maligno, a primeira coisa que me disse foi a probabilidade de eu me safar.

 

Suponho que elevada?

Boa. Pensei: "Pelo menos ainda não morreste."

 

Isso mudou-o?

Jesus! Foi a grande mudança na minha vida. É-se poderoso e, de um momento para o outro, já não se é nada porque lhe estão a dizer que daí a uns meses pode ir desta para melhor. A maior preocupação que tive, como qualquer ser humano, foi pensar como é que ia dizer à minha mulher e à minha filha que tinha cancro. O médico foi extraordinário porque marcou logo exames, não parei sequer para pensar no que ia fazer à vida. Foi sempre a galopar. Consegui safar-me. É o que eu digo a pessoas doentes. Não imagina a quantidade de pessoas que me telefona, que me escreve cartas, do país inteiro, que não sei quem são, que têm problemas de saúde e me pedem para ir almoçar com elas. E eu vou. Entrei para uma associação na altura, a Acreditar, que tem procurado ajudar as crianças que têm doenças dessa natureza. O que mais me impressionou durante o tempo que andei a ser tratado foi ver miúdos a terem de estar a fazer o mesmo que eu. Tive sorte. Já tive sorte várias vezes na vida. Nas estatísticas, podia estar na parte dos que foram desta para melhor. Foi uma mudança brutal em mim, na minha vida.

 

Se as estatísticas tivessem funcionado, eu não estava aqui, teria morrido.

Marcelo está a ser um Presidente extraordinário. Eu, que passei a vida inteira em confrontos com ele, hoje sou um dos seus maiores defensores. 

 

Pôs tudo em perspectiva?

Uma pessoa não sabe quanto tempo vai andar por cá. Diziam-me 50% disto é a vontade que a pessoa tem de combater o problema. Fui-me abaixo nos tratamentos e devo muito à minha mulher e à minha médica, que me obrigaram a ser internado. Eu deixei de comer, deixei de beber, não tinha força para nada.

 

Estava a desistir?

Tinha desistido. Foram poucos dias, mas eu já não conseguia ver nada. Obrigaram-me a ir para Santa Cruz, onde me puseram a soro e criou-se outra vez uma resistência. Aprendi ali que se não resistimos, não são os medicamentos que vão resolver o problema. É a pessoa que tem de ter resistência. Foi muito complicado, mas consegui ultrapassar.

 

Foi a conselho médico que deixou a liderança da Mota-Engil, em 2013?

Foram conselhos médicos a dizerem­-me uma evidência. Depois da doença, não fiquei a mesma pessoa, fiquei fragilizado. E na Mota-Engil estava a ter uma vida absolutamente louca, passava metade do ano em viagem. Estava a ficar rebentado. Os médicos disseram-me "você é maluco da cabeça, não tem condições para andar nessa vida. Pode fazer uma vida normal, mas a sua vida é anormal." Eu sentia que a Mota-Engil precisava de alguém mais novo, com outra disponibilidade…

 

Ter saído permitiu-lhe voltar à "Quadratura do Círculo"...

É verdade. Quando desisti da vida pública, a coisa que mais me custou abandonar foi a "Quadratura do Círculo". Aquilo, para mim, é bom para matar o vício da vida política.

 

Voltou mais brando?

Sim. Já fui mais combativo. Mas uma coisa era quando eu estava na vida política activa. Não acho que tenha grande sentido um cidadão normal, que não tem actividade pública específica, estar armado em grande líder do que quer que seja. Tenho as minhas opiniões e lá vou procurando lutar por elas.

 

Perdeu o espírito combativo?

Isso eu tenho. Às vezes, tenho de me conter muito na "Quadratura". Só me falta tomar uns comprimidos para me conter. Continuo a ter um espírito combativo e não tenho qualquer dúvida em fazer o que acho que deve ser feito. Vejo coisas na sociedade tão graves que bem me apetece dizer o que não posso dizer porque isso implicaria algo como "então, anda cá". Não me estou a referir à situação actual, mas à sociedade como um todo. Um exemplo: um país a sério não pode pactuar com os níveis de pobreza infantil que há em Portugal. O Governo, neste Orçamento, deu alguma resposta positiva, mas esta é uma causa nacional. O país todo, bem mobilizado, conseguiria diminuir os níveis inacreditáveis de pobreza infantil. Não me vou calar com isto. É um país que não tem respeito por si próprio se deixar continuar esta situação como está.

 

Portugal tem hoje um Presidente da República e um primeiro-ministro capazes de mobilizar as pessoas?

Se uma coisa dessas fosse protagonizada pelo Presidente da República e pelo primeiro-ministro, ganharia uma força imparável. Um grande acontecimento de 2016 foi o Presidente da República. Está a ser um Presidente extraordinário. Eu estou à vontade para falar porque lhe dei pancadaria da grossa durante a vida pública toda. O país precisava disto. Ele está a dar um contributo para que Portugal possa ser um país a sério, de uma forma mais rápida e sustentada.

 

Surpreendeu-o?

Sinceramente, não imaginava que ele fosse exercer o cargo como está a exercer. Eu, que passei quase a vida inteira em confrontos políticos com ele, hoje sou talvez um dos seus maiores defensores públicos. A relação que ele tem, a bem do país, com o primeiro-ministro pode potenciar – deixo a sugestão – que encontrem formas de se mobilizar para o combate à pobreza infantil. Um país que trata as suas crianças de uma forma que lhes dê dignidade para serem cidadãos de corpo inteiro no futuro é um país que está a criar condições para ter futuro.

 

Portugal é hoje um bom país para investir?

Citando o comissário Carlos Moedas, o actual modelo político que governa o país não assustou ninguém na União Europeia. Nunca ninguém me falou de algum perigo… Isso é conversa da treta sem profundidade nenhuma.

 

Aos 62 anos, é um empreendedor?

Sou um pequeno empreendedor. Tenho capitais próprios na Vale da Estrela, mas a maior parte do dinheiro é do banco que acreditou neste projecto.

 

Como tem assistido à situação do sistema financeiro?

O maior problema que temos no país é a sustentabilidade do sistema financeiro. Isso tem mesmo de ser conseguido e quanto mais depressa melhor porque pode pôr em causa todo o futuro. Isso é que é problemático, não é a chamada geringonça. Da sua resolução o mais depressa possível depende que o país se desenvolva no futuro.

 

E na Caixa Geral de Depósitos (CGD)?

A CGD tem de ter uma imagem fortíssima junto da população portuguesa. Depois de tudo o que tem passado, os níveis de saídas de depósitos são relativamente pequenos. É preciso ter uma confiança gigantesca numa instituição para que, depois de tudo o que tem acontecido, continue sólida. Acho que escolheram, neste momento, a pessoa indicada para dirigir a Caixa. Perdeu-se um ano com todas estas confusões que foram muito más para a Caixa, para o país, para o sistema financeiro, mas espero que sejam resolvidas agora.



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