Outros sites Medialivre
Notícias em Destaque

Há um novo fascínio por Napoleão?

Napoleão Bonaparte, um dos maiores conquistadores da história, é uma figura controversa. Para uns, o imperador francês realizou feitos admiráveis. Para outros, tratou-se de um estratega militar sem escrúpulos que reinstaurou a escravatura. Desde há dois anos, altura em que se celebraram os 200 anos da sua morte, que têm existido várias iniciativas e debates em torno de Napoleão e do seu legado para a França. Um dos pontos de partida para essa discussão foi o filme épico “Napoleão”, que recentemente esteve em exibição nos cinemas.
Filipa Lino 05 de Janeiro de 2024 às 14:45

Napoleão Bonaparte, um dos maiores conquistadores da história, é uma figura controversa. Para uns, o imperador francês realizou feitos admiráveis. Para outros, tratou-se de um estratega militar sem escrúpulos que reinstaurou a escravatura. O general não é adorado em França. Mas há uma corrente, ligada sobretudo à extrema-direita, que pretende voltar a pô-lo sob as luzes da ribalta, enquanto símbolo do imperialismo francês. Desde há dois anos, altura em que se celebraram os 200 anos da sua morte, que têm existido várias iniciativas e debates em torno de Napoleão e do seu legado para a França. Um dos pontos de partida para essa discussão foi o filme épico "Napoleão", que recentemente esteve em exibição nos cinemas.


Joaquin Phoenix interpreta o Imperador francês no filme "Napoleão", do realizador Ridley Scott, que chegou às salas de cinema em novembro. A película épica sobre a ascensão e a queda de Napoleão Bonaparte foi o mote para uma discussão sobre o legado do estratega militar.



Ridley Scott sabia que, ao realizar um filme sobre uma figura tão controversa da história como Napoleão, seria inevitavelmente alvo de críticas. Desde logo, por parte dos próprios historiadores, que acusaram a película de ter várias imprecisões e erros históricos. O "biopic" sobre a ascensão e a queda de Napoleão Bonaparte, que tem no papel principal Joaquin Phoenix, também não convenceu a crítica. Mas teve o mérito de fazer os franceses refletirem novamente sobre esta figura marcante da história e sobre o seu legado para o país.

Mas, afinal, como olham os franceses de hoje para a lendária figura de Napoleão Bonaparte? Olivier Bonamici, jornalista francês radicado em Portugal há vários anos, responde que ele é visto como alguém que "faz parte da identidade e da história do país no seu melhor e no seu pior, mas não há orgulho" pelo facto de "na altura os franceses dominarem o mundo", sublinha. No fundo, "existe uma visão bastante equilibrada do Napoleão" em França.

Apesar de tudo, a vida do Imperador, considerado o arquiteto da França moderna, continua a causar "um fascínio" porque "não é uma vida comum". A prova é a quantidade de livros, séries e documentários que continuam a ser produzidos sobre este grande estratega e comandante militar.

Olivier Bonamici considera que "a França, neste momento, está à procura da sua identidade, das suas referências". E "Napoleão é a França no seu esplendor". É por isso que "uma parte dos franceses, sobretudo de extrema-direita, tem saudades da figura do General Charles de Gaulle e do Napoleão". Essas pessoas defendem "o regresso à ordem, à identidade francesa".

A visão da esquerda e da direita

Em 2021, quando passaram os 200 anos da morte do Imperador, abriu-se uma nova discussão em torno do legado de Napoleão para a França. Nessa altura, o Presidente francês, Emmanuel Macron, reconheceu que "Napoleão [era] ogre e águia, Alexandre e Nero…, a alma do mundo e o demónio da Europa". Mas, ainda assim, "é parte de nós".

No seu discurso, Macron recordou a herança que o imperador deixou na construção da maioria das instituições modernas do Estado francês, no sistema jurídico e na educação. Tudo isto sem esconder o seu lado "negro", como a restauração da escravatura nas colónias francesas em 1802, uma "traição" que a Segunda República "retificou".

Macron considerou que se tratava de "uma comemoração esclarecida, olhar a nossa história de frente e como bloco e dizer como nação o que Napoleão diz sobre nós e o que fizemos com ele". Mas o ato foi arriscado. Mesmo na sua família política há quem não olhe com bons olhos para Napoleão.

O jornal Politico noticiou que houve "um debate interno no gabinete de Macron sobre como homenagear Napoleão, enquanto as autoridades procuravam encontrar o equilíbrio certo entre fazer o suficiente, mas não demasiado". O tema era sensível e ainda mexe com os nervos dos franceses.

A retórica de Macron "procurou encarnar um certo centrismo que diz que houve pontos negativos em Napoleão, que a direita moderada reconhece, mas trata-se de uma figura importante da nossa história, um grande líder e também teve alguns aspetos positivos", afirma o historiador Bruno Cardoso Reis, doutorado em War Studies, pelo King’s College.

O facto é que há alguma polarização na sociedade francesa em torno de Napoleão, diz o historiador.

"Ele tem mais simpatias à direita do que à esquerda". Há dois anos, houve críticas entre os seus "fãs" de que o aniversário da sua morte deveria ter sido mais valorizado, tendo em conta o seu legado e a importância que teve para a República francesa, como "as reformas [que implementou], o código de Napoleão [o código civil francês que entrou em vigor em 1804], que de alguma forma consolidou uma herança da revolução francesa".

Por outro lado, mais à esquerda, descrevem-no como "um racista, que não quis abolir a escravatura e que até a restaurou, e como um imperialista que provocou milhões de mortos", o que faz dele "um precursor dos ditadores militares".

Um certo revivalismo em torno desta figura complexa "tem muito que ver com uma nostalgia que existe de uma centralidade francesa no mundo, que deixou de existir já há bastante tempo e que provavelmente não volta", explica. "Muitos em França acham que essa centralidade devia voltar".

Dá como exemplo a forma como o filme de Ridley Scott foi abordado na imprensa. "O Le Figaro deu muito mais destaque ao filme e aproveitou esse pretexto para dizer: até os ingleses dão imensa importância a Napoleão, porque é que nós não damos mais?"

Bruno Cardoso Reis refere, no entanto, que nem toda a esquerda tem uma visão negativa de Napoleão. "O grande historiador da Revolução Francesa, Albert Soboul, era marxista e procurou ter uma visão mais ou menos equilibrada, sendo que continua a ser lido como um historiador clássico".

Não é de excluir que este novo impulso em torno de Napoleão possa "refletir uma viragem mais à direita, mais nacionalista". Isto porque "são sobretudo esses grupos políticos que puxam pela figura de Napoleão e que utilizam este contexto das guerras culturais para dizer que se quer cancelar Napoleão, uma figura central da nossa história".

Napoleão acaba por ser uma referência muito importante para esses setores porque "representa a ideia do líder forte, de um líder salvador que encontra o caos e cria a ordem, que volta a criar a grandeza do país". Uma ideia que fica bem marcada na cena da coroação no filme de Ridley Scott. Napoleão pega na coroa e diz: "Encontrei a coroa de França na sarjeta e coloco-a na minha própria cabeça".

Ser um grande líder ou um tirano, neste caso, são duas faces da mesma moeda. 

Ver comentários
Saber mais Napoleão Bonaparte França Imperador história filme política legado Macron esquerda direita revivalismo extrema direita Ridley Scott Bruno Cardoso Reis Olivier Bonamici
Outras Notícias
Mais notícias Negócios Premium
+ Negócios Premium
Capa do Jornal
Publicidade
C•Studio