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Graça Morais: Custa-me ver o que a nossa Europa está a fazer aos refugiados

Para a pintora Graça Morais, a Europa tem uma resposta muito fraca e muito cobarde perante os refugiados. As suas vivências e os seus olhares estão na exposição Ressonâncias: da voz e dos ecos, na Fundação Champalimaud, como nos conta nesta entrevista.

Miguel Baltazar
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Veste uma gola cheia de cores fortes, quase tão fortes como as cores dos quadros que pinta, ela que também gosta do negro do carvão e do tom sanguíneo das telhas de barro. Era com elas que Graça Morais pintava na aldeia transmontana onde nasceu, no Vieiro, terra de contadores de histórias de homens e de lobisomens e por onde passavam caldeireiros a oferecer os seus préstimos. Gracinha, assim era e é chamada, ficava a ouvir aquela gente diferente que vinha do Sul ou mais do Norte. Daquela terra também partiam muitos homens, alguns iam para África. Como o pai. E ela foi ter com ele. Viveu dois anos numa aldeia moçambicana. Voltou ao Vieiro e as ruas pareceram-lhe mais pequenas. Estudou no Porto, morou em Paris, vive entre Lisboa e Trás-os-Montes. As suas vivências e os seus olhares estão na exposição "Ressonâncias: da voz e dos ecos" na Fundação Champalimaud.


Graça Morais traz sempre consigo um pequeno caderno onde vai escrevinhando pensamentos que depois são transformados em pinturas. Algumas delas estão na exposição "Ressonâncias: da voz e dos ecos", comissariada por Paulo Teixeira Pinto. A mostra, na Fundação Champalimaud até ao dia 25 de Abril, reúne uma centena de obras, parte delas pertencentes ao coleccionador José Pedro Paço d’Arcos. O trabalho da pintora portuguesa, que celebrou 68 anos na semana passada, está também na exposição "Graça Morais, Diários sem Ordem – as imagens e as palavras", no Centro de Arte Contemporânea Graça Morais, em Bragança. A 31 de Maio, a delegação francesa da Fundação Calouste Gulbenkian, em Paris, vai acolher a mostra "Graça Morais. La violence et la grâce". Leitora de jornais, a artista transmontana está atenta aos dias do mundo e vai tirando notas no caderninho. Olha para os seus escritos e diz: sabe, a arte está mesmo muito ligada ao mercado.

 

Estava a dizer-me que arte contemporânea é o triunfo da especulação.

Sim, a arte contemporânea é realmente o triunfo do dinheiro e da especulação em países como Alemanha, Estados Unidos, Inglaterra e Itália. Até determinada altura, a grande especulação fazia-se com a chamada arte antiga, hoje faz-se com alguns artistas contemporâneos que são promovidos pelos grandes museus e pelas grandes galerias e que atraem coleccionadores aventureiros, movidos pelo novo e pelo risco. Há obras de artistas vivos vendidas a preços astronómicos, e tudo funciona quase como um jogo da bolsa. Há artistas que se aguentam nesse jogo e conseguem permanecer com qualidade, outros que não. Na ânsia de estarem em todos os lugares onde a arte é transaccionada, por vezes, perdem qualidade e não se aguentam.

 

A arte é hoje mais condicionada pelo mercado?

Não no nosso país, onde o mercado é muito frágil, mas sim em lugares onde o dinheiro tem um peso muito grande. Em Portugal, o dinheiro desaparece. Nós, artistas, sentimos que há pouco dinheiro. Não existem grandes coleccionadores e o Ministério mais pobre é o da Cultura. Sinto sobretudo que não há dinheiro para ajudar um artista a internacionalizar-se e a valorizar-se. Ou existe para poucos. 

 

E a Graça Morais faz parte desses poucos?

Não, nunca fiz e não faço parte. Até hoje, o Ministério da Cultura ou o Governo, este e outros, nunca me organizaram uma exposição grande, até hoje não tive uma exposição antológica, não expus em espaços como o CCB, por exemplo, em espaços que pertencem ao Estado e, mesmo em termos de aquisições, o último quadro meu adquirido pelo Estado foi em 1990.

Estou sempre à espera que os ministros se lembrem que eu existo, acho que é preciso mostrar a minha obra ao país. Até hoje, não tive uma exposição antológica.  

 

Mas sente falta de reconhecimento institucional? Até tem um centro com o seu nome, o Centro de Arte Contemporânea Graça Morais, em Bragança.

Isso tem que ver com uma autarquia. Quando falo em falta de reconhecimento, refiro-me ao Governo. Sei que há ministros que me admiram muito, mas sinto que há pouca acção para me recompensar daquilo que realmente eu significo para a arte portuguesa. Uma vez, a então ministra da Cultura Isabel Pires de Lima perguntou-me: "Graça, mas o Estado nunca fez uma grande exposição sua? Não? Então eu vou fazer." Só que, entretanto, a ministra saiu antes do tempo… Acho que estou sempre à espera que os ministros também se lembrem que eu existo, acho que é preciso mostrar a minha obra ao país. Mas não gosto de me queixar, até porque não me sinto vítima, só gostaria muito, realmente, que se pudesse organizar uma grande exposição com a minha obra. Ainda não aconteceu, mas vai acontecer. Nós, com a idade, vamos ganhando certas benesses...

 

E porque é tão importante mostrar a sua obra ao país?

Porque é uma obra de grande qualidade, porque é uma obra de uma mulher que tem lutado toda a vida pela qualidade, pela diferença e porque, ao mesmo tempo, é uma obra que tem muito que ver com a identidade de uma pessoa, com a sua história e com a História deste país.

 

De alguma forma, a obra da Graça Morais reflecte a identidade portuguesa.

As pessoas dizem-me isso, mas eu não pinto só o país. A minha pintura foi sempre, sobretudo, um olhar sobre a memória da minha própria história. Mas é também um olhar sobre Portugal e uma reflexão sobre aquilo que se passa no mundo. Acho que só os tolos é que não olham à sua volta e não reintegram uma realidade na sua obra. O acto artístico é sempre um acto de reflexão. Gosto imenso de desenhar motivos da natureza, podem ser flores, podem ser ramos de oliveira, podem ser ervas e, com esses desenhos, posso estar a fazer uma homenagem a essa natureza. Nada é inocente.

 

Quais são hoje as grandes preocupações retratadas por si?

Vivemos tempos de uma grande instabilidade. Não são os tempos dos anos 30 e 40, quando a nossa Europa sofreu aquela guerra horrível, mas são tempos de angústia e de medo. Tenho um diário onde vou registando esses pensamentos e muitas das minhas obras partem desse diário. Recentemente, nos tempos em que o nosso país foi ocupado pela troika, vivemos uma tristeza colectiva muito grande, foram tempos de apreensão e de grandes dramas pessoais. Neste momento, acho que estamos a viver um tempo, não digo bom, mas de esperança.

 

Mas tem obras de 2016 com nomes como Raiva, Horror…

Essas obras tinham que ver com a sucessão de notícias sobre crimes contra as mulheres. Preocupa-me que haja pessoas à minha volta num grande sofrimento e a forma que encontro de ser solidária com elas é trazê-las para a minha pintura. Através da minha comoção, eu pinto-as. Tenho a certeza de que muitos destes dramas familiares têm que ver, de certa forma, com a grande emancipação da mulher, com a grande independência, com a grande liberdade que a mulher ganhou.

 

Numa entrevista ao Expresso, o psiquiatra Coimbra de Matos dizia: "Portugal tem uma coisa particular na sua História: os homens saíram. Foram para as guerras, para o mar, para as conquistas. E os filhos foram mais educados pelas mães, ficaram um bocado meninos das mamãs." É assim?

Tal deveria provocar sentimentos de grande respeito pelas mulheres e, por isso, acho que os homens que violentaram as mulheres não podem ser meninos da mamã. Mas, de uma forma geral, há uma certa infantilização. As mulheres são muito poderosas, acho até que o grande poder das mulheres é a maternidade. E os homens sabem disso, sabem que as mulheres têm sempre uma grande ligação com os filhos, os filhos saíram do nosso corpo e isso é uma força muito grande. Talvez haja uma relação de ciúme por parte de alguns homens face à força das mulheres. Nasci numa região (Trás-os-Montes) de onde os homens partiram para o Brasil, para África e depois para a Europa, de onde, muitas vezes, não voltavam ou formavam outras famílias. Presenciei uma vida de grande heroísmo de muitas mulheres que ficaram viúvas ou que nunca mais souberam nada dos pais dos filhos e foi delas que resultou a minha série de pinturas "As Escolhidas".


 

Pintava as mulheres como heroínas e sofredoras.

Eu não as pintava como sofredoras, isso estava no rosto delas. O rosto é o espelho dos sentimentos. As mulheres que pintei não eram mulheres novas, eram mulheres já com uma existência, e, por isso, a passagem do tempo estava no seu rosto, eu sentia uma vida naqueles rostos, não sei explicar bem. Hoje as mulheres continuam a trabalhar muito, a cuidar dos filhos, as mulheres são como as  formigas, nunca param. Até acho que na cidade as mulheres têm uma vida mais difícil do que na aldeia dos nossos dias. Falo das jovens que trabalham durante o dia e que à noite vão tratar dos filhos, elas têm vidas muito difíceis. Elas, mulheres, e eles, homens. Apesar de tudo, o homem mudou e hoje existe um maior companheirismo entre os casais. Quando estou na aldeia, observo o homem e a mulher quando vêm juntos no tractor, elas de calças e com um ar muito independente, é engraçado.

 

Mas as mulheres continuam sub-representadas em cargos de direcção e administração. É a favor da imposição de quotas, como se debate hoje em torno das empresas cotadas?

Seria bom sinal se não existissem quotas, seria bom que as mulheres fossem aceites e entrassem nos cargos pelas suas qualidades e não por serem mulheres. Acho que as coisas estão a mudar. Aqui, na Fundação Champalimaud, a presidente é uma mulher (Leonor Beleza) e a maior parte das cientistas da casa são mulheres. Também a próxima presidente da Fundação Gulbenkian será uma mulher (Isabel Mota), que é também uma grande mulher. As mulheres estão a ocupar cargos de topo mas têm de ser muito, muito boas para ocupar esses lugares, enquanto, por razões que desconheço, vemos homens de uma enorme mediocridade em lugares de destaque.

 

Sente essa desigualdade no mundo artístico?

Sim. É verdade que, em Portugal, duas das artistas mais valorizadas, Vieira da Silva e Paula Rego, são mulheres. Mas, em termos internacionais, os homens são mais valorizados do que as mulheres, são eles que lideram as tabelas de valores no mercado da arte.

 

Quando estudou Belas-Artes, no Porto, sentiu então alguma discriminação por ser mulher?

Para mim foi complicado. A minha família nem sequer queria que eu tirasse o curso, tinha medo de que eu passasse fome porque, realmente, ser artista era uma profissão de fome.

 

Já não é?

Não é uma profissão de fome, mas é uma profissão de muitas dificuldades, sobretudo num país onde o mercado da arte é frágil... Não queriam que eu estudasse Belas-Artes, mas fui teimosa e tirei o curso. Até havia muitas mulheres que estudavam Pintura e depois iam dar aulas, e eu também dei, caso contrário, realmente teria passado mal. Quando acabei o curso, ninguém queria saber da minha arte… Estou agora a lembrar-me que, um dia, em 1970, o Fernando Peres, um crítico de arte muito respeitado, foi à escola escolher três artistas para exporem na Galeria Zen (mais tarde, chamar-se-ia Galeria 111), que pertencia ao Manuel Brito. Eu fui uma das escolhidas e fiquei muito contente porque os meus quadros foram expostos entre a Lourdes Castro e a Vieira da Silva. Eu, que era uma miúda de vinte e poucos anos, tomei aquilo como um bom sinal, tinha ali duas grandes "madrinhas". Mas a minha primeira exposição foi em Guimarães, onde dei aulas. Foi no Museu de Alberto Sampaio, em Janeiro de 1974. Eu estava grávida e tinha uma barriguinha grande, a minha filha nasceu no dia 19 de Abril, uns dias antes do 25 de Abril.

 

Como foi então o seu 25 de Abril?

Foi em casa com a bebé, cheia de vontade de ir para a rua, mas sem poder ir, não podia deixar aquele ser acabado de nascer. Mas no 1.º de Maio desfilei com ela numa caminha cheia de folhos, toda a gente fazia festas àquela bebé, como se ela fosse um símbolo de algum renascimento.

 

As mulheres têm de ser muito boas para ocupar lugares de topo, mas vemos homens de uma enorme mediocridade em posições de destaque.

 

E depois foi viver para Paris.

Paris veio em 1977, até 1979, e levei a minha filha. Tinha uma bolsa da Gulbenkian e, quando acabou, tive de regressar. Se não tivesse nenhum filho, teria ficado, lá haveria de me arranjar. Mas não podia arriscar que a minha filha passasse mal por causa das minhas aventuras e, por isso, voltei para Portugal, fui dar aulas em Lisboa e ia conciliando com o trabalho de ateliê. Mas, a dada altura, senti que teria de ir para a aldeia onde tinha nascido, não sei bem porquê. São apelos. Pedi um subsídio à Fundação Calouste Gulbenkian e fui fazer aquilo a que hoje se chama de residência artística. Precisava de conhecer melhor a terra onde tinha nascido e onde, nos anos 80, se sentia a força da vinda dos retornados e de alguns emigrantes. Queria ver como estava essa aldeia isolada de Trás-os­-Montes. Lembro-me do Pedro Tamen (então administrador da Fundação Gulbenkian) a rir e a dizer: é a primeira vez que um pintor me pede um subsídio para ir para uma aldeia. O subsídio só dava para pagar o material, também dei aulas em Vila Flor.

 

E como foi esse reencontro com a terra?

Foi um reencontro muito forte, às vezes doloroso, difícil. Viver uma realidade rural não é leve. Viver as histórias das suas pessoas também não o é, eram histórias muito duras. Ao mesmo tempo, durante esse período, engravidei, o bebé nasceu e morreu, por isso tive uma situação muito dramática na minha vida e estive muito doente. Fiquei lá dois anos, entre o trabalho e o choque com uma realidade que tinha muito que ver com a minha memória e com o reencontro das pessoas da família. Mas esse regressar às origens foi de tal forma importante que deu origem a obras que considero fundamentais na minha pintura. Foi um grande crescimento.

 

Como é que, nascendo e vivendo numa aldeia isolada de Trás-os-Montes, decide ser pintora? 

Eu vivia com essa grande interrogação e, ao mesmo tempo, com as lembranças muito felizes de uma infância vivida numa família muito grande. Éramos seis irmãos e o meu avô materno, que era um lavrador com oito filhos, tinha sempre a casa cheia de gente, então eu cresci rodeada por tias, tios, primos e muitos trabalhadores. Nesses tempos, passavam pelas aldeias os caldeireiros, os ciganos, as pessoas que andavam de terra em terra a pedir esmola ou a oferecer os seus préstimos. O meu avô dava-lhes guarida e eu tinha uma enorme curiosidade de ver essas pessoas, elas falavam de uma maneira diferente, umas vinham do Sul, outras vinham do Douro, eu gostava de estar no meio delas, sempre gostei de estar no meio dos operários. Quando vi "Os Comedores de Batatas", do Van Gogh, fiquei muito impressionada, fez-me lembrar a altura das cegadas e de outras colheitas, em que, nas mesas das varandas, havia muitos obreiros a comer em grandes pratos e com garfos de ferro. Adorava ficar ali a ouvir o que diziam. Hoje consigo perceber que a minha grande força como mulher e como ser humano nasceu dessa relação com pessoas muito simples.

 

E com pessoas que contavam histórias de bruxas e lobisomens à lareira, numa aldeia sem luz e num cenário que hoje parece surrealista, quase mágico.

E era. Não havia luz eléctrica, a aldeia era escura, escura, escura e, à noite, quando eu ia à janela, ouvia o barulho dos socos de madeira a bater nas pedras, havia muita gente a calçar socos, e via a luminosidade dos lampiões, alguns a petróleo, outros a azeite, à volta das pessoas, e isso era mágico, isso era muito mágico. Era fascinante e, ao mesmo tempo, eu tinha um ligeiro medo do escuro… Hoje, quando vou para o Norte, não gosto de viajar de noite porque a escuridão mete-me medo.

 

Esse mundo escuro da aldeia de Trás-os­-Montes contrastou com a sua vida em Moçambique?

Sim, estive em África entre os sete e os nove anos. O meu pai foi para Moçambique e depois a minha mãe pegou nas crianças e foi ter com o marido. Fomos para uma aldeia que, na altura, se chamava Guijá e depois passou a chamar-se Trigo de Morais, que era o nome do nosso primo. Ele foi o grande empreendedor daqueles aldeamentos e até dizia ao meu pai: "Ó Jaiminho, tu tens terras, isto é para gente que não tem terras, para pessoas que não têm nada e que vêm para aqui trabalhar." Mas o meu pai queria sair da aldeia, gostava de conhecer o mundo, era um homem muito boémio, por isso foi para África e por lá ficou muito mais tempo do que nós. Mas era um homem bom.


 

É uma mulher de memórias. Que memórias fortes guarda da aldeia africana?

Lembro-me de que íamos visitar uns amigos dos meus pais que tinham umas chambas, atravessávamos o mato de noite e eu ficava sempre cheia de medo, tinha medo de encontrar leões e elefantes, contavam-se histórias de pessoas que viviam isoladas e que eram devoradas pelos leões… Naqueles dois anos, vivi um período de descobertas. Li muita banda desenhada do Mandrake, tive contacto com o cinema, vi filmes de "cowboys" pela primeira vez, conheci a chiclete e as compotas de África do Sul. Era muito bem tratada. Na escola, tinha colegas, rapazes e raparigas, que eram muito grandes e muito meigos, passavam à porta da minha casa a cantar e a dançar e diziam: Gracinhá, Gracinhá. Recordo-me de que às vezes trocava o meu lanche com o deles. Eu levava umas compotas com pão e trocava pelas espigas de milho cozidas em água da chuva, eram tão saborosas... Era tudo muito fascinante. Os meus pais eram muito católicos e eu frequentava a escola da Missão, com as freiras de São Vicente de Paulo, que têm aqueles chapéus muito bonitos, armados, eu achava aquilo de uma enorme beleza. Como eu era uma miúda viva mas muito bem comportada, levavam-me para o mato quando iam baptizar as mulheres muito velhas. Foi o meu primeiro encontro com pessoas velhas, muito velhas, pareciam árvores secas, com peitos muito secos que caíam até à cinta, e com aquelas capulanas de umas cores muito bonitas.

 

E foi em Moçambique que recebeu a sua primeira caixa de aguarelas.

As freiras diziam: a Gracinha tem muito jeito para desenhar – eu era sempre a Gracinha, ainda hoje muitas pessoas me tratam por Gracinha, não sei porquê –, eu rabiscava muito e o meu pai ofereceu-me essa caixinha, da qual falo sempre. É que a alegria foi tanta... Na minha aldeia, muitas vezes, pintava com bocados de telhas. Havia telhas partidas no chão, nós pegávamos nelas e desenhávamos em cima de uma lousa e saía aquela cor avermelhada. E tive sempre lápis de cor. Gosto muito de cores, mas também gosto muito do preto e branco, gosto muito do carvão, mais duro.

 

Como foi regressar à aldeia de Trás-os-Montes?

Lembro-me de achar tudo muito pequeno, achava as casas pequenas, achava as ruas pequenas. E achava as pessoas mais fechadas. Quando estive em Cabo Verde, em 1988, voltei a encontrar-me com uma dimensão da vida de grande alegria. Mesmo as pessoas que passavam mal, que eram pobres, que não tinham quase nada, não eram pessoas torturadas e tristes.

 

Como nós somos?

Como nós somos. Não sei se é uma fatalidade, não sei se o africano não se preocupa tanto com a vida ou se se preocupa de uma outra maneira, mas tem uma sabedoria de vida que é mais solta.

 

Há pouco, dizia que os retornados trouxeram uma outra vida a Portugal.

Eles tiveram mesmo de se virar. Deve ser muito duro deixar para trás toda uma vida e ficar sem nada. Aquilo que se passa com os refugiados é das situações mais dramáticas que se pode viver. A pessoa perde os bens pelos quais lutou durante toda uma vida, para ter algum suporte e dignidade, e perde também um bocado da sua identidade e do seu chão. Custa-me ver o que a nossa Europa está a fazer aos refugiados, que vêm de países em guerra ou de países onde há fome ou onde se pratica um verdadeiro genocídio. A Europa tem uma resposta muito fraca e muito cobarde perante esses seres humanos. 

 

O acto artístico é sempre um acto de reflexão. Nada é inocente. Só os tolos é que não olham à sua volta. 

 

Em algumas entrevistas, a Graça disse que quer lutar contra a indiferença, que não quer ser cúmplice na sombra. Nós, cidadãos, vivemos nessa indiferença? Participamos pouco? 

Participamos pouco porque, muitas vezes, quando queremos participar não somos ouvidos. O dia-a-dia pode ser muito violento. Como artista, sinto muitas vezes que as forças se combinam para lutar contra um estado de criação, contra um estado de pensamento e contra um estado de reflexão, porque o dia-a-dia é, realmente, duro. Somos triturados por pequenas coisas e sentimo-nos completamente desprotegidos, sentimos que, como cidadãos, a nossa voz não chega a lado nenhum.

 

Quem nos governa não escuta? Foi apoiante de Mário Soares diversas vezes. Vota mais nos homens do que nos partidos?

Só pontualmente tomava partido político. Apoiei mais as pessoas que admirava. Apoiei sempre o Mário Soares nas presidenciais. Também apoiei António Guterres. Ultimamente, não tenho apoiado ninguém.

 

E "foge" para a aldeia sempre que pode.

Eu gosto é de estar na aldeia. Vivo em duas aldeias, no Vieiro e Freixiel. Vieiro é a aldeia onde nasci e a terra da minha família materna, Freixiel é a aldeia da minha família paterna, dos Morais, e é onde tenho a casa com o ateliê. Estas aldeias estão a ser despovoadas, sobretudo depois da morte dos mais velhos e, neste Janeiro, morreram muitas pessoas, pela idade e pelo frio. É uma coisa muito triste, os velhos vão morrendo e os mais novos não têm modo de viver bem. Na região onde vivo, há um retorno pontual de jovens agricultores e os campos até estão trabalhados. É algo bonito de ver, há imensas vinhas, há muitos olivais, mas não há crianças, é muito chocante andar pela aldeia e não encontrar uma criança, sente-se falta daquelas brincadeiras, das gargalhadas e até do choro… Mas gosto imenso de viver na aldeia porque na aldeia não tenho compromissos, e eu gosto de viver sem compromissos, vou cada vez menos a eventos sociais, cansa-me a superficialidade dos convívios, gosto de viver só com os amigos e com a família. E, na aldeia, os horários também são muito conformes às estações do ano, no Inverno deito-me mais cedo, no Verão deito-me mais tarde.

 

A maior parte das pessoas não diz o que pensa, ou por pudor ou por desconhecimento. Ter alguém que nos fala com verdade é uma grande sorte. 

 

Já não se contam é tantas histórias.

Tem razão. Não há escuridão, mas as pessoas estão muito isoladas nas suas casas a ver televisão ou agarradas à internet. Essa falta de encontro é terrível. Vivemos melhor do que há 50 anos, mas as pessoas tornaram-se mais solitárias. É isso que acontece também numa cidade como Lisboa, onde, apesar das euforias, dos megaconcertos e das festas, há cada vez mais solidão. O facto de as pessoas visitarem cada vez mais exposições pode ter que ver com a necessidade de procurarem uma dimensão mais espiritual, até mais misteriosa, para a vida. Acho que as pessoas encontram, nessa visita aos museus, uma dimensão que antes encontravam nas igrejas, a dimensão do sagrado, essa dimensão que todos precisamos porque somos mais do que carne, somos espírito. Precisamos do encontro com a criação e alguém que vê uma manifestação de arte também começa a criar. Eu preciso muito desse encontro, estou sempre atenta a outras expressões artísticas, tenho uma enorme curiosidade e procuro recuperar aquilo que durante anos não aprendi. Tenho a sorte de ser casada com um homem muito culto, tenho aprendido muito com ele.

 

É casada com o músico Pedro Caldeira Cabral.

Estou casada com o Pedro há 26 anos e devo-lhe muito. Ao fim destes anos todos, continuamos a ter conversas infindáveis, temos imensa curiosidade em falar sobre coisas simples ou complicadas. É uma sorte ter um companheiro com quem podemos ter um diálogo que tem que ver com as nossas reacções mais íntimas e, ao mesmo tempo, com a história do mundo e da arte. O meu trabalho implica estar horas e horas sozinha a fazer a minha pintura e ter alguém que, de forma muito sincera, nos diz aquilo que pensa é um privilégio. A maior parte das pessoas não diz o que pensa, ou por pudor ou por desconhecimento. A minha filha também é uma grande observadora do meu trabalho. Muitas vezes, quando acabo de pintar, fotografo o trabalho e envio a imagem aos dois, à minha filha e ao meu marido. Dou-lhes muita atenção. Não obedeço, mas dou-lhes muita atenção, eles dizem a verdade. Ter alguém que nos fala com verdade é, realmente, uma grande sorte. 



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