O Conselho de Estado da China cedeu, e pode estar em curso o fim da política "covid zero" no país. Esta quarta-feira foi levantada a obrigatoriedade de apresentar um teste negativo para entrar em locais públicos, exceto em escolas, hospitais e lares de idosos. Os casos positivos à covid-19 já não têm de ficar isolados em edifícios de quarentena, podendo agora fazer o isolamento em casa, e as escolas onde não existem surtos podem voltar a ter aulas presenciais. Também os bloqueios vão passar a ser limitados a andares ou edifícios onde são detetados casos positivos e não a bairros e distritos.
É a resposta aos protestos por todo o país contra as fortes restrições impostas pelo executivo de Xi Jinping para "estancar" a covid-19. A ira dos chineses já estava acesa com as repercussões económicas e sociais da política "covid zero" e ganhou ainda mais força, com alguns casos dramáticos, como um incêndio num prédio na cidade de Urumqi, a capital da região de Xinjiang, onde morreram e ficaram feridos vários moradores. Os habitantes locais acusaram o governo de ter dificultado o socorro por causa das medidas contra a covid-19.
Agora, com o Mundial de Futebol no Qatar, foi lançada mais lenha na fogueira. Este desporto é um dos fenómenos da globalização, que emociona multidões em todos os continentes. Também na China há milhões de fãs que, por causa da pandemia, tiveram de assistir aos jogos através da televisão, nas suas casas.
Ao verem as bancadas dos estádios cheias de adeptos sem máscaras, "tiveram um choque de realidade" sobre o que se estava a passar no resto do mundo, e isso impulsionou o descontentamento.
Num país que censura e filtra tudo, "o futebol é das poucas coisas que são mostradas à população com regularidade, porque não é considerado algo ‘sensível’. É até encarado com algo ‘inofensivo’ politicamente e benéfico para o próprio sistema", explica Jorge Tavares da Silva, analista de assuntos chineses. Por isso, os jogos eram transmitidos em tempo real.
Ironicamente, desta vez, o futebol não foi assim tão "inofensivo" e veio dar mais argumentos à população para protestar. Milhares de pessoas, sobretudo jovens, foram para a rua gritar palavras de ordem e segurar folhas brancas como forma de protesto. Alguns exigiram a saída de Xi Jinping do poder, pondo em causa a estratégia sanitária que foi destacada pelo Presidente como sendo um sucesso do seu sistema político, comparativamente a países como os EUA, onde foi registado o maior número de óbitos desde o início da pandemia.
Os chineses, sobretudo os mais jovens, "foram confrontados com uma realidade desfasada do discurso" oficial, diz o professor da Universidade de Aveiro. O académico recorda que no XX Congresso do PCC, em outubro, "havia muita expectativa de que as restrições pudessem começar a abrandar", mas isso não se verificou e provocou um efeito de desgaste, de saturação na população em relação a estas medidas tão pesadas". Os chineses estão a viver neste contexto fortemente restritivo há quase três anos e a pagar um preço económico elevado.
Dados oficiais divulgados esta semana revelaram que, em novembro, as exportações caíram 8,7% face ao mesmo mês do ano passado. E as previsões de várias entidades internacionais apontam para um crescimento do PIB este ano na ordem dos 3%, muito abaixo da previsão do governo chinês, que apontava para um crescimento económico de 5,5%.
Será a conjugação do mau desempenho da economia com os protestos que está a pressionar o regime a aliviar as restrições, numa altura em que o país está a registar uma forte vaga de infeções, com uma média de 30 mil casos por dia. Não seria esta a melhor altura, em termos sanitários, para aliviar as medidas.
Protestos espontâneos ou organizados?
As manifestações na rua não são uma novidade na China. "Desde os anos 1990 houve várias, por razões locais, que se prendiam com motivos ambientalistas, com casos de corrupção ou com motivos étnicos - etnias que por alguma razão se sentiam injustiçadas. Mas eram protestos dirigidos à administração local. Nunca punham o líder nem o partido em causa." Na verdade, não aconteceram muito na época de Xi Jinping, "porque a repressão aumentou".
A internet tem sido, no entanto, um espaço dinâmico de protesto para os jovens, que usam as redes sociais para mostrar o seu descontentamento, que se foca também nas razões económicas. Na China, o desemprego dos jovens entre os 16 e os 24 anos está historicamente alto, a rondar os 20%. Essa contestação "nunca passou muito da esfera digital. Só que agora estamos a assistir a uma saída para as ruas. Os jovens estão a dizer que já estão fartos de contestar de forma digital e muitos sentem-se confortáveis nesta nova situação pois perceberam que não estavam sozinhos. Isto abre precedentes", considera.