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Como Portugal quis financiar Almaraz

A central nuclear espanhola de Almaraz está a perturbar as relações diplomáticas entre Portugal e Espanha. Mas uma pesquisa às súmulas do Conselho de Ministros de 1970 revela que o Governo de Marcello Caetano equacionou entrar no capital daquela infra-estrutura, quando ela ainda estava apenas no papel.

A central nuclear de Almaraz está a cerca de 100 km da fronteira com Portugal. Começou a ser construída em 1972. João Cortesão
21 de Abril de 2017 às 12:00
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Naquele dia 12 de Maio de 1970, o Executivo liderado por Marcello Caetano reuniu-se às 16 horas. Nessa sessão, o Governo toma conhecimento das conclusões do relatório de um grupo de trabalho constituído pelo Secretariado Técnico da Presidência, no âmbito da revisão do III Plano de Fomento. Os técnicos tinham feito uma "radiografia" à política energética nacional. Uma ferramenta essencial para definir o caminho a seguir dali para a frente para colmatar as necessidades energéticas do país. O relatório salientava três aspectos que deviam ser tidos em conta: a "grande e progressivamente agravada dependência da Metrópole em relação ao exterior" no abastecimento energético, a "influência dos encargos fiscais e das estruturas de preços na distorção dos consumos relativamente aos custos de produção das diferentes formas de energia" e, por fim, a "necessidade de maximizar os efeitos que os investimentos no sector da energia poderiam introduzir na actividade económica, nomeadamente através da indústria produtora de equipamentos".

Quando tomou a palavra, o então secretário de Estado da Indústria, Rogério Martins, alertou que "os recursos metropolitanos" só cobriam "cerca de um terço das necessidades da Metrópole" e previa que, em 1978, essa cobertura descesse "para cerca de um quarto". Assim sendo, referia, só havia dois caminhos a seguir. Ou se aproveitavam os recursos de urânio do país ou se fazia prospecção de petróleo no continente e na sua plataforma. Se a opção escolhida fosse a primeira, sublinhava que, apesar de já haver técnicos especializados no país, era ainda "escasso o domínio da tecnologia" nuclear. Por isso, tendo em conta que, "por razões de segurança de serviço", seria necessário reforçar a interligação com Espanha, sugeria que "poderia aproveitar-se o ensejo para negociar uma participação portuguesa na construção e na propriedade de uma central nuclear que vai ser construída na região de Cáceres". Falava de Almaraz. Nessa época, a central nuclear espanhola ainda estava só no papel, começou a ser construída dois anos depois. A medida, dizia Rogério Martins, "viria a constituir uma alternativa, como garantia de potência a dois grupos térmicos da Central do Carregado, a entrar em serviço cerca de 1975". Mas o assunto não era consensual e gerou discussão entre os membros do Executivo.


Um dos opositores foi Rui Sanches, então ministro das Obras Públicas e Comunicações. Rejeitou a proposta alegando que "a construção, já decidida, de um aproveitamento de fins múltiplos, no rio Guadiana constituirá, para a interligação com Espanha, uma alternativa tão válida como a central nuclear referida". O secretário de Estado da Indústria concordou, mas argumentou que essa alternativa "não proporciona as possibilidades de aperfeiçoamento e treino pessoal português no projecto, construção e condução de centrais nucleares, o que só é praticável eficazmente mediante participação financeira no empreendimento". Essa experiência, sublinhou, seria uma mais-valia para quando, dentro de alguns anos, fosse "técnica e economicamente viável integrar uma central nuclear no sistema electroprodutor português", o que se previa apenas em 1980. Rogério Martins garantia que as experiências estrangeiras comprovavam a competitividade das centrais nucleares e apontava o facto de as reservas de urânio nacionais (no continente e no Ultramar), tal como as de petróleo, serem de "evidente valor estratégico para o panorama de abastecimento energético da Metrópole", tendo em conta que se previa a entrada em exploração industrial dos reactores rápidos no espaço de dez anos. Nesse dia, o Conselho de Ministros decidiu pedir a um grupo de trabalho interdepartamental, a constituir na Secretaria de Estado da Indústria, a elaboração do programa de novos centros produtores de energia a instalar no continente. Dez dias depois, Marcello Caetano parte para uma visita oficial a Espanha.

A viagem a Espanha

A imprensa portuguesa e espanhola deu grande destaque à visita do chefe de Estado português a Madrid. O Diário de Lisboa fala na "possibilidade de se criar uma espécie de 'Mercado Comum Peninsular'". Marcello Caetano esteve reunido com Franco. Os ministros da Economia e dos Negócios Estrangeiros dos dois países também conversaram. Mas as declarações aos jornalistas no final da viagem dizem pouco sobre o que foi discutido.

Nesta altura, João Cravinho era o director-geral do Planeamento da Secretaria de Estado da Indústria, trabalhava directamente com Rogério Martins, o secretário de Estado da Indústria. "Havia contactos muito frequentes e intensos com o Governo espanhol", recorda, "com vista a coordenar a planificação da indústria pesada". E "López-Rodó [ministro dos Negócios Estrangeiros de Franco] era o grande patrocinador disso, dada a amizade pessoal que tinha com Marcello Caetano". Tratava-se do "Papa da economia espanhola", explica. No fundo, "estávamos a negociar uma coordenação de investimentos que, naturalmente, nos seria favorável".

Rui Sérgio era nessa altura um técnico superior da Junta de Energia Nuclear (JEN), uma entidade com fins científicos, que dependia directamente do presidente do Conselho de Ministros, criada em 1954. O interesse pelo aproveitamento da energia nuclear já vinha dessa década. Nos anos 1950, Portugal era o terceiro maior produtor de concentrados de urânio do mundo. Em 1961, foi inaugurado o reactor nuclear de investigação da JEN em Sacavém - o Laboratório de Física e Energia Nucleares - que hoje está sob a alçada do Instituto Superior Técnico. Muitos dos seus técnicos tinham sido treinados no estrangeiro.

Este engenheiro lembra-se de ouvir falar na central de Almaraz, mas nunca imaginou que o assunto tivesse chegado ao Conselho de Ministros. É que, explica, já tinha havido uma má experiência antes. "Quando entrei para a JEN, em meados de 1968, falava-se muito das negociações sobre uma central nuclear conjunta no rio Guadiana", recorda. Rui Sérgio diz que as negociações envolveram as empresas Termoeléctrica Portuguesa e Sevilhanas Electricidade e "avançaram bastante", com grupos de trabalho constituídos e estudos feitos. "As pessoas ficaram bastante marcadas porque não entenderam porque é que, depois de tanto trabalho, deixou de se falar nisso". Para ele, o que correu mal foi uma participação desigual das empresas nacionais e espanholas na construção da central nuclear. Isso, conclui, não terá agradado ao Governo português.


Em Maio de 1970, o secretário de Estado da Indústria, Rogério Martins, sugeriu em Conselho de Ministros que Portugal negociasse uma participação na construção e propriedade da central nuclear que iria ser construída na região de Cáceres.


Na reunião do Conselho de Ministros seguinte, a 8 de Junho de 1970, Marcello Caetano fala numa "bem-sucedida" visita a Madrid. O secretário de Estado da Indústria, Rogério Martins, comunica ao Governo que no dia seguinte partirá para Espanha uma delegação portuguesa de seis membros, chefiada pelo director-geral dos Combustíveis, com representantes da Direcção-geral dos Serviços Eléctricos, da Companhia Portuguesa de Electricidade e da Junta de Energia Nuclear. A delegação tem como missão "negociar a participação portuguesa na central nuclear espanhola de Almaraz". O assunto só volta a ser discutido pelo Executivo já no final do ano, a 4 de Dezembro de 1970. Nessa reunião do Conselho de Ministros, o secretário de Estado de Estado da Indústria apresenta o relatório sobre os novos centros produtores de energia, elaborado pelo grupo de trabalho interdepartamental constituído sete meses antes.

A equipa técnica reforça a ideia de que "terá de optar-se entre a continuação da produção clássica a 'fuel', em nova central, e a interligação na rede de um primeiro grupo nuclear". O grupo de trabalho, apesar de não estar ainda reunida toda a informação, visto que decorriam estudos pela Comissão de Combustíveis e Reactores Nucleares Industriais, "considera em princípio vantajoso optar pela solução nuclear". A justificação é a "independência possível relativamente ao combustível, cuja matéria-prima existe em território nacional". O ministro das Finanças e da Economia, João Dias Rosas, defende que é necessário ter os estudos que faltam na mão para tomar a decisão. A partir daí, a ideia de entrar no capital da central nuclear de Almaraz morre.

"Não havia consenso dentro do Executivo", recorda João Cravinho. E, além disso, "havia uma posição antinuclear bastante forte" na sociedade já nessa altura, em que se registou uma grande expansão do nuclear em países como Espanha, França e Alemanha. Por outro lado, refere Rui Sérgio, havia ainda a memória fresca do que se tinha passado na central do Guadiana. "O que estava a despertar interesse nessa altura era desenvolver a interligação da rede de transportes com Espanha. Estavam em estudo as linhas de muito alta tensão", refere. Em Almaraz, "era difícil negociar uma coisa a meias, a interligação [das redes de transporte] era mais fácil", defende. Agora, 47 anos depois, Portugal e Espanha andam às avessas por causa de uma central nuclear que, afinal, podia ter sido dos dois países.


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