Outros sites Medialivre
Notícias em Destaque
Notícia

Bernardo Afonso: Há pessoas que cedem aos 23 anos e isso deixa-me triste

Tem 23 anos e muitas questões. Algumas delas estão em “Still Alive for the Growth”, o último álbum dos Lotus Fever, a banda portuguesa onde Bernardo Afonso assume o papel de teclista, de produtor e de perguntador.

Miguel Baltazar
27 de Janeiro de 2017 às 14:00
  • ...
Ele interroga muito. Diogo Teixeira de Abreu, Manuel Siqueira e Pedro Zuzarte são os outros elementos do quarteto musical que, em 2014, lançou "Search For Meaning", apontado como um dos melhores álbuns nacionais desse ano. O novo disco dos Lotus Fever é menos introspectivo, mais político, com títulos orwellianos como "Animal Farm". Neto e sobrinho de fadistas, fã de Jeff Buckley, Bernardo Afonso estudou música até aos 21 anos, mas a pressão social levou-o a tirar um curso universitário. Desistiu da faculdade, zangou-se com os pais, trabalhou em "call centers", deu aulas, é um dos criadores do "podcast" É Apenas Fumaça e continua a questionar muito. "Vivo para a música e nas horas de distracção sou um aficionado por política, história e humor - se for possível juntá-los a todos, melhor."


Vivo um pouco mal comigo mesmo por não conseguir mudar mais as coisas que estão à minha volta. Depois do ensino secundário, estive cerca de três meses na Índia a fazer distribuição de alimentos em várias aldeias. Tive contacto com uma realidade muito diferente, aprendi bastante e percebi que estava a seguir um rumo errado na minha vida. Dei conta de que vivia num mundo "ocidentalizado", onde nos dizem que temos de seguir um determinado caminho e que esse caminho passa por ter um curso universitário, mulher e filhos. Percebi que estava a enganar-me a mim próprio. Ainda assim, continuei a seguir esse caminho algum tempo, sobretudo por pressão familiar. Fui para a faculdade de jornalismo na Escola Superior de Comunicação Social, onde fiquei dois anos. Gostava dos conteúdos, era o melhor aluno do curso, mas sabia que não me iria encaixar na profissão de jornalista, tenho opiniões demasiado vincadas e gosto de as transmitir. Por outro lado, não concordo com quase nada daquilo que se passa no mundo do jornalismo, choca-me a cultura da estupidez e do "clickbait". E, para mim, havia a música...
Estudei música a vida inteira, mas na minha cabeça era como se eu dissesse: podes gostar muito de música, mas tens de ter uma profissão a sério. Lá está o tal caminho imposto. O facto de, mais tarde, ter assumido que queria seguir música fez com que as pessoas à minha volta não soubessem lidar com a questão porque, na verdade, o modelo que ninguém ousa questionar é: um aluno com média de 19 vai seguir uma "profissão" e ninguém espera que desista do curso. Mesmo hoje, quando digo que sou músico, muitas pessoas perguntam: mas qual é o plano B? E eu devolvo a pergunta: e o teu plano B, qual é?
O curioso é que grande parte da minha família, do lado da minha mãe, é da área da música. O meu avô materno é músico de fado, é o Nel Garcia (tocador de viola de fado), uma das pessoas mais respeitadas na área e, em parte, foi ele que fez com que eu começasse a aprender música, eu queria imitá-lo. A minha tia, Cátia Garcia, também é fadista, fez muitos musicais do Filipe La Féria, chegou a ganhar a Grande Noite do Fado quando tinha 19 anos. Portanto, eu tenho familiares próximos a viver da música e, por isso mesmo, sabem que é uma vida difícil. Acho mesmo que quando alguém escolhe ser músico é porque sente que tem de ser músico, é quase um chamamento. Eu gosto de ter este romantismo. Encontro na música uma espécie de alívio, acho que sou melhor pessoa se fizer música. Até pode ser uma ilusão, mas gosto de a ter porque dá-me alguma calma.

Quando assumi que queria viver da música, desisti da faculdade e saí de casa dos meus pais, em conflito com eles - neste momento, estou a viver uma espécie de reaproximação. Trabalhei num "call center", dei aulas de piano e de formação musical em Casal de Cambra, voltei para o "call center" e saí para uma empresa da área de recuperação de crédito, o pior trabalho do mundo. No dia em que me vim embora, tinha estado ao telefone com uma senhora de 72 anos, 90 euros de pensão, com cancro, o filho e o marido tinham morrido no espaço de um mês. Senti-me muito mal e saí da empresa. Este não é um modelo de sociedade justo, sou cada vez mais um anticapitalista ou, pelo menos, um "anti-estes-sistemas".
Não sou contra a globalização, nem acho que vamos voltar às cavernas com uma tocha na mão, mas, a nível ideológico, sou muito utópico, defendo o anarco-sindicalismo. Mas sou um idealista pragmático. Neste entretanto, temos de agir. Sempre votei, acho que é um dever e um direito, mas nunca vou fazer parte de um partido porque, na verdade, não concordo assim tanto com tudo isto e não acho que esta seja a melhor forma de organização ideal.
Adoro ouvir o Noam Chomsky a falar sobre anarco-sindicalismo, ele é das pessoas que eu mais admiro no mundo. Também admirava o Churchill, hoje não admiro assim tanto, mas eu gosto de desmistificar os meus ídolos. E gosto de ouvir pessoas como Harald Schumann, jornalista de investigação, e Amy Goodman, (autora) do programa "Democracy Now!" E ouço, sobretudo, os humoristas. O Ricardo Araújo Pereira é das pessoas que mais admiro na sociedade portuguesa, vejo O Gato Fedorento desde os 10, 11 anos! Também gosto muito do John Oliver, não perco um episódio, e adoro o Stephen Colbert. E o meu comediante preferido é, provavelmente, o George Carlin. Adoro tudo o que está à volta do humor, não só político, mas de crítica de costumes.

Na banda, sou politicamente o mais de esquerda, mas todos nós questionamos e acho que isso está presente neste álbum, que é um disco que critica o sistema. Temos partilhado livros como o "Animal Farm" e o "1984", de George Orwell, ou o "Admirável Mundo Novo", de Aldous Huxley. São livros que questionam a nossa existência.
Penso que pessoas deveriam questionar mais ou, pelo menos, não deveriam ceder tão facilmente. Há pessoas que cedem aos 23 anos e isso deixa-me triste. Mas existe uma diferença em relação às gerações anteriores. Hoje, as pessoas têm noção de que podem ser várias coisas. Temos as ferramentas para sermos aquilo que quisermos ser. Produzi, com a ajuda da banda, o nosso último álbum, não tive uma única aula de produção musical, a não ser na net, não paguei um euro, e isto é a prova de que o mundo mudou completamente. Portanto, as pessoas da minha idade começam a ter a consciência de que podem ser uma pessoa diferente daquilo que lhes é apresentado. Mas, por outro lado, as condições de vida pioraram de uma forma geral e muito especialmente para quem tem profissões consideradas "fora". A maior parte dos músicos tem de ter um segundo emprego e muitos têm mais do que uma banda. Mesmo músicos de topo. Percebo as razões, mas não deixo de ficar chocado. Enquanto sociedade, não temos resposta para este problema. Eu não tenho as respostas e vivo angustiado com a procura delas.

Neste momento, vivo da música na medida em que dou aulas particulares, mas terei de arranjar um "part-time". É preciso dinheiro para se começar na música. Nós investimos num estúdio e apostamos em autoprodução. Um músico tem de perceber, cada vez mais, de produção, e produzir também é compor, é idealizar o que é que será o som. O B Fachada disse numa entrevista: eu sou músico e a minha função na vida é acordar de manhã e trabalhar no mínimo oito horas. Ele tem tudo para não resultar, o B Fachada é a antinormalidade. No entanto, é um semideus do mundo alternativo. Porquê? Porque, em dez anos, lançou 14 ou 15 trabalhos com qualidade, mostrou que não estava a brincar e as pessoas renderam-se a isso. Já ninguém nos vai dar um ordenado ao final do mês, nenhuma editora vai oferecer-nos um cachê chorudo para gravar álbuns. Isso acabou, cá e no mundo inteiro.


Ver comentários
Saber mais Lotus Fever Jeff Buckley fado Noam Chomsky Amy Goodman Ricardo Araújo Pereira John Oliver Stephen Colbert George Carlin
Outras Notícias
Publicidade
C•Studio