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As donas da bola

Têm entre 21 e 56 anos, representam três gerações de mulheres que jogam futebol desde sempre e aplaudem o apuramento, pela primeira vez, da Selecção A para a fase final de um campeonato da Europa, que se disputa na Holanda entre 16 de Julho e 6 de Agosto.

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Adelaide Almeida participou no primeiro jogo oficial da Selecção feminina de futebol, em 1982. Carla Couto é a futebolista portuguesa mais internacional de sempre. Edite Fernandes detém o título de goleadora máxima da "equipa das quinas", Matilde Fidalgo, a número 5 da Selecção, é a capitã das seniores do histórico "Fófó" e Diana Silva, a número 11 das portuguesas, joga como avançada no Sporting. Têm entre 21 e 56 anos, representam três gerações de mulheres que jogam futebol desde sempre e aplaudem o apuramento, pela primeira vez, da Selecção A para a fase final de um campeonato da Europa. Os jogos de preparação já começaram.

Na terra de Adelaide, em Unhais-o-Velho, no concelho de Pampilhosa da Serra, era por ela e não pelo irmão Carlos que os rapazes chamavam quando queriam jogar à bola. Mas nem todos aplaudiam. "Sai daí que isso é para homens", ouvia a miúda de cabelo curto, ainda a revolução dos cravos estava por chegar. A revolução já tinha chegado há uma dúzia de anos quando, na freguesia de Modivas, em Vila do Conde, Edite começou a improvisar balizas nos campos de terra batida. Era a única menina entre os meninos. A avó torcia o nariz. Ela fugia. Em Lisboa, Carla disputava a bola com os rapazes da escola. Tal como faria Diana, vinte anos depois, nos descampados de Ourém. Ou como fez Matilde, no corredor da casa lisboeta. Adelaide Almeida, Carla Couto, Edite Fernandes, Matilde Fidalgo e Diana Silva são donas da bola. Têm entre 21 e 56 anos e representam três gerações de mulheres que jogam futebol desde sempre e que aplaudem o apuramento, pela primeira vez, da Selecção A para a fase final de um campeonato europeu. As portuguesas vão estar no Euro 2017, que se disputa na Holanda entre 16 de Julho e 6 de Agosto. Um marco histórico no futebol feminino.

Orgulho e preconceito

"Vai para casa coser meias." Adelaide, nascida em 1960, recorda os comentários que ouvia em campo. "Para mim, as bocas funcionavam como uma vitamina", conta, risonha, sentada num muro em frente ao Clube Futebol Benfica, o histórico "Fófó", onde é hoje treinadora adjunta das seniores. A jogadora de Unhais-o-Velho foi uma das atletas que disputou o primeiro jogo oficial da Selecção feminina de futebol, a 10 de Outubro de 1982, em Solothurn, na Suíça. As portuguesas lutavam pelo apuramento para o primeiro campeonato europeu, o UEFA European Competition for Representative Women's Teams. No grupo de Portugal, estavam as selecções da Suíça, de Itália e de França. As atletas nacionais estreavam-se nas partidas de qualificação para o Euro com uma derrota por 2-0 contra as jogadoras suíças, como reportava, então, João Alves da Costa, enviado especial do jornal A Bola. "Terminou à chuva a primeira lição do primeiro ano de escolaridade das meninas portuguesas nesta escola de futebol europeu de alta competição. E, como geralmente caloiros e caloiras dizem ao chegar a casa depois da abertura das aulas: 'Foi só a apresentação'. A Selecção feminina de Portugal, que ontem conheceu o sal doloroso (mas ensinativo) de um baptismo, teve até o condão de não se limitar a comparecer na 'aula' e dizer o seu nome às 'professoras' de um outro ritmo de futebol, naturalmente mais organizado e atlético, mais poderoso e mecanizado." O repórter testemunhava a presença de 400 emigrantes portugueses vindos de todos os cantos de terras helvéticas. "Muitas senhoras e raparigas na assistência, brandindo bandeiras de Portugal, imensas, colando-as e pregando-as às tribunas como se fossem roupa a secar. (…) E resolveram-se a gritar pelas jovens portuguesas como se ali estivessem os 'craques' masculinos."

A 10 de Outubro de 1982, a Selecção feminina portuguesa de futebol disputava na Suíça o seu primeiro jogo oficial, de apuramento para o campeonato da Europa. Adelaide Almeida vestia a camisola número 8.
A 10 de Outubro de 1982, a Selecção feminina portuguesa de futebol disputava na Suíça o seu primeiro jogo oficial, de apuramento para o campeonato da Europa. Adelaide Almeida vestia a camisola número 8.
As atletas portuguesas já tinham dado nas vistas quando se estrearam, como Selecção, num jogo particular com a França, a 24 de Outubro de 1981, na cidade de Le Mans. Um convite da Federação Francesa de Futebol. O jogo acabou num empate sem golos. "Convidadas… 'para perder', portuguesas surpreenderam tudo e todos", destacava Bruno Santos, correspondente do jornal A Bola. "A realidade do futebol feminino, nos dois países, é bem diversa. Em Portugal, apenas quatrocentas futebolistas filiadas de dezassete equipas, ligadas apenas a três associações, Leiria, Coimbra e Porto. As futebolistas francesas filiadas já vão em 25 mil…", salientava o jornalista.

Embora com atraso face aos restantes países europeus, o futebol feminino português estava a ganhar um pequeno fôlego que voltou depois a estancar. "No final de 1983, a Selecção feminina foi extinta por indicação do então presidente da FPF e do presidente da Comissão de Futebol Feminino da UEFA. Houve um interregno de 10 anos, tendo sido retomada em 1993, a 11 de Novembro, num particular diante da Suécia", indica a Federação Portuguesa de Futebol (FPF).

Enquanto Portugal estava estagnado, outros países desenvolviam a modalidade, aumentando o número de atletas federadas, o que levou a um atraso crónico português no campo futebolístico feminino. Que estará a ser recuperado nos últimos anos. E agora, pela primeira vez, a Selecção A de futebol feminino conseguiu qualificar-se para disputar uma fase final do campeonato da Europa, onde vai defrontar a Inglaterra, a Escócia e a Espanha no grupo D da competição.

Este foi um apuramento suado mas conseguido numa era em que as candidatas portuguesas ao mundo do futebol estão a engrossar fileiras. Hoje existem mais de três mil mulheres futebolistas federadas em Portugal. "Em Novembro de 2016, registámos 3.113 jogadoras na FPF, mais 630 do que em período homólogo do ano anterior, representando um crescimento na ordem dos 20%", indica Mónica Jorge, directora do futebol feminino na Federação Portuguesa de Futebol. Um número ainda envergonhado face a países como a Alemanha, com 258 mil futebolistas federadas, Suécia, com 168 mil, França, com 73 mil, ou até mesmo Espanha, com 31 mil. Ganhar terreno parece não ser fácil. Mas são cada vez mais os pais que levam as meninas aos clubes de futebol. "Eles são professores, advogados, directores, engenheiros. Antigamente, os pais tinham vergonha que as filhas jogassem à bola. Hoje, têm orgulho. O futebol feminino agora está na moda, mas tivemos de cortar muito pano para fazer o molde", diz Adelaide. E o molde ainda está fresco.

Matilde, 22 anos, a número 5 da "equipa das quinas" e capitã do "Fófó", lembra-se bem do seu primeiro jogo como titular ao serviço da Selecção sub-19, no Estádio do Jamor. "Olhei para a bancada e vi três pessoas: a minha mãe, o meu irmão e a namorada", conta. "Hoje em dia, aqui no 'Fófó', os homens até já fazem um churrasquinho e ficam a ver o jogo. Como fomos campeãs por duas vezes, demos alguma visibilidade ao clube. Não sinto quaisquer preconceitos", diz a jogadora.

"Hoje, vemos um Braga X Sporting com as bancadas cheias. Já ninguém nos diz que devíamos estar em casa a passar a ferro ou a tratar do homem e dos filhos", testemunha também Edite Fernandes, 37 anos, atleta que anunciou, há duas semanas, a sua retirada da "equipa das quinas". "Alguma vez tinha de ser", diz a antiga capitã portuguesa e avançada do Sporting de Braga, que detém o título de goleadora máxima da Selecção, com 39 golos marcados, quatro deles determinantes para a entrada da equipa portuguesa no Euro 2017. Edite não foi convocada para o "play-off" de apuramento, mas assistiu com entusiasmo ao último jogo com a Roménia, uma disputa que atingiu recordes de audiência. Segundo a Federação Portuguesa de Futebol, que estabeleceu um acordo com a TVI para a transmissão dos jogos da Selecção, os jogos do "play-off" com a Roménia, em Outubro de 2016, tiveram uma audiência média de 210 mil espectadores.

A arte da guerra

Quando a maior parte da população está a descansar, aquelas mulheres estão a vestir os calções para ir treinar, depois de oito a dez horas de trabalho ou após um dia de faculdade, e fazem-no muitas vezes em troca de nada, só pelo gosto, só pela paixão pelo futebol. As palavras são de Carla Couto, 42 anos. Ela é a futebolista portuguesa mais internacional de sempre, com 145 jogos ao serviço da Selecção. Foi apontada como a jogadora do século na Gala Quinas de Ouro da FPF e tem até uma taça com o seu nome, a Taça AFL "Carla Couto". É embaixadora do futebol feminino e delegada do Sindicato dos Jogadores Profissionais de Futebol (SJPF). "Neste momento, quero proporcionar às atletas aquilo que não senti durante muito tempo, a valorização da mulher que pratica desporto", diz Carla, que vai testemunhando no terreno as dificuldades das jogadoras portuguesas.

Os dias de Matilde e de Diana são sempre esticados para lá da noite. A capitã do "Fófó" está a terminar o mestrado integrado em Engenharia da Energia e Ambiente na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. "O 2.º e 3.º anos do curso foram os mais carregados, eu entrava às oito da manhã, saía às oito da noite, a minha mãe levava o jantar no carro para eu comer enquanto ia para o treino. Saía às 22:30, chegava a casa, tomava banho, não conseguia dormir logo, deitava-me à uma da manhã e às sete estava acordada", conta. Diana, 21 anos, avançada do Sporting e número 11 da Selecção, está no quarto ano do curso de Farmácia da mesma universidade e, tal como Matilde, estuda de dia e treina à noite. É assim quase todos os dias. Elas não se queixam, precisam de ter um plano B. "Quero garantir que existe vida depois do futebol", frisa Matilde.

Diana e Matilde recebem um subsídio mensal dos clubes onde jogam. São muito poucas as jogadoras portuguesas com contratos, algumas têm ajudas de custo, muitas não têm nada. "No futebol feminino, quase ninguém ganha para sobreviver", diz Adelaide, que sempre trabalhou enquanto jogava em clubes como o União de Coimbra ou o Sporting. Muitas vezes, os próprios clubes asseguravam-lhe trabalho. Era a moeda de troca possível. A jogadora de Unhais-o-Velho trabalhou num escritório de advogados, foi telefonista, esteve 20 anos na Singer. "Trabalhava de dia, à noite treinava, no outro dia estava fresca."

A experiência é semelhante entre as jogadoras. Enquanto marcava golos pela Selecção e por clubes como o Sporting e o 1.º de Dezembro, Carla Couto foi acumulando profissões. Trabalhou como jardineira, como carteira, foi vendedora de pilhas, trabalhou no McDonald's e numa tipografia. "Mas não posso queixar-me, tive sempre ajudas de custo. Nunca vivi do futebol, mas também nunca paguei para jogar." O mesmo aconteceu com Edite Fernandes, que trabalhou como auxiliar de acção educativa em Sintra, foi monitora de futebol, passou pela McDonald's e esteve na Expo 98. "Hoje, continua a não ser possível viver do futebol em Portugal e, neste cenário, Sporting e SC Braga serão excepções porque fazem contratos com algumas jogadoras", conta a atleta, que actualmente tem um vencimento fixo no emblema minhoto. A avançada é uma das seis jogadoras com vínculo profissional a clubes portugueses. Mas, uma vez que o campeonato é amador, não poderá falar-se exactamente de jogadoras profissionais em Portugal.

Tanto Carla como Edite ganharam dinheiro com o futebol quando jogaram em clubes estrangeiros. Carla Couto esteve na China e em Itália. Edite Fernandes jogou numa equipa chinesa, esteve em Espanha, Noruega e Estados Unidos. Hoje, existem várias atletas portuguesas no estrangeiro, tais como as jogadoras da Selecção Cláudia Neto e Carolina Mendes, que jogam na Suécia, Carole, Dolores Silva, Ana Leite e Laura Luís, que estão na Alemanha. Amanda Dacosta joga nos Estados Unidos, Raquel Infante está em Espanha, Mónica Mendes joga na Suíça e Suzane Pires encontra-se no Brasil.

O caminho menos percorrido

O apuramento da Selecção para o Europeu veio trazer um novo espaço, até mediático, ao futebol feminino, terreno que está a ser preparado há algum tempo. A FPF tem em marcha o Plano Estratégico de Futebol Feminino (PEN), que aposta na ligação ao desporto escolar, na formação e no aumento de atletas da modalidade. "Queremos aumentar o número de praticantes e, para tal, a formação de base é fundamental. Por isso, tem de haver mais competições e oportunidades para as nossas jovens começarem a praticar futebol mais cedo", afirma Mónica Jorge. "A nossa ambição é que todos os clubes em Portugal tenham futebol feminino. Convidámos os 18 clubes da Primeira Liga masculina a aderirem ao campeonato nacional, agora chamado Liga Allianz".

Sporting, SC Braga - que criaram equipas femininas de raiz -, Estoril e Belenenses aceitaram o convite da Federação e garantiram entrada directa na primeira divisão do campeonato. "O Boavista já estava connosco", sublinha a directora da FPF para o futebol feminino. "Estas equipas juntaram-se às que se mantiveram desde a época passada e às duas que subiram através do Campeonato de Promoção (II Divisão), perfazendo um total de 14 equipas na Liga Allianz, que arrancou nesta temporada (2016/17)", sublinha Mónica Jorge, que destaca também a criação da Supertaça Futebol Feminino Allianz e do Campeonato Nacional de Juniores Sub-19. Existem ainda as taças distritais sub-17 e sub-15 e os encontros distritais para sub-15 e sub-12.

Para o futebol feminino está destinado um orçamento anual superior a dois milhões de euros, um investimento maioritariamente feito pela Federação e canalizado, sobretudo, para apoiar os clubes, indica a directora para o futebol feminino. Até à temporada de 2017/18, a FPF tem o patrocínio da seguradora Allianz, que apoia as principais competições e as selecções nacionais e assegura a transmissão televisiva das provas mais importantes.

A Federação tem como grandes metas, para alcançar até 2020, duplicar o número de jogadoras e fazer com que a Selecção suba da 38.ª posição no "ranking" da FIFA para o "top 25". "Os clubes portugueses começam, finalmente, a perceber que existe uma margem de progressão grande no futebol feminino", diz Carla Couto, a porta-voz das guerreiras do futebol. "O futebol masculino já chegou ao topo e nós temos todo um caminho a percorrer…"


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