Notícia
Animais Nocturnos: Grotesca perfeição
Perturbador, duro, obscuro. Com "Animais Nocturnos", o americano Tom Ford confirma ser muito mais do que um criador de moda. É um contador de histórias nato. Nesta ficção, a vingança é o prato principal. Servido belo e cuidado. Devorado como obra de arte.
Animais Nocturnos
O segundo filme de Tom Ford chega esta semana às salas de cinema. O realizador opta por adaptar novamente um livro ao grande ecrã. A escolha recaiu sobre "Tony and Susan", de Austin Wright, publicado em 1993.
Uma gota de sangue. À primeira tentativa, Susan vê o papel de embrulho rasgar-lhe o dedo. O longo cabelo ruivo, completamente alinhado, enquadra o triste olhar azul. A ferida agora criada demorará a sarar, deixará de ser física.
Não é coincidência que se recupere, no momento em que toda a história muda, a cor vermelha, associada ao perigo e à violência, com que Tom Ford decidiu arrancar o seu segundo filme: "Animais Nocturnos". O misterioso pacote traz um livro. Remetente: Edward Sheffield.
Dezanove anos de silêncio e a sombra do ex-marido agora em palavras. Na mansão envidraçada e de linhas rectas em Los Angeles, é agarrado num momento de solidão. Dedicado a Susan, tem como título a alcunha que foi sua outrora. Percebe-se porquê quando ela admite que nunca dorme, como uma coruja.
Página a página rumo a uma aflição que não se consegue contrariar. Planos com cruzamentos de estradas nos primeiros minutos deixam o aviso: as possibilidades de percurso são quase infinitas, tais como as interpretações que Ford apresenta. A obra que Susan - vivida por Amy Adams - tem entre mãos leva-a ao Texas. E, sem pedir licença, ao passado.
Esta é a cruel história de Tony Hastings. A escuridão da noite impera quando o seu carro é atacado. A mulher e a filha são raptadas. Ele escapa. Horas mais tarde, descobre que foram violadas e mortas. Sequência asfixiante, dolorosa, em que Ford comprova que é bem mais do que um criador de moda. E o arranque para uma viagem ainda mais profunda, sempre embalada na angustiante música assinada por Abel Korzeniowski.
Susan imagina Tony com a aparência do ex-marido, ambos interpretados por Jake Gyllenhall. No passado, este reconheceu-lhe que as personagens são reflexo dos seus autores. O paralelo entre a vida real e a ficção do livro entranha-se para nunca mais partir e torna-se o maior atractivo deste filme. Tony vai vingar-se dos homens que lhe destruíram a família.
Não é isso que Edward acaba por fazer com o livro enviado à mulher que duvidou do seu talento e o chamou de fraco, que o trocou por um homem que a faria ainda mais infeliz, que viu a sua vida transformar-se no vazio que acusava à própria mãe? Sem meias medidas, Tom Ford admite-o: sim, é.
Num dos milhares de planos que parecem ter sido pensados milimetricamente, Susan surge em frente a um quadro onde está escrita o lema: Vingança. E a ficção é a maior arma para alcançá-la. O realizador salta da melancolia do primeiro trabalho, "Um Homem Singular", de 2009, para algo ainda mais obscuro e, garantidamente, humano.
Metáforas em catadupa. É esta mulher agora a heroína, a vilã ou a vítima? A dúvida não é aleatória, a resposta longe de consensual. Ao contrário da palete de cores: em Susan, o enquadramento constante no branco imaculado. Em Tony/Edward, a dureza dos tons terra. Nela, o lado artificial de quem cedeu a uma vida que jurou nunca ser sua.
Quão grotesca pode ser a perfeição? Por dentro, ela está desfeita, em cacos sem arranjo possível. A sua escultura já estava quebrada ainda antes daquelas folhas lhe chegarem às mãos. Arrependimento em abundância.
A fraqueza cega e mata, de uma forma literal ou simbólica. Nenhum dos protagonistas será o mesmo. Este é um filme para magoar, perturbar, questionar como a arte pode mudar a vida. A narrativa não verga um segundo, em oposição aos corpos de mulheres obesas que arrancam o filme como obras na galeria de que Susan é dona. Carne flácida, nua, em movimento.
Aqui não haverá ponto final mesmo que se tenha dado a mudança. Sabendo que não há cura, a ferida é remexida uma e outra vez. Porque a vida tomou um rumo não planeado a se transformou naquilo que mais se repudiava. A espera será eterna, o futuro ficará em suspenso. Aparências. Reticências.
O segundo filme de Tom Ford chega esta semana às salas de cinema. O realizador opta por adaptar novamente um livro ao grande ecrã. A escolha recaiu sobre "Tony and Susan", de Austin Wright, publicado em 1993.
Uma gota de sangue. À primeira tentativa, Susan vê o papel de embrulho rasgar-lhe o dedo. O longo cabelo ruivo, completamente alinhado, enquadra o triste olhar azul. A ferida agora criada demorará a sarar, deixará de ser física.
Dezanove anos de silêncio e a sombra do ex-marido agora em palavras. Na mansão envidraçada e de linhas rectas em Los Angeles, é agarrado num momento de solidão. Dedicado a Susan, tem como título a alcunha que foi sua outrora. Percebe-se porquê quando ela admite que nunca dorme, como uma coruja.
Página a página rumo a uma aflição que não se consegue contrariar. Planos com cruzamentos de estradas nos primeiros minutos deixam o aviso: as possibilidades de percurso são quase infinitas, tais como as interpretações que Ford apresenta. A obra que Susan - vivida por Amy Adams - tem entre mãos leva-a ao Texas. E, sem pedir licença, ao passado.
Esta é a cruel história de Tony Hastings. A escuridão da noite impera quando o seu carro é atacado. A mulher e a filha são raptadas. Ele escapa. Horas mais tarde, descobre que foram violadas e mortas. Sequência asfixiante, dolorosa, em que Ford comprova que é bem mais do que um criador de moda. E o arranque para uma viagem ainda mais profunda, sempre embalada na angustiante música assinada por Abel Korzeniowski.
Susan imagina Tony com a aparência do ex-marido, ambos interpretados por Jake Gyllenhall. No passado, este reconheceu-lhe que as personagens são reflexo dos seus autores. O paralelo entre a vida real e a ficção do livro entranha-se para nunca mais partir e torna-se o maior atractivo deste filme. Tony vai vingar-se dos homens que lhe destruíram a família.
Não é isso que Edward acaba por fazer com o livro enviado à mulher que duvidou do seu talento e o chamou de fraco, que o trocou por um homem que a faria ainda mais infeliz, que viu a sua vida transformar-se no vazio que acusava à própria mãe? Sem meias medidas, Tom Ford admite-o: sim, é.
Num dos milhares de planos que parecem ter sido pensados milimetricamente, Susan surge em frente a um quadro onde está escrita o lema: Vingança. E a ficção é a maior arma para alcançá-la. O realizador salta da melancolia do primeiro trabalho, "Um Homem Singular", de 2009, para algo ainda mais obscuro e, garantidamente, humano.
Metáforas em catadupa. É esta mulher agora a heroína, a vilã ou a vítima? A dúvida não é aleatória, a resposta longe de consensual. Ao contrário da palete de cores: em Susan, o enquadramento constante no branco imaculado. Em Tony/Edward, a dureza dos tons terra. Nela, o lado artificial de quem cedeu a uma vida que jurou nunca ser sua.
Quão grotesca pode ser a perfeição? Por dentro, ela está desfeita, em cacos sem arranjo possível. A sua escultura já estava quebrada ainda antes daquelas folhas lhe chegarem às mãos. Arrependimento em abundância.
A fraqueza cega e mata, de uma forma literal ou simbólica. Nenhum dos protagonistas será o mesmo. Este é um filme para magoar, perturbar, questionar como a arte pode mudar a vida. A narrativa não verga um segundo, em oposição aos corpos de mulheres obesas que arrancam o filme como obras na galeria de que Susan é dona. Carne flácida, nua, em movimento.
Aqui não haverá ponto final mesmo que se tenha dado a mudança. Sabendo que não há cura, a ferida é remexida uma e outra vez. Porque a vida tomou um rumo não planeado a se transformou naquilo que mais se repudiava. A espera será eterna, o futuro ficará em suspenso. Aparências. Reticências.