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Guerra coloca empresas da UE a investir a duas velocidades

A guerra na Ucrânia e a inflação travaram algum investimento em medidas de combate às alterações climáticas mas, por outro lado, impulsionaram a corrida à transição energética. Com dinâmicas a várias velocidades e a concorrência dos EUA e da China à espreita, o mercado pede que se coloque o pé no acelerador.

19 de Abril de 2023 às 07:00
A quota de empresas que investiram na ação climática atingiu os 53%, mais 10% face a 2021.
Esa Alexander/Reuters
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Os elevados preços da energia no Velho Continente, a inflação generalizada e a incerteza causada pela guerra da Ucrânia estão a testar a capacidade das empresas da União Europeia (UE) investirem em medidas para se tornarem mais sustentáveis.

 

O novo Relatório de Investimento Climático do Banco Europeu de Investimento (BEI), revelado este mês, indica que a quota das empresas europeias que está a investir na ação climática atingiu cerca de 53%, o que equivale a um aumento de 10% em relação a 2021. Este aumento foi mais acentuado na Europa Central e Oriental (até 15%).

 

O panorama não é homogéneo na Europa. Segundo o mesmo relatório, 42% das empresas da Europa Ocidental e do Norte estão a investir na eficiência energética, em comparação com apenas 37% das empresas da Europa do Sul. Os fabricantes intensivos em energia também têm um apetite mais forte por investimentos climáticos do que as empresas não intensivas em energia: 48% estão atualmente a investir, enquanto 57% estão a planear fazê-lo.

 

Apesar de já se notar alguma recuperação de investimento, após o travão decorrente da pandemia, da guerra e da inflação, a conclusão desta análise é perentória de que a Europa precisa agora de acelerar e abraçar "urgentemente" a transição para a energia verde. E de que as empresas são chamadas a desempenhar o seu papel, na medida em que estes investimentos são necessários para se atingir os objetivos de neutralidade carbónica até 2050 e para cumprir os objetivos mais amplos da Agenda 2030 das Nações Unidas. E, claro, para se manterem competitivas num mercado que já não volta para trás.

 

"A discussão nesta fase já não se coloca ao nível do fazer ou não fazer, mas sim do quando e como. A exigência do mercado, dos clientes, dos investidores e cada vez mais da regulação a isso conduz", sublinha Nuno Moreira da Cruz, diretor-executivo do Center for Responsible Business & Leadership da Católica Lisbon School for Business & Economics.

 

Várias instâncias mundiais, como o Banco Mundial, o Fórum Económico Mundial ou a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico, reconhecem também que a pandemia, os desenvolvimentos geopolíticos recentes e a inflação estão a perturbar a economia e os investimentos das empresas, mas defendem que o investimento sustentável será fundamental para apoiar a transição para um futuro mais verde e sustentável e não deve ser descartado.

 

As empresas encontram-se assim num momento decisivo entre o que têm de fazer e têm capacidade para fazer. "A guerra e o seu impacto, não só na inflação, como na evolução das taxas de juro e, em geral, na degradação das expectativas e no aumento da incerteza, estão a fazer as empresas repensar as suas estratégias, nomeadamente as suas estratégias de investimento. Por isso, as estratégias de sustentabilidade são também repensadas", refere Óscar Gaspar, vice-presidente da Confederação Empresarial de Portugal (CIP). As principais dificuldades que as empresas estão a sentir nesta altura são "o aumento dos custos, sejam eles energéticos, de matérias-primas ou de outros fornecimentos e também dos custos financeiros, dada a subida das taxas de juro. Por outro lado, temos os mercados mais retraídos e a incerteza a aumentar", acrescenta.

Empresários que não tomem a decisão de levar a sério a transição para a sustentabilidade e o reporte esperados arriscam-se a perder fornecedores, clientes e parceiros a médio prazo. Ana Simaens
Diretora de MBA in Sustainable Management no ISCTE
- Instituto Universitário de Lisboa

Porém, quando falamos de empresas, o universo é bastante heterogéneo nas suas dimensões, áreas de atuação e também de comportamento perante os critérios ambiental, social e de governação (ESG, sigla em inglês), destaca Ana Simaens, diretora de MBA in Sustainable Management no Iscte - Instituto Universitário de Lisboa. Neste cenário, "se uns perdem, é natural que outros estejam a ganhar", refere.

 

Por isso, "empresas com maior visão, mas também capacidade financeira para o fazer, olham para esta situação altamente complexa e veem aqui uma oportunidade para aumentar a resiliência das suas cadeias de valor e de abastecimento, de acelerarem a sua transição energética de forma a aumentarem a sua autonomia através de energias alternativas, potenciando a sua sustentabilidade ambiental e económica a médio prazo. Outras, não sendo capazes de dar este salto qualitativo, sucumbem às regras de mercado", acrescenta a docente universitária.

 

A complexidade do momento atual não passa só pelas tensões e incertezas geopolíticas e pela inflação. A própria pressão regulatória europeia para as empresas reportarem a sua atividade sustentável também é crescente. E mesmo que pela sua dimensão não sejam chamadas a reportar, as empresas veem-se implicadas a alterar o seu "modus operandi" para poderem continuar como fornecedores de grandes empresas, que começam agora a escrutinar e selecionar os participantes da sua cadeia de valor. Esta regulação é vista como excessiva para alguns, pois "cria incertezas, aumenta custos, absorve tempo e limita a capacidade de ação das empresas", como defende o vice-presidente da CIP. Por outro lado, as exigências legais ao nível da sustentabilidade têm funcionado como um impulsionador da mesma. "As recentes evoluções nesta matéria ao nível nacional, europeu e internacional têm funcionado como um importante ‘wake-up call’ para aquelas empresas que pensavam estar isentas de preocupações", evidencia Ana Simaens. E acrescenta: "Empresários que não tomem a decisão consciente e voluntária (ainda) de levar a sério a transição para a sustentabilidade e o reporte esperados arriscam-se a perder fornecedores, clientes e parceiros a médio prazo."

 

Um país de PME

 

Portugal é um caso particular com um tecido empresarial maioritariamente constituído por micros, pequenas e médias empresas (PME), o que condiciona a capacidade de investimento das mesmas. Todavia, mesmos estas estão cada vez mais conscientes e alinhadas com a sustentabilidade, apesar de não saberem como implementar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) nas suas estratégias, concluiu o 1.º Relatório do Observatório dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável nas Empresas Portuguesas, levado a cabo pela Católica Lisbon SBE e apresentado no final de 2022.

 

Segundo o relatório, 95% das grandes empresas e 77,7% das PME veem a sustentabilidade como uma oportunidade estratégica, mas para ambos os universos a falta de conhecimento de como operacionalizar é a principal barreira que encontram. Porém, tal é mais expressivo nas PME (49,4%) do que para a grandes empresas (21,7%), que por motivos de cumprimento de legislação e concorrência já estão na prática a implementar algumas medidas.

 

Colocar em prática estratégias de sustentabilidade, numa conjuntura de incerteza e de reduzida capacidade de investimento, é agravado, segundo Ana Simaens, pela "falta de integração da sustentabilidade no negócio, sendo ainda dominante o olhar para a sustentabilidade como algo separado do negócio". "A sustentabilidade não pode continuar a ser vista como um ‘add-on’, um ‘nice-to-have’, ou um requisito legal direto ou indireto", acrescenta.

 

Nuno Moreira da Cruz reforça que a transição é inevitável para todas as empresas, independentemente da sua condição e da conjuntura complexa que se vive atualmente. "No caso de Portugal, com o tecido empresarial descrito, isto ainda é mais uma realidade, no sentido de que essas PME são parte de cadeias de abastecimento de grandes multinacionais, onde os standards de sustentabilidade, como pré-condição para se ser fornecedor, são cada vez mais exigentes". Assim, na área da sustentabilidade, "esse caminho está a ser trilhado e todo o tema à volta dos ESG transformam as questões desta área como uma verdadeira licença para operar. Não cremos que exista caminho de volta", acrescenta o responsável da Católica Lisbon.

 

Fuga para a frente

 

Acresce a forte concorrência da China em múltiplas frentes, inclusive liderando os investimentos em energias renováveis a nível mundial – por exemplo, a Agência Internacional de Energia prevê que até 95% da indústria solar poderá ficar concentrada na China até 2025 -, e a Lei de Redução da Inflação (Inflation Reduction Act- IRA) dos EUA, que visa investir na transição energética e está a captar o interesse de empresas de todo o mundo. Assim, à Europa só resta uma solução: a fuga para a frente.

Sem lucro não há, nem haverá, preocupações sociais e ambientais. Mas o que é cada vez mais evidente é que sem essas preocupações dificilmente haverá lucro. Nuno Moreira da Cruz
Diretor-executivo na Católica Lisbon School for Business & Economics

Já o tinha feito com o programa RepPowerEU, em 2022, como forma de encontrar fontes de energia alternativas à Rússia e acelerar a transição energética para as renováveis. Agora, para não ficar para trás na economia verde, a Europa responde novamente em conjunto com o plano Net Zero Industry Act, que visa incentivar a indústria europeia à descarbonização e impedir que empresas deixem a Europa e rumem aos EUA, para beneficiarem dos apoios do IRA.

 

Mas o plano europeu não é isento de críticas, sobretudo devido à complexidade burocrática inerente aos apoios europeus em contraste com a facilidade e abrangência que os EUA oferecem em apoios verdes a quem queira instalar-se nos EUA. "A estratégia que lhe está subjacente está correta, os seus grandes eixos são adequados, mas falta-lhe ambição e meios. No pilar regulatório, lamentamos não ver refletida a necessidade urgente de reduzir a carga regulatória na UE. Seria fundamental a reconsideração de alguns regulamentos europeus, o que inclui algumas propostas em curso que impõem pesados custos e burocracias às empresas", sublinha Óscar Gaspar. Para além disso, o vice-presidente da CIP considera que "o Net Zero Industry Act traz medidas com vista à simplificação e celeridade na atribuição de licenças para projetos, mas o sucesso mantém-se muito dependente da ação em cada Estado-membro, pelo que é fundamental que exista um compromisso de todas as partes e formas de assegurar a sua eficácia. Além disso, esta estratégia não deveria ser limitada a setores ou tecnologias específicas: todos os setores industriais precisam de fazer parte desta transformação".

 

Assim, as empresas estão numa encruzilhada, com a guerra e a inflação a travarem investimentos, e a concorrência, o mercado e a pressão regulatória a exigirem investimentos sustentáveis. Porém, como sublinha Nuno Moreira da Cruz, "sem lucro não há, nem haverá, preocupações sociais e ambientais", mas "o que é cada vez mais evidente é que sem essas preocupações dificilmente haverá lucro. É o dilema do ovo e da galinha que as empresas devem equacionar nesta fase de transição".

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