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O sistema alimentar mundial baseia-se essencialmente em produção terrestre e está a chegar aos seus limites de capacidade. Já os oceanos cobrem mais de 70 por cento da superfície do planeta, mas contribuem apenas com 2% para a alimentação mundial. Só as algas poderiam aumentar o abastecimento alimentar mundial em 10%, utilizando apenas mais 0,03 por cento da superfície do oceano.
Os números são da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) e mostram o potencial das algas para solucionar a crise alimentar que o mundo já enfrenta e que crescerá à medida que a população mundial aumenta, podendo chegar aos 9,7 mil milhões de pessoas em 2050 e aos 11 mil milhões em 2100.
"A pandemia e a situação na Ucrânia fizeram-nos perceber que o nosso sistema alimentar é frágil. Não é ainda visível para o grande público, mas vamos enfrentar muito em breve as consequências destas fraquezas e teremos grandes problemas de segurança alimentar nos próximos cinco anos. Neste contexto, as algas marinhas serão muito importantes", explica ao Negócios Vincent Doumeizel, consultor para as Soluções Baseadas no Oceano no Pacto Global da Organização das Nações Unidas (ONU) e fundador da Safe Seaweed Coaltion, uma coligação que agrega diferentes "stakeholders" para promover o valor das algas.
A nível alimentar, as algas são nutricionalmente muito ricas, sendo uma boa fonte alternativa de proteína, essencial para saciar a população mundial em crescimento. Segundo a Associação Portuguesa de Nutricionistas, o teor proteico médio das macroalgas é de 17%, sendo o teor proteico máximo encontrado de 47%, na Pyropia tenera, conhecida como nori. As algas possuem também quantidades elevadas de fibra (23,5% a 64,0% do peso seco), vitaminas, minerais e ácidos gordos essenciais (EPA, DHA e ALA). Os adeptos da alimentação funcional e vegetariana, também em crescimento, veem nas algas um recurso importante para a sua alimentação, pois estas facultam micronutrientes essenciais, como a vitamina B12, o iodo e o ferro. "As algas marinhas são bombas nutricionais. Estão cheias de tudo o que é necessário", destaca Doumeizel, que acrescenta: "Foi provado por cientistas que somos sapiens, com um cérebro muito grande em comparação com a nossa massa corporal, porque ao longo de milhares de gerações comemos muitas algas marinhas e pequenos peixes". Hugo Pereira, coordenador do GreenCoLab, plataforma colaborativa para o estudo das algas, corrobora: "A população está a aumentar e existe a necessidade de encontrar fontes de proteína e temos algas que têm uma quantidade de proteína muito elevada e podem ser utilizadas neste mercado de uma forma muito eficiente." Além disso, cultivam-se facilmente, crescem rapidamente e não precisam da (escassa) água doce para a sua produção.
Além do valor alimentar, as algas desempenham também um papel essencial a nível ambiental, uma vez que prestam vários serviços de ecossistema. Não só sequestram carbono, como servem de alimento e casa a inúmeras espécies, contribuindo para o aumento destas em cerca de 120%. Segundo a FAO, até 2050, a produção de algas marinhas poderia absorver 135 milhões de toneladas de dióxido de carbono por ano e 30% de todo o azoto que entra nos oceanos devido à poluição terrestre. Certas espécies de algas marinhas têm o potencial de reduzir drasticamente as emissões de metano provenientes da produção de gado, quando adicionadas à alimentação do gado. As algas também podem ser utilizadas como filtros para tratamento de águas provenientes da agricultura e da aquacultura. No caso desta, Hugo Pereira explica que "os peixes libertam azoto e fósforo para o meio e, por isso, muitos países que têm aquacultura intensiva ficam com essas águas eutrofizadas. As algas conseguem captar a maioria destes nutrientes, tratando os efluentes, e nós conseguimos depois usar essas algas para fins alimentares sem haver problemas com contaminantes".
As algas no mundo
Está claro o duplo benefício que as algas trazem para a área alimentar e para combater as alterações climáticas. E o mercado responde com um amplo crescimento. Prevê-se que, em 2050, o consumo de proteínas alternativas seja de 33%, ocupando as algas 11% do total deste consumo. Com esta procura de mercado, as algas estão por isso a ser incorporadas em inúmeros alimentos dirigidos à nossa cultura alimentar.
O relatório "Estado global das algas marinhas: produção, comércio e utilização", divulgado pela FAO, em 2021, indica que, em 1969, a produção mundial de algas marinhas era de 2,2 milhões de toneladas provenientes de recolha e cultivo selvagens. Meio século depois, enquanto a produção selvagem desceu para 1,1 milhões de toneladas, a produção de cultivo aumentou para 35,8 milhões de toneladas, com a produção esmagadoramente concentrada na Ásia. O mercado global de algas foi avaliado em 594 milhões de euros (2018) e prevê-se que atinja 1.131 milhões de euros até 2027. Para satisfazer a procura da crescente população mundial, até 2050, a sua produção tem de aumentar pelo menos 60%.
Porém, como diz Vincent Doumeizel, "há dois mundos neste planeta: um é a Ásia que já mudou para ser uma civilização próxima do oceano e, consequentemente, produzem 36 milhões de toneladas de algas marinhas, têm 8 milhões de empregos que crescem 10% ao ano e 99% da produção é de cultivo. Depois temos a Europa, os EUA e África, responsáveis por 1% da produção global e esta produção é feita quase na totalidade por recolha na praia. Assim não existe escala."
Coordenador da GreenCoLab
Com o mercado concentrado na Ásia, o resto do mundo está lentamente a recuperar a relação com este alimento, que já existiu no passado. O estudo "As Algas como Alimento na Europa: Uma Visão Geral da Diversidade das Espécies e a sua Aplicação", publicado no passado mês de junho, faz parte de um levantamento do consumo histórico de algas, na Europa, para impulsionar a sua entrada no mercado sem necessidade das aprovações exigidas aquando da entrada de novos produtos no cabaz alimentar. "Isto vai permitir aumentar o número de espécies que podemos integrar na alimentação humana", explica Hugo Pereira. Este estudo apurou que atualmente cerca de 420 empresas, distribuídas por 23 países, produzem microalgas e algas na Europa, das quais 46% produzem Spirulina, 36% algas, e 10% microalgas. Os restantes 8% produzem tanto Spirulina como microalgas. Hugo Pereira destaca um mercado em evolução: "Nos últimos anos, tem havido realmente um interesse muito grande nas algas e na bioeconomia azul em geral. É muito interessante ver a quantidade de projetos altamente inovadores, principalmente na parte de novos produtos que utilizam algas, sejam eles substitutos da carne ou do peixe, seja fazendo bioplásticos ou outros produtos. As algas realmente têm uma aplicação muito grande e são consideradas uma matriz mais sustentável".
Um outro obstáculo a ser ultrapassado é a falta de normas de segurança globais para produtos de algas marinhas, e a resistência à colaboração, numa indústria ainda impulsionada por empresas e empresários relativamente pequenos. Para ultrapassar este problema, o Pacto Global da ONU publicou o Manifesto de Algas Marinhas, em 2020, que apela a normas acordadas internacionalmente, novos esforços de investimento e a uma maior colaboração entre governos, ciência e indústria para impulsionar a produção de algas.
As algas marinhas poderiam, de facto, contribuir para uma mudança sistémica no nosso modelo de civilização, mas o seu potencial continua a estar largamente inexplorado. Doumeizel refere que a sociedade evoluiu quando se tornou agricultora há 10 mil anos, porém, "ainda estamos na Idade da Pedra quando se trata do oceano". Por isso, o também autor do livro ‘La Révolution des Algues", que será publicado internacionalmente no outono, diz que "temos de dar este salto civilizacional e gerir o ecossistema oceânico, que nos pode dar muito alimento, ser fonte de vários produtos e ainda restaurar os habitats marinhos e sequestrar carbono".