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Eva Gaspar - Jornalista egaspar@negocios.pt 24 de Outubro de 2013 às 00:01

O discurso do Rei (quando depara que vai nu)

Se Luís XIV, monarca absolutista francês que reinou entre 1643 e 1715, terá chamado a si todo o poder ao proclamar que "L’État c’est moi", coube a um outro monarca da Europa rica do século XXI proclamar que o Estado não tem sequer mais condições para manter todas as funções sociais que foi chamando a si desde o pós-guerra.

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Se Luís XIV, monarca absolutista francês que reinou entre 1643 e 1715, terá chamado a si todo o poder ao proclamar que "L’État c’est moi", coube a um outro monarca da Europa rica do século XXI proclamar que o Estado não tem sequer mais condições para manter todas as funções sociais que foi chamando a si desde o pós-guerra, e que é hora de devolver parte delas à sociedade civil. "L´État c’est-vous" é um possível resumo do primeiro discurso de Guilherme de Holanda depois de feito Rei, no qual anunciou a morte do Estado Social e o advento da “Sociedade Participativa”.

 

“Devido aos desenvolvimentos da sociedade, designadamente à globalização e ao envelhecimento da população (…) o clássico modelo do Estado Social está lenta mas inevitavelmente a evoluir para uma ‘Sociedade Participativa’”. Essa evolução “é especialmente relevante para a Segurança Social e para os que precisam de cuidados de longa duração. É precisamente nestes sectores que o clássico Estado-Providência da segunda metade do século XX produziu sistemas que, na sua forma actual, não são sustentáveis”, disse no Parlamento holandês em Setembro.

 

E o que é isso de “Sociedade Participativa”? O Estado continuará a garantir os serviços sociais básicos (e o que é básico é uma vasta discussão em si mesma), mas os indivíduos terão de contribuir mais para si e para os que lhes são próximos, e organizar-se mais e melhor a partir do seu raio de acção para se precaverem para o infortúnio e para a velhice. No fundo, o que vem aí é a parte chata que caberá progressivamente aos “movimentos da sociedade civil”: muitos deles desempenham hoje “funções do Estado” mas são financiados pelos impostos – terão (teremos) de se bastar mais a si próprios de futuro.

 

É curioso que este debate sobre a necessidade de uma reforma do Estado social tão profunda que se impõe rebaptizá-lo tenha sido assumido de forma tão solene num dos raros países do mundo que ainda gozam de rating máximo, “AAA” –  e, logo, de juros baixos quando pede emprestado nos mercados financeiros a parcela das despesas públicas que não é coberta pelos impostos e receitas cobrados pelo Estado.

 

É certo que a mesma Holanda que se fartou de dar lições aos países do Sul da Europa por não cumprirem os seus deveres é também hoje um país em recessão e um dos mais endividados – muito mais o sector privado (a dívida hipotecária das famílias supera o equivalente a 110% do PIB acima dos 90% atingidos pelas norte-americanas no auge da crise do ‘sub-prime’) do que o público (a previsão do FMI é de um défice de 3,7% e dívida 75,8% do PIB, em 2014).

 

Mas a Holanda não está com nenhuma corda à garganta. E o discurso do Rei, escrito a quatro mãos com o Governo de coligação entre liberais e socialistas, não ofereceu dúvidas quanto ao alcance e à inevitabilidade das transformações que se perfilam: não se está a falar de remendos ao Estado-Providência para enfrentar uma crise conjuntural e, depois do choque, tudo poderá voltar a ser como antes. O contrato social entre ricos e pobres, novos e velhos, trabalhadores e reformados, destinado a repartir de forma equitativa encargos e benefícios, presentes e futuros, está a romper-se na Holanda, como está a romper-se em Portugal  e um pouco por toda a Europa.

 

Porquê? Onde quer que vá, Angela Merkel costuma tentar resumir o problema com três números: a Europa tem hoje apenas 7% da população mundial, produz 25% do PIB global e consume 50% da despesa social paga por esse mundo afora. Dentro de vinte anos, por exemplo, quase um terço da população holandesa terá 65 anos ou mais. Cruze-se uma baixa natalidade e um potencial de crescimento modesto, e está explicada a inevitabilidade da mudança.

 

É este o contexto de fundo do discurso do Rei. E é esse o contexto que, sendo ainda mais sombrio em Portugal, deve ser percebido por cá, onde tantos querem fazer-nos acreditar que o Estado não vai nu e que é possível reformá-lo e torná-lo sustentável sem mexer nas suas funções e prestações.

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