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Eva Gaspar - Jornalista egaspar@negocios.pt 12 de Novembro de 2014 às 20:20

António Costa e a ditadura da dívida

A política em Portugal e em boa parte do mundo desenvolvido tem sido feita em obediência a uma concepção desvirtuada da "arte do possível" que, em termos gráficos, corresponderá ao corte muito prematuro da linha do que é necessário fazer pelo cruzamento das linhas dos interesses instalados e do desejo dos Governos de ganharem as eleições seguintes.

 

Essa forma de arte tem sido possível porque boa parte da factura tem sido escondida em PPPs, em operações contabilísticas insanas, em encargos com pensionistas que não são revelados nas estatísticas; em suma, porque tem sido o mais discretamente possível metida dentro dos bolsos de quem ainda não vota – dos mais jovens e dos que estão por nascer.

 

Os economistas chamam agora a essa forma de fazer política "enviesamento deficitário" depois de terem constatado tratar-se de um fenómeno com assinalável regularidade estatística em Portugal e em muitas outras democracias.

 

Sucede que, com o passar dos anos e à medida que a pirâmide demográfica se invertia, o exercício pequeno da nobre e legítima "arte do possível" ajudou a erigir uma montanha de dívida que está a condenar a própria política - porque reduz o espaço para a oferta ao eleitorado de opções dignas desse nome.

 

António Costa, o presidente da Câmara de Lisboa, sabe disso.

 

Descontando o atraso na sua apresentação e assumindo que, com alguma sorte e muito bom senso, ficará pelo caminho a ideia de construir um terceiro centro de congressos no centro caótico de Lisboa e que nenhum português não-alfacinha será castigado por insistir em aterrar na Portela dos lisboetas teimando em não usar o aeroporto que tem à porta de casa, António Costa parece ter feito um Orçamento à irlandesa.

 

Em 2008, a dívida da autarquia ascendia a 1,12 mil milhões de euros; no ano seguinte pagaram-se 26 milhões de euros em juros, mais do dobro dos 12 milhões "oferecidos" aos lisboetas por se ter aplicado a taxa mínima de IMI neste ano e acima dos 18 milhões que a Câmara planeia investir em 2015 na "manutenção da cidade". Lisboa é ainda a autarquia mais endividada do país (740 milhões de euros em 2013, segundo o Anuário Financeiro dos Municípios), e Costa sabe que honrar o seu pagamento lhe corta as asas na adminstração da cidade.

 

Se não quer mais dívida e se quer manter os impostos baixos para atrair famílias e empresas assume que tem de cortar na despesa. E corta. Menos 4,1% na despesa total, menos 8,4% na de pessoal, menos 41% nas tais gorduras dos "estudos e pareceres", é o que vem prometido na mini-apresentação do Orçamento. Diz até que quer antecipar o pagamento de empréstimos e que por isso vai continuar a alienar "activos não estratégicos" – porque "é bom para a cidade e é bom para reduzir a dívida". Mais celta, só se Costa fosse ruivo.

 

Já António Costa, o candidato a primeiro-ministro, fala uma espécie de grego. Queixa-se da "austeridade", suspira pelo "crescimento", promete desfazer todos os cortes e enche o peito ao Governo e à Europa, numa encenação mais calculista do que corajosa. Diz que "não é tempo para compromissos" sobre o Orçamento do Estado com que talvez venha a começar a governar, para logo no dia seguinte levar ao Parlamento o debate sobre a renegociação da dívida, parecendo disposto a pedir compromissos apenas a quem nos emprestou dinheiro.

 

Dentro ou fora do euro, Portugal (e não só) vai muito provavelmente precisar de um qualquer expediente de alívio do endividamento para se manter como país viável. Mas só poderá aspirar a esse tratamento no dia em que aspirar com o mesmo empenho e resultado ter um Estado que não ousa mais gastar além do que tem – terá, até, de gastar menos para ir pagando parte do que ficará a dever.

 

E dentro ou fora do euro, reduzir a dívida deve ser assumido como um desígnio por quem se crê democrata.  Porque democracia não é a ditadura da maioria – é democracia porque dispõe também de mecanismos que protegem os que não se alinham com a maioria. Se isso vale para as minorias que compartilham o nosso tempo, não há razão por que não se aplique às gerações futuras. É anti-democrático, além de indecente, legarmos aos nossos filhos a ditadura do peso da dívida que todos os Antónios e Marias sabem corresponder a uma mão vazia de opções.

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