Opinião
Flexisegurança branca
“Flexisegurança” é uma novidade com dez anos. A designação nasceu na política, virou estigma e a política a quer matar – a designação, apenas a designação... “Flexisegurança” é hoje a palavra impronunciável e está também impronunciada no Livro Branco das
O seu primeiro mérito, enorme, está no diagnóstico: o Livro Branco destrói quase todos os nossos mitos.
Os trabalhadores colocam acima de todas as prioridades o seu vínculo laboral? Errado: o mais importante no seu futuro profissional, dizem, é a situação económica da empresa. E, depois, a vontade do patrão.
A maioria dos trabalhadores já não dá importância aos sindicatos? Errado: dois terços dizem que eles são determinantes. Só que só menos de um sexto é sindicalizado. E apenas um quinto fez alguma vez greve. Por outro lado, mais de metade dos sindicatos não dão qualquer sinal de vida, existem só no papel.
O mercado de trabalho é rígido, sem criação e destruição de emprego? Errado: em cada trimestre, há mais de 5% de novos empregos e outro tanto é destruído. Mesmo considerando o efeito dos recibos verdes e dos contratos a termo, pasme-se, temos mais mobilidade que a Alemanha!
As leis do trabalho são o maior entrave à flexibilidade? Errado: os patrões não usam a liberdade de que dispõem. Portugal tem dos horários mais rígidos da UE. Mas como não praticamos flexibilidade, temos um problema: como exemplificam os autores do estudo, se um filho adoece, ou se sacrifica o patrão (o pai falta para estar com o filho), ou se sacrifica a família (o filho fica só).
Infelizmente, há mitos que são mesmo verdade. O enorme nível de desigualdade não é ficção é mesmo um recorde europeu sob todos os aspectos. Desigualdade entre sexos, entre regiões, nos níveis de escolaridade. Ser licenciado é mesmo determinante (depois de entrar no mercado de trabalho, um licenciado tem uma progressão rapidíssima, um não licenciado perpetua-se estagnado).
Numa frase: o mercado é dinâmico mas desigual, a flexibilidade existe na lei mas os patrões não a usam – e são eles que, em 90% dos casos, tudo decidem para o trabalhador, salários, horários, categoria profissional. E os trabalhadores aceitam que a saúde económica da empresa é mais importante que o contrato que garante emprego até ao fim da vida. A vida é curta se a empresa falir.
A primeira proposta do Livro é portanto aceitar que os termos da discussão têm de mudar – e mudar antes das leis, muito mais inúteis do que se supõe.
Há soluções para agradar a patrões, como o fim dos bónus nas férias por assiduidade e o fim da integração de trabalhadores por erros formais (uma carta enviada fora de prazo por um advogado relapso deixa de “anular” uma decisão do tribunal de despedimento).
Há soluções para agradar aos sindicatos, como o fim da prorrogação dos contratos a prazo até seis anos e a inversão do ónus da prova nos processos disciplinares (deixa de ser o trabalhador a ter de provar que o despedimento é ilícito, passa a ser o empregador a ter de provar que ele é lícito).
Há soluções de compromisso, como o célebre artigo 4º, sendo reduzido o âmbito dos casos em que um contrato pode ser pior do que a lei prevê desde que haja acordo dentre os dois lados.
Há propostas acertadas como o “despedimento simplex”. Nada muda quanto à justa causa, tudo fica na mesma quanto ao fundamento. Muda sim o processo, que fica mais rápido e em que o Estado assume os custos em caso de demora processual. É um acto de fé dos autores do Livro Branco nos tribunais, que não têm crédito para grandes velocidades, mas a intenção é boa. Como boa é a não obrigação de instrução do processo disciplinar. Um processo disciplinar, como justificam os autores, não serve para apurar a verdade, mas para sustentar uma decisão da empresa. Daí que os próprios tribunais acabem sempre por ignorar essa argumentação.
Mas há outro acto de fé que o Livro Branco faz – e faz mal. Fica demonstrado que é por inércia dos patrões que a flexibilidade possível não é usada. A razão será cultural. É por isso que a liberdade com responsabilidade do trabalhador (trabalhar a que horas quer e onde quiser desde que cumpra os objectivos e isso não impeça o trabalho de outros) é a utopia deste século, tal como a redução drástica do tempo de trabalho por via da robotização foi a utopia do século passado.
A Flexisegurança vai impor-se, com este ou outro nome, porque o mercado quer e os trabalhadores estão dispostos. Mas pode evoluir de duas maneiras: individualizando a relação, ou ampliando-a através de negociação. A crer neste Livro Branco, essa evolução depende muito pouco da lei. Depende de nós.