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30 de Setembro de 2014 às 17:29

"Crimes" políticos

Com a queda do Muro de Berlim, que teve lugar há 25 anos [caiu a 9 de Novembro de 1989], os especialistas liderados por Francis Fukuyama proclamaram o fim da história – o triunfo do capitalismo democrático sobre os sistemas rivais. O sucesso económico dos Estados Unidos da América e o colapso do comunismo alimentaram a narrativa. O longo confronto político, intelectual e por vezes militar que conhecíamos como Guerra Fria tinha terminado.

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De facto, no encontro de Varsóvia, no Inverno de 1990, o general Wojciech Jaruzelski, presidente polaco na época e líder do Partido Comunista, disse perante mim e os meus colegas de gabinete que "as forças da história conduziram-nos inevitavelmente ao capitalismo". Jaruzelski não conseguia libertar-se da dialéctica de Hegel, mas admitiu na altura que o comunismo tinha obtido um ponto final na história de forma totalmente errada.

 

Duas décadas depois, várias formas de capitalismo têm feito maravilhas para alguns antigos países comunistas e socialistas. A Polónia é um exemplo excelente de uma transição económica e política bem sucedida.

 

Mas o capitalismo está longe de florescer em todos os locais. A Coreia do Norte, que nunca fez a transição e mantém um planeamento central pesado, é, em termos económicos, um caso complicado. E um socialismo suave, combinado com os "campeões nacionais" subsidiados, está decadente em França.

 

Além disso, em muitos países, o capitalismo chegou sem a democracia. A China é um exemplo óbvio de capitalismo bem sucedido e de atrasos nas reformas políticas. Para estes países, a competição honesta nas urnas, livre e aberta ao debate, e em respeito pelos direitos das minorias – as bases da democracia liberal – não estão actualmente na agenda. As rolhas de champanhe foram retiradas de forma prematura em 1989.

 

De facto, e precisamente porque a democracia liberal não triunfou mundialmente, muitas crises urgentes exigem actualmente atenção e acção. Mas temos de focar-nos também – nos meios de comunicação social, bem como nas escolas – nos menos dramáticos, mas ainda perigosos, ataques à democracia e aos valores democráticos, incluindo no continente americano, onde os regimes estatistas e outros têm atacado a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa.

 

Em resultado disto, as disputas políticas podem tornar-se criminais. Um recente exemplo pernicioso disso foi quando o presidente venezuelano, Nicolás Maduro, num discurso ao país transmitido pela televisão, ordenou ao procurador-geral do país e ao ministério público que tomassem "acções" contra o economista de Harvard, Ricardo Hausmann, por ter se atrevido a questionar "se deveria a Venezuela entrar em incumprimento?".

 

Hausmann estava correcto ao levantar essa questão. As pesquisas mostram, maioritariamente, que o desenvolvimento económico bem sucedido exige direitos de propriedade inclusivos, a execução dos contratos e uma aplicação imparcial da lei. Actualmente, a Venezuela não dispõe de nenhum desses ingredientes.

 

Por isso, não é surpreendente que os défices governamentais gigantes sejam financiados por crescimento monetário explosivo, causando o colapso da moeda. As empresas multinacionais, por conseguinte, reduzem o valor atribuído às suas subsidiárias venezuelanas de cada vez que a taxa de câmbio oficial baixa. Também não é surpreendente que, com divisas estrangeiras inadequadas, o país enfrente dificuldades em pagar as suas contas ou que o controlo de preço e a regulação do Estado policial tenham piorado a gravidade da escassez de alimentos. Por fim, perante uma forte especulação de que a Venezuela poderá entrar em incumprimento num altura em que tem 80 mil milhões de dólares de dívida externa, não é surpreendente que as "yields" da dívida soberana tenham atingido os 15%.

 

A Venezuela, com uma das maiores reservas de hidrocarbonetos, devia estar a disfrutar de uma era de prosperidade devido aos elevados preços do petróleo. Mas a corrupção, o controlo político da petrolífera nacional e a nacionalização dos activos do petróleo detidos por estrangeiros provocaram exactamente o oposto. (Revelação: Eu estou na administração de uma dessas empresas, ExxonMobil, que aguarda pelos resultados da arbitragem de um tribunal internacional).


A combinação de um regime autoritário, populismo extremo, ideologia socialista e incompetência durante a vigência do presidente Hugo Chávez e Maduro causaram estragos na Venezuela. Mas quando Hausmann, um cidadão venezuelano e um antigo ministro, destacou uma questão importante que está a ser levantada pelos investidores por todo o mundo, não é apenas castigado, mas ameaçado. A implicação é clara: falem claramente e podem ser presos.

 

Este não é o primeiro de tais tratamentos a economistas proeminentes na América Latina. Há uma década, foi Domingo Cavallo que, como ministro argentino das Finanças, indexou o peso ao dólar para baixar a inflação de 1.000% que estava a destruir a economia – e o tecido social. Quando Cavallo determinou abruptamente o fim da indexação, em 2001, deu-se uma recessão severa  e este foi detido. Felizmente, a indignação internacional, incluindo a campanha organizada pelos economistas norte-americanos, ajudaram a libertar Cavallo. 

 

Não concordo com todas as políticas advogadas por Cavallo ou Hausmann, ou muitos outros políticos. Mas deveremos criminalizar os desacordos políticos em vez da corrupção ou as actividades públicas em benefício próprio? Queremos que todos os novos governos prendam os seus oponentes políticos – como o presidente ucraniano deposto, Viktor Yanukovych, fez com a antiga primeira-ministra Júlia Tymoshenko – porque rejeitam as políticas que decretaram ou porque condenam os resultados?

 

Ainda não descemos tão baixo nos Estados Unidos. Mas, mesmo aí, tem-se tornado muito comum impugnar os motivos e valores, não apenas as ideias, daqueles com quem não concordamos. Jornalistas, políticos e intelectuais, que deveriam saber melhor que isto, frequentemente argumentam que as políticas ou propostas são erradas e que os proponentes são maus por as promulgarem ou sugerirem.

 

Críticas e discordâncias não deviam ser permitidas para se transformarem em ódios que diminuem o discurso público actual. As palavras têm consequências que podem levar à violência, ou pior. Mesmo as tentativas de suprimir o debate livre e aberto, ou a deslegitimação oficial de quem tem propostas políticas alternativas, são perigosas. Devemos resistir a esses ultrajes, antes que pessoas como Cavallo e Hausmann sejam ameaçadas – e antes que esta doença se espalhe pela América do Norte e Europa.

 

Michael J. Boskin é professor de Economia na Universidade de Stanford e membro sénior da Hoover Institution. Foi presidente do Conselho de Assessores Económicos de George H. W. Bush de 1989 a 1993.

 

Direitos de autor: Project Syndicate, 2014.
www.project-syndicate.org

 

Tradução: Ana Laranjeiro

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