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Uma oportunidade inovadora para a governação global

As tecnologias de ponta são essenciais para a prossecução de nada menos que 25 indicadores dos ODS, e toda a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável depende da paz mundial. Para que tenhamos hipótese de concretizar os 17 ODS no prazo previsto de 2030, temos de mobilizar estas tecnologias para estarmos à altura dos desafios de governação e de consolidação da paz associados a uma ordem geopolítica em rápida mutação.

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As cibertecnologias, e especialmente a inteligência artificial, possibilitam novas e potentes ferramentas para a resolução de problemas. Mas também suscitam graves desafios à governação. Com efeito, a concorrência desenfreada pelo domínio na cibernética poderá deixar todas as pessoas numa situação pior – uma espécie de "tragédia dos comuns". Poderá mesmo levar à confrontação.

 

A atenuação desses riscos nunca foi tão urgente. As cibertecnologias estão a tornar-se mais rápidas, melhores, mais baratas e cada vez mais utilizadas, numa altura em que existem mais conflitos violentos do que em qualquer outro momento desde a II Guerra Mundial. Além disso, as ferramentas existentes para consolidação da paz parecem estar a perder a sua eficácia. As conhecidas deficiências das Nações Unidas – como os recursos insuficientes, a falta de autoridade formal e a incapacidade de endereçar as causas subjacentes aos conflitos violentos – são especialmente patentes em Gaza, na Ucrânia e no Sudão.

 

A boa notícia é que este ano trará oportunidades importantes para confrontarmos os desafios que enfrentamos. Em setembro, os líderes globais reunir-se-ão em Nova Iorque para a Cimeira do Futuro da ONU, onde procurarão restabelecer a confiança mútua, resolver lacunas na governação global e fortalecer a capacidade das instituições multilaterais lidarem com desafios atuais e futuros. Espera-se que da cimeira saia um acordo sobre um Pacto para o Futuro, que defina para o sistema internacional um caminho claro.

 

Também decorrem esforços para desenvolver um Pacto Digital Global, proposto na Nossa Agenda Comum do Secretário-Geral da ONU, António Guterres, como forma de implementar uma "visão partilhada de um futuro digital aberto, livre, seguro e centrado nas pessoas". Em conjunto, estas iniciativas proporcionam motivos para esperar um progresso real sobre a governação da IA e a manutenção internacional da paz.

 

O êxito, porém, exigirá que os 193 estados-membros da ONU não só adotem estes instrumentos mas também que os desenvolvam, através da exploração de inovações ambiciosas na governação global. No Relatório de 2023 sobre o Futuro da Cooperação Internacional, produzido pelo Fórum de Doha, o Stimson Center e o Instituto Global para Investigação Estratégica, defendemos uma dessas inovações: uma Agência Internacional para a Inteligência Artificial (IA2).

 

A implementação da IA2 reforçaria a visibilidade, a argumentação e a mobilização de recursos para uma regulamentação global da IA e proporcionaria aconselhamento especializado para os acordos de cibertecnologia implementados pela Assembleia Geral e pelo Conselho de Segurança da ONU. A agência também monitorizaria, avaliaria e informaria sobre as salvaguardas da indústria da IA, em cumprimento de um enquadramento regulamentar internacional acordado. E coordenaria transnacionalmente iniciativas e modelos sobre a governação da IA, para facilitar a partilha de boas práticas e de lições aprendidas.

 

A IA2 deverá assentar nos princípios da segurança, da sustentabilidade e da inclusão, e ser apoiada por um Painel Intergovernamental de Especialistas sobre Cibertecnologias e IA, baseado no Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas. O modelo da agência deverá espelhar todas as recomendações relevantes do Órgão Consultivo sobre IA do Secretário-Geral da ONU, que publicará o seu relatório final antes da Cimeira do Futuro.

 

Para reforço das competências internacionais de gestão de conflitos, também propomos transformar a Comissão de Consolidação da Paz da ONU num Conselho para a Consolidação da Paz devidamente habilitado, tal como a anteriormente enfraquecida Comissão para os Direitos Humanos foi transformada em 2005 num Conselho para os Direitos Humanos, com maior capacidade e com um mandato alargado.

 

O Conselho para a Consolidação da Paz teria mais autoridade e responsabilidade para liderar na prevenção de conflitos, no desenvolvimento e coordenação de políticas e na mobilização de recursos para conflitos de segunda e terceira ordem (como o caso de Myanmar). Isto permitiria ao Conselho de Segurança concentrar os seus esforços em conflitos de primeira ordem (como o conflito entre a Ucrânia e a Rússia), que representam a maior ameaça à paz e à segurança internacionais.

 

Os esforços do Conselho para a Consolidação da Paz seriam auxiliados por uma ferramenta de Auditoria para a Consolidação da Paz, modelada a partir da Análise Universal Periódica do Conselho para os Direitos Humanos, que acompanha as prestações dos estados-membros da ONU relativamente aos direitos humanos. Ao mesmo tempo, o Fundo para a Consolidação da Paz – o principal instrumento da ONU para investimento na prevenção de conflitos – tem de receber financiamento adequado, previsível e sustentado, nomeadamente através do pagamento de valores já em dívida.

 

Esperar-se-á resistência, tanto de intervenientes estatais como não-estatais. Afinal, vivemos uma época de renovação das rivalidades entre grandes potências e de desconfiança crescente entre grupos influentes de países no Norte e no Sul Globais.

 

Mas resultados recentemente alcançados – em especial, a Declaração de Líderes do G20 de Nova Deli, que emergiu da Cimeira do G20 no passado mês de setembro, e a Declaração Bletchley, adotada em novembro na Cimeira para a Segurança da IA – sugerem que a dinâmica política possa ser mobilizada para a promoção de objetivos partilhados. Também ajuda que tanto o Pacto para o Futuro como o Pacto Digital Global visem preencher lacunas da governação global, identificadas como prioritárias na Declaração Política adotada na Cimeira para os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) do passado mês de setembro.

 

As tecnologias de ponta são essenciais para a prossecução de nada menos que 25 indicadores dos ODS, e toda a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável depende da paz mundial. Para que tenhamos hipótese de concretizar os 17 ODS no prazo previsto de 2030, temos de mobilizar estas tecnologias para estarmos à altura dos desafios de governação e de consolidação da paz associados a uma ordem geopolítica em rápida mutação.

 

Mubarak Al-Kuwari é diretor executivo do Fórum de Doha. Richard Ponzio é diretor do Programa de Governação Global, Justiça e Segurança e investigador sénior no Stimson Center. Sultan Barakat é diretor do Instituto Global para a Investigação Estratégica e Professor de Política Pública na Universidade Hamad Bin Khalifa.

 

Direitos de Autor: Project Syndicate, 2024.
www.project-syndicate.org

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