Opinião
Porque é que os detentores de obrigações dos EUA não estão a entrar em pânico?
Em algum momento, o comportamento pavloviano do mercado de obrigações será interrompido e as taxas de juro de longo prazo subirão muito mais.
Com o presidente dos EUA, Donald Trump, a endurecer a sua guerra comercial com a China e a Reserva Federal a subir os juros, as perspectivas para a economia mundial e para os mercados financeiros - tão brilhantes há uns meses - parecem estar a escurecer. Os mercados de acções em todo o mundo recuaram para os mínimos de Fevereiro, a confiança dos empresários caiu na Europa e em grande parte da Ásia, e os legisladores em todo o mundo estão a dar sinais de nervosismo. Esses eventos são o início do fim da expansão económica global, ou a recente turbulência do mercado é apenas um falso alarme?
No mês passado, destaquei três indicadores - o preço do petróleo, as taxas de juros de longo prazo dos EUA e a taxa de câmbio do dólar - sugerindo que as condições globais permaneceriam benignas. Os economistas podem advertir que a combinação do proteccionismo de Trump, grandes cortes nos impostos e o endividamento descontrolado do governo, numa altura em que a economia dos EUA já está perto do pleno emprego, acabará por alimentar a pressão inflacionista. Mas os mercados financeiros simplesmente não acreditam nessa mensagem. E desde a turbulência financeira do início de Fevereiro, a mensagem do maior e mais importante mercado financeiro – o das obrigações do governo dos EUA - tornou-se ainda mais tranquilizadora.
Apesar da decisão da Fed de subir os juros de curto prazo e sinalizar mais aumentos do que o esperado para 2019, os juros das obrigações dos EUA a dez anos caíram para níveis bem abaixo do pico de Fevereiro. Os juros a trinta anos estão agora abaixo do pico de 2017, de cerca de 3,25%. Estes movimentos das taxas de juro implicam que os investidores em obrigações estão menos preocupados hoje com a inflação e o sobreaquecimento económico do que antes dos cortes de impostos de Trump, das medidas proteccionistas e da passagem da consolidação orçamental para a expansão agressiva.
O facto de os obrigacionistas não parecerem estar preocupados com a inflação ou o sobreaquecimento não significa que o proteccionismo e o descontrolo orçamental de Trump sejam inofensivos. Por vezes os mercados financeiros estão catastroficamente errados, como aconteceu antes da crise financeira de 2007-08. Mas o mercado de obrigações dos EUA é mais do que apenas um indicador da opinião financeira. Os juros de longo prazo estabelecidas nos mercados de obrigações têm tanto impacto sobre as condições de negócios que mudanças na visão dos investidores podem influenciar a realidade económica quase tanto como o contrário.
Actualmente, a visão dos investidores e a realidade económica estão completamente em desacordo. As taxas de juro de longo prazo de cerca de 3% estão muito longe do nível que sugere a meta de inflação de 2% da Fed mais o crescimento económico de 2-3% que provavelmente seria atingido mesmo antes dos grandes estímulos orçamentais da administração Trump. De facto, tanto a análise económica como décadas de experiência anterior sugerem que as taxas de juros de longo prazo tendem a flutuar em torno da taxa de crescimento nominal do PIB. Esta regra sugere taxas a 30 anos na faixa de 4-5%. E se os esforços de Trump para impulsionar o crescimento económico em direcção a 4% fossem levados a sério, as taxas de juro de longo prazo deveriam aumentar logicamente para 6% ou mais.
Mais tarde ou mais cedo, a divergência entre as yields das obrigações e o crescimento nominal do PIB diminuirá. Ou o crescimento cairá drasticamente, como implicam as expectativas do mercado de obrigações, ou as taxas de juro subirão drasticamente, porque as expectativas do mercado de obrigações acabam por se revelar completamente erradas.
No entanto, nenhuma dessas coisas acontecerá necessariamente no próximo ano ou dois. É improvável que o crescimento do PIB enfraqueça, dado o grande estímulo orçamental, a elevada confiança dos empresários e o forte aumento dos rendimentos resultante do rápido crescimento do emprego.
E quanto às yields das obrigações? Se a economia dos EUA continuar a crescer como o esperado, não é inevitável que as taxas de juro de longo prazo subam para níveis muito mais altos, tirando os EUA altamente alavancados e, em última instância, toda a economia mundial, do actual caminho de crescimento forte e estável?
Isso parece improvável, pelo menos no próximo ano, por várias razões relacionadas entre si. Em primeiro lugar, a crença num "novo normal" de crescimento anémico e inflação baixa está profundamente enraizada entre os investidores e os banqueiros centrais. Depois de passarem a década desde a crise financeira obcecados com a estagnação secular e a queda dos preços, os investidores e os responsáveis da Reserva Federal precisarão de muitos meses ou até anos de evidências consistentes e incontestáveis ??de inflação e crescimento para se convencerem de que as condições deflacionistas revertem genuinamente.
Mesmo quando os investidores aceitarem os argumentos intelectuais para yields muito mais elevadas, as imposições regulatórias sobre bancos e fundos de pensão, juntamente com a flexibilização quantitativa no Japão e na Europa e outras formas de repressão financeira, garantirão procura contínua por títulos do governo a preços muito acima de qualquer estimativa razoável de valores fundamentais.
A distorção nos preços causada por pressões regulatórias é amplificada por uma espécie de resposta condicionada entre os detentores de obrigações. Como a inflação e as taxas de juro caíram de forma constante nos últimos 30 anos, os detentores de obrigações têm sido consistentemente recompensados ??por tratarem cada aumento temporário das taxas de juro como uma oportunidade de compra. Esta experiência criou um reflexo pavloviano para "comprar em depressões", que só pode ser quebrado por muitos meses ou até mesmo anos de experiência negativa. Esse reflexo tem sido muito evidente nos últimos dois meses. Sempre que os mercados accionistas caíram acentuadamente, como aconteceu no início de Fevereiro e depois de Trump ter anunciado as suas sanções comerciais contra a China, o instinto de compra de obrigações tornou-se irresistível, os preços dos títulos subiram e as reduções resultantes nas taxas de juro de longo prazo estabilizaram os mercados accionistas.
Em algum momento, o comportamento pavloviano do mercado de obrigações será interrompido e as taxas de juro de longo prazo subirão muito mais. Mas até que isso aconteça, a crença inabalável dos investidores de que a inflação baixa é uma característica permanente da realidade económica permitirá ao governo dos EUA perseguir políticas inflacionistas. E as taxas de juro de longo prazo bizarramente baixas estabelecidas pelos complacentes mercados de obrigações fornecerão uma rede de segurança para os mercados financeiros globais - pelo menos até que a complacência se revele insustentável.
Anatole Kaletsky é economista-chefe e co-chairman da Gavekal Dragonomics e o autor de Capitalism 4.0, The Birth of a New Economy.
Copyright: Project Syndicate, 2018.
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Tradução: Rita Faria