Opinião
Porque é que as cidades se tornaram incomportáveis?
Em muitos dos centros urbanos mundiais, as casas estão a tornar-se proibitivamente dispendiosas para as pessoas com rendimentos moderados. À medida que os preços do imobiliário sobem, alguns habitantes podem sentir-se compelidos a sair.
A desigualdade é frequentemente medida através da comparação dos rendimentos entre as famílias do mesmo país. Mas há também um tipo diferente de desigualdade: a acessibilidade às habitações nas cidades. O impacto desta forma de desigualdade não é menos preocupante.
Em muitos dos centros urbanos mundiais, as casas estão a tornar-se proibitivamente dispendiosas para as pessoas com rendimentos moderados. À medida que os preços do imobiliário sobem, alguns habitantes podem sentir-se compelidos a sair. Claro que, se esse cidadão tem já uma casa que possa vender, pode encarar a subida do preço como um lucro inesperado que pode reclamar ao partir. Contudo, se não tiverem uma casa podem ser obrigados a sair sem compensação.
As consequências não são apenas económicas. As pessoas podem ser obrigadas a sair das cidades onde passaram toda a sua vida. Sair das cidades pode significar perder ligações de uma vida e, por conseguinte, pode ser traumático. Se muitos habitantes que viveram uma vida num sítio, tiverem de sair devido à subida dos preços das casas, a própria cidade sofre uma perda de identidade e mesmo de cultura.
À medida que as pessoas partem, uma cidade dispendiosa torna-se gradualmente num enclave para famílias com rendimentos elevados e começa a assumir os valores dessas famílias. Com pessoas de diferentes níveis de rendimentos cada vez mais divididas por geografias, a desigualdade dos rendimentos pode agravar-se e o risco de polarização social – e mesmo um conflito sério – pode crescer.
Como mostra o Demographia International Housing Affordability Survey deste ano, já há grandes disparidades nas grandes cidades mundiais (medidas pelo rácio médio dos preços das casas face aos rendimentos médios das famílias). Um rácio elevado está correlacionado com a pressão elevada sobre as pessoas para saírem.
O inquérito deste ano, que cobre 92 cidades em nove países, mostra que, no final de 2016, Hong Kong tinha os preços das casas menos acessíveis, com um rácio de preços face aos rendimentos de 18,1. Isso significa que pagar um empréstimo a 30 anos, pedido para uma casa com preço médio, custaria ao comprador da casa com rendimentos médios mais de metade dos seus rendimentos – e isto sem juros. As taxas de hipotecas são baixas em Hong Kong, mas não são de zero, o que sugere que é impossível que uma família de rendimentos médios compre uma casa sem acesso a fundos adicionais dos pais, por exemplo, ou se não for um imigrante.
Depois de Hong Kong, a lista continua com Sydney (12,2), Vancouver (11,8), Auckland (10), San Jose/Silicon Valley (9,6), Melbourne (9,5) e Los Angeles (9,3). A seguir surge Londres e Toronto – com 8,5 e 7,7 respectivamente – onde as casas são extremamente caras, mas os rendimentos são também elevados.
Entretanto, algumas das atractivas cidades mundiais são bastante acessíveis, face aos rendimentos. Em Nova Iorque, em média, os preços das casas estão nas 5,7 vezes a média dos rendimentos das famílias. Em Montreal e em Singapura, o rácio é de 4,8; em Tóquio e Yokohama é de 4,7; e em Chicago é de 3,8.
Talvez os números para estas cidades não sejam precisos. É difícil confirmá-los e há inconsistências pelas cidades, países e continentes. Por exemplo, as fronteiras geográficas das áreas usadas para calcular os preços médios e os valores médios dos alugueres podem variar. Em algumas cidades, as casas com preços elevados podem tender a ser colocadas no mercado de forma mais rápida que outras. E algumas cidades podem ser habitadas por famílias grandes, o que implica casas maiores que em outras cidades.
Mas parece improvável que os erros sejam tão significativos que mudem a conclusão básica: a acessibilidade de habitação por todo o mundo é altamente variável. A questão, então, é porque os residentes de algumas cidades enfrentam preços tão elevados – e mesmo proibitivos.
Em muitos casos, a resposta parece estar relacionada com as barreiras à construção de casas. Usando dados de satélite para ver as grandes cidades norte-americanas, o economista Albert Saiz do MIT confirmou que os condicionalismos físicos mais restritos – como extensões de água nas redondezas ou desníveis nos terrenos que fazem com que as propriedades sejam desadequadas para a construção em grande escala – tendem a estar ligados aos preços mais elevados das casas.
Mas as barreiras podem ser também políticas. Uma elevada dose de construção residencial para rendimentos moderados terá um grande impacto na acessibilidade. Mas os proprietários já existentes de residências de preços elevados têm poucos incentivos para apoiar tal construção, pois isso diminuiria o valor do seu próprio investimento. De facto, a sua resistência pode ser muito grande. Em resultado disto, as autoridades municipais podem não estar disponíveis para dar as autorizações para uma expansão da oferta.
Opções de construção insuficientes podem ser a força motriz por detrás da subida do rácio preço/rendimentos, com os preços das casas a subirem no longo prazo mesmo que a cidade não tenha novas industrias, chancela ou talento. Assim que a cidade fique sem locais de construção disponíveis, o seu crescimento contínuo tem de ser acomodado pela saída das pessoas com baixos rendimentos.
A subida dos preços das casas em relação aos rendimentos não será súbita, sobretudo porque os especuladores, antecipando a subida, podem pedir preços mais altos em antecipação. Os especuladores podem mesmo pedir preços acima do mercado, fazendo com que os rácios subam mais do que o necessário, criando uma bolha e causando uma angústia sem necessidade entre os residentes.
Mas esta tendência pode ser mitigada, se a sociedade civil reconhecer a importância de preservar as casas para os rendimentos baixos. Os residentes têm de entender que muitos dos que se opõem a que haja mais construção fazem-no com base em interesses especiais; de facto, eles representam uma espécie de procura de arrendamento por parte dos proprietários que procuram impulsionar o valor das suas casas. No livro recente, The New Urban Crisis, Richard Florida, da Universidade de Toronto denuncia este fenómeno, comparando os opositores à construção de casas aos Luditas do início do século XIX, que esmagaram os teares mecânicos que estavam a tirar os seus empregos nas tecelagens.
Em alguns casos, uma cidade pode estar a caminho de tornar-se numa "grande cidade" e as forças de mercado devem permitir um afastamento das pessoas com baixos rendimentos, que não podem participar totalmente nessa grandeza, para dar lugar aos que podem. Mas, mais frequentemente, uma cidade com um rácio elevado de preços das casas face aos rendimentos não é tanto uma "grande cidade"; é mais uma cidade com limitações ao nível da oferta, com falta de empatia e de impulso humanitário e onde falta cada vez mais diversidade. E isso cria terreno fértil para animosidades perigosas.
Robert J. Shiller, prémio Nobel da Economia em 2013 e professor de Economia na Universidade de Yale, é co-autor, com George Akerlof, de Phishing for Phools: The Economics of Manipulation and Deception.
Copyright: Project Syndicate, 2017.
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Tradução: Ana Laranjeiro